Sobre “O Apartamento” ou sobre pensar justiça e vingança - Por Thayla Fernandes e Rogério Oliveira

02/02/2017

Por Thayla Fernandes e Rogério Oliveira - 02/02/2017

Fiz este filme para mostrar que, embora alguns prédios sejam tombados e outros sejam reerguidos, as tradições mais ancestrais ficam intactas, mesmo aquelas que nos cerceiam, ou que levam à intolerância”. (Asghar Farhadi)

Nesta pequena reflexão, buscamos trazer algumas contribuições do filme “O Apartamento” (“Forushande”, 2016), do aclamado diretor iraniano Asghar Farhadi (também diretor em “A Separação” e “Procurando Elly”), para pensarmos sobre justiça, sobre vingança, sobre relações de gênero e sobre a performance das instituições jurídicas que ocupam posição de centralidade na resolução de situações-problema na contemporaneidade. Embora o filme retrate, a princípio, uma sociedade – a iraniana - que possui seus contornos culturais e históricos específicos, e muitos diferenciais com relação à sociedade brasileira, acreditamos serem possíveis algumas ricas aproximações.

A trama do filme começa com moradores de um prédio necessitando deixá-lo às pressas no momento em que sofre grandes abalos em razão de uma obra em andamento nas proximidades. Dentre estes moradores, destaca-se o casal Emad Etesami (Shahad Hosseini) e Rana Etesami (Taraneh Alidoosti), personagens principais do filme. O diretor lança novamente neste filme uma das preocupações centrais das suas demais produções: o seu gosto por discutir dilemas da vida em casamento e tanto sob um ponto de vista afetivo-subjetivo quanto sob um ponto de vista estrutural-institucional.

Emad é professor de uma escola (ao que tudo indica, uma escola para garotos, pois não há meninas na turma) e ator. Rana, por sua vez, também é atriz. Juntos, interpretam o casal principal da peça “A morte de um caixeiro viajante”, de Arthur Miller, a qual é construída em um cenário montado tal como se inacabado, ou em ruínas, estivesse. Farhadi enriquece o roteiro ao brincar com os dilemas coincidentes da vida dos personagens Emad e Rana e da vida dos personagens que o casal assume na peça, intermediados pelos elementos arquitetônicos presentes no filme. No decorer na obra, fica clara a intenção de mostrar, gradativamente, que nem sempre um desmoronamento é apenas físico, podendo ser, também, relacional, ou mesmo ético e moral.

Uma vez que estão impossibilitados de retornar ao apartamento em ruínas, Emad e Rana se veem sem ter onde morar. É então que um dos colegas do elenco da peça oferece a eles um apartamento. A história começa a tomar fôlego quando, ainda durante a mudança do casal, surgem por parte dos vizinhos diversos comentários sobre quem era a antiga moradora do apartamento: uma mulher solteira que recebia vários homens em sua casa (e aqui fica uma das provocações que permanecem em aberto: era, de fato, uma prostituta?) e que deixou o lugar sem levar as suas coisas, as quais permanecem ainda por algum tempo, mesmo após a instalação do casal no lugar, trancadas por ela em um dos cômodos. Asghar Farhadi trabalha com o vazio diante de situações em que os personagens constantemente estão procurando por soluções, simples ou não. Ao longo de toda a construção do roteiro, está presente ali o não ter onde morar, o não ter o que falar e o não saber como agir. É por meio de pequenos desmoronamentos silenciosos que os conflitos psicológicos dos personagens se exaltam e até reverberam para fora da tela, provocando o espectador.

Num determinado dia, então, ao ouvir o interfone do apartamento tocar, Rana abre todas as entradas sem buscar saber de quem se tratava, acreditando tratar-se de Emad, e dirige-se ao banho. A cena da porta do apartamento entreaberta – aparentemente um espaço vazio – deixa no espectador a ansiedade de um trágico acontecimento. Quando o casal volta a se encontrar, já é quando Emad vê Rana bastante machucada, semiconsciente, recebendo atendimento em um hospital após ser socorrida por vizinhos em casa. Um homem estranho, possivelmente um homem com quem se relacionava a misteriosa antiga moradora, havia entrado no apartamento e feito algo com Rana, que não se lembra dos detalhes do ocorrido. As conexões entre a instigante cena da porta se abrindo, a cena de Emad perdido ao não encontrar a mulher no apartamento e a cena da protagonista já debilitada sob cuidados médicos serve para colocar o espectador, que assiste tudo quase como testemunha do fato, em um momento de tensão: ele não conseguirá reescrever perfeitamente os detalhes da história, pois a direção de arte, realista e soturna, trabalha propositalmente o vazio. Neste momento se inicia a cruzada de Emad rumo à vingança, uma cruzada que marca profundamente a sua subjetividade. E é então, também, que o casal começa a sacratamentar seu afastamento.

É interessante observar que, a todo o momento, há na trama a recusa por parte de Rana em convocar a polícia para a resolutibilidade da problemática, mesmo diante da insistência por parte dos vizinhos e de Emad. É possível que ela sentisse que, caso relatasse o caso à polícia, teria que, primordialmente, oferecer as inúmeras explicações que instituições machistas tipicamente exigem de mulheres em situação vitimizada. Teria que explicar o porquê de, por conta própria, ter aberto a porta de sua casa para um homem que diz lhe ser desconhecido. Teria que explicar porque não se resguardou, porque agiu de forma tão parecida com a antiga moradora (admitida pelos personagens como uma prostituta), a ponto do homem estranho ter possivelmente confundido ambas. É possível, assim, que Rana tenha sentido que a situação conflituosa em questão poderia atingir contornos ainda maiores, e que maiores poderiam ser os julgamentos morais contra si, caso procurasse a polícia. Neste sentido, o de oferecer mais julgamentos morais do que acolhimento às mulheres e de transferir toda a culpa sobre casos de violência de gênero para elas, há uma grande proximidade entre as instituições jurídicas pelo mundo, por mais que normalmente se faça a leitura do Irã como um país consideravelmente mais preconceituoso no campo de gênero – ou, em outras palavras, mais apoiado numa estrutura patriarcal, machista e misógina - do que o Brasil.

Reflexões sobre gênero acompanham, portanto, toda a construção do filme. O ritmo da trama é dado, a princípio, por um antiherói; Emad é um homem que sequestra totalmente para si um conflito que diz respeito, em primeiro lugar, à sua esposa, afastando a possibilidade de ouvir os desejos dela diante da situação, bastante adversos aos seus. Enquanto que Rana deseja apenas a companhia do esposo para se recuperar e um lugar seguro para morar, sem manifestar interesse algum por sequer comunicar a ocorrência à polícia, Emad toma como absoluta prioridade a reconquista de sua honra e o dever da vingança, consagrada em sua percepção como a justiça possível. A lesão corporal sofrida por Rana, e o mistério quanto ao fato de ter sofrido ou não algum tipo de atentado sexual, se torna um problema de honra entre homens. A resolução deste problema, sob os olhos de Emad, passaria primordialmente pelo encontro com o sujeito algoz, e não pelo acolhimento de sua companheira.

Assim sendo, se, de início, Emad é um vizinho solidário aos demais do prédio que ameaça desabar e um dedicado professor adorado pela classe, logo passa a agir com descaso para com a execução das atividades na escola e com tirania para com seus alunos. Se, de início, manifesta-se como um artista progressista, preocupado com a censura à dramaturgia e à literatura, logo veste uma roupagem conservadora, sobretudo quanto ao tratamento que dispensa à sua esposa e aos seus colegas de teatro. A vontade de vingança, assim, invade Emado por inteiro e o transforma. Esta transformação do personagem sedento por vingança é percebida também em outras obras que tangenciam o mesmo tema, tal como é o caso de “O Segredo de Seus Olhos”, filme argentino de Juan José Campanella, e “A Morte e a Donzela”, de Roman Polanski. Assim como é percebida nas telas e livros, também é percebida para além deles, na vida dos personagens da vida comum, real. A atuação no campo jurídico, e a atuação no campo da comunicação, faz com que nos deparemos constantemente com pessoas transformadas pela vontade de vingança, as quais manifestam, inclusive com sórdidos comentários e imagens nas redes sociais, a sua participação em linchamentos e escrachos, a sua busca pelo recrudescimento de penas e pela deslegitimação da existência de direitos humanos fundamentais. É rara a aceitação de limites para as penalizações, para a imposição de sofrimento.

Além de tomar e transformar a Emad, a vontade de vingança mostra-se, também, como insaciável. Ele passa a dedicar seus dias à busca do algoz, sem levar nada ao conhecimento de sua esposa. E, além disso, no momento em que o encontra pessoalmente, justamente no cenário do apartamento em ruínas, se perde entre as várias possibilidades do que fazer, entre as várias possibilidades de como saciar a sua busca. Como fazer com que aquele homem possa pagar pelo mal causado? O que seria suficiente? Emad titubeia entre estas e outras várias possibilidades. Pensa até mesmo a, finalmente, considerar ouvir os apelos da esposa que, apesar de vítima, se torna mais sensível à situação, pensando também nos familiares do antagonista (e aqui o filme nos provoca novamente: são sempre as vítimas aquelas que possuem os desejos mais sanguinários? Quando pensamos em retribuir um mal com outro mal, é nas vítimas que estamos realmente pensando?).

Emad, então, age. De forma absolutamente decidida ou não. E se a forma de vingança institucionalizada mais comum é a prisão, ela também surge representada simbolicamente na obra de Asghar Farhadi, que prossegue brincando com a qualidade dos espaços, com a imposição e derrubada de paredes. Quando Emad já está completamente envolvido emocionalmente (num misto de raiva, repulsa, dúvida, excesso e ao mesmo tempo falta de coragem) com o agressor de sua esposa, ele aprisiona o antagonista, visivelmente debilitado fisicamente e provavelmente correndo algum risco de vida, num pequeno quarto, e o deixa no escuro, como quem terceiriza ao acaso o destino do agora vitimado, tomando uma decisão sem tomar.

Posteriormente, porém, o anti-herói retorna ao encontro do antagonista. O jogo entre o que seria suficiente de ser feito continua. Novamente, Emad precisa tomar uma atitude. Ocorre que as consequências do que opta por fazer podem ir para além do esperado. Ou podem, na verdade, realizar uma vontade inicial recalcada. Os silêncios postos estrategicamente – em jogos de câmera, de luz, de posicionamentos dos personagens e na aparição da arquitetura - evitam uma automática identificação com um ou outro dos personagens, evitam uma rápida tomada de partido. O espectador se vê entre a vontade de se convencer pelo “acabe com isso logo de uma vez” e pela vontade de assumir as dúvidas trazidas pela trama. Se vê, ainda, na difícil missão de, diante destas cenas, precisar reconfigurar os papeis de algoz e vingador. Se o que ocorre é o não-esperado, ou o esperado recalcado, a escolha do personagem, então, pode ser considerada uma vingança? As consequências, quando se tornam mais cruéis do que o inicialmente previsto no cálculo da vingança - considerando ser um cálculo talvez impossível de ser feito - podem ser consideradas acidentes?

A trama do filme nos revela que atitudes humanas podem ser mais complexas do que nossas expectativas iniciais conseguem alcançar. O algoz sempre é, para além de qualquer coisa que se proponha a fazer, e para além do que possamos compreender como bem ou como mal, também um ser humano imerso em seus dilemas próprios. E, comumente, um ser humano cercado por outros seres humanos – amigos, familiares – que terminam também atingidos pelo espraiamento do exercício da vingança, institucionalizada ou não, já que são impossíveis os cálculo dos seus limites. As longas filas de mãe, companheiras, familiares que pretendem visitar nos presídios, aqueles que choram as consequências da vingança – institucionalizada ou não - são exemplos disto.

“O Apartamento” nos traz, portanto, a história de um homem que foi buscar justiçamento por conta própria para uma situação grave e que se deparou justamente com a margem de erro dos cálculos de vingança. Nos mostra a fluidez existente entre os papeis de justiceiro e de algoz. Nos traz, ainda, a provocação da busca por justiçamento sem a interferência das instituições. Neste sentido, o filme faz com que nos questionemos por um caminho alternativo: e se o casal tivesse buscado a interferência da polícia e da justiça criminal? O que seria diferente? E, ainda, o que seria igual? É justo que nos perguntemos, partindo da provocação do filme, se a interferência das instituições jurídicas próprias da racionalidade moderna garantem o afastamento da tragédia, da crueldade, da vingança. Quão maculado pela insaciável lógica da vingança está o funcionamento destas instituições, inclusive aqui, no Brasil, país no qual convivem o estado de coisas inconstitucional e a sede por mais punições? E quão maculados por ela estamos nós? Instituições e indivíduos maculados por esta lógica restauram conflitos com mais sensibilidade ou apenas os potencializam?

A história deste filme é, portanto, uma sequência cinematográfica complexa e muito bem construída que nos convida a pensar sobre limites da confusão entre vingança (e, neste artigo buscamos acrescentar: vingança institucionalizada ou não) e possibilidades de responsabilização. É mais uma história a nos revelar com grande sensibilidade que a busca e a concretização da vingança, embora pareça representar a mais pura proporcionalidade (afinal, se trataria de pagar-se um mal com outro mal), macula negativamente, e para além dos limites esperados, também o vingador, o vingado e as pessoas ao redor. Entre prédios tombados e reerguidos, perpetuamos, em nossa sociabilidade e na construção de nossas instituições, um algo de perversidade.


Thayla FernandesThayla Fernandes é graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogada, é cofundadora do Instituto Capixaba de Criminologia e Estudos Penais (ICCEP) e é membro do grupo Elas Existem - Mulheres Encarceradas (RJ). É pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Rogério Oliveira. Rogério Oliveira é Redator publicitário, formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), aonde também é graduando em Letras. Estudou Iniciação Teatral na Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música de Vitória (FAFI), participa do grupo de Estudos literários do SESC-ES e é Analista de Conteúdo da Único Agência Digital..
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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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