Sobre índios, futuro e resistência

04/07/2017

Por Fernanda Frizzo Bragato – 04/07/2017

“Professora, a senhora me explique o que é esse tal de marco temporal que inventaram para não nos deixar viver nas nossas terras. Eu quero lhe dizer que ninguém vai me impedir de viver e de morrer na terra onde está enterrado o meu umbigo”.

Foi assim que, desde a interpelação de uma anciã guarani-kaiowá há uns dias atrás, não parei mais de refletir sobre o assunto.

A partir de 1940, as comunidades guarani-kaiowás começaram a ser expulsas de suas terras (tekohás) que foram sendo distribuídas a não-índios para a colonização do estado do Mato Grosso do Sul. Essas expulsões foram não raro violentas. Mesmo assim, os guaranis-kaiowás não deixaram de habitar a região e de viver próximos ou mesmo dentro de seus tekohás, trabalhando nas fazendas que passaram a ocupar suas terras. Hoje estima-se que haja em torno de quarenta mil deles. A partir dos anos 80, adotaram a estratégia politicamente organizada de retomar seus tekohás, dos quais haviam sido ilegalmente expulsos, e de reivindicar, de acordo com o art. 231, da Constituição, o seu reconhecimento como terra indígena e consequente demarcação. Por conta disso, relatórios nacionais e internacionais têm denunciado a ocorrência constante e sistemática de crimes nos locais das retomadas, como assassinatos, lesões corporais, ameaças e desaparecimentos de guaranis-kaiowás, sem contar os despejos judiciais e as mais diversas privações a direitos humanos fundamentais, como saúde, educação, água.

Marco temporal é a tese consolidada no julgamento da Petição nº 3.388 (caso Raposa Serra do Sol) pelo Supremo Tribunal Federal, segundo a qual uma terra que não estivesse na posse efetiva dos índios na data da promulgação da Constituição de 1988 não pode ser demarcada, a menos que tenha havido esbulho renitente, assim entendido como “situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persistia até Constituição de 1988” (Ag. Reg. no RE com Agravo nº 803.462 MS, 2016).

As terras dos guaranis-kaiowás já estão sendo e ainda serão gravemente afetadas pela consolidação do referido entendimento jurisprudencial. Apesar de a PEC 215 pretender incorporá-la ao texto do art. 231 da Constituição, o marco temporal não encontra qualquer respaldo legal. Mas não apenas as terras Guarani-kaiowás serão afetadas. Segundo o Instituto Socioambiental - ISA (2015), a aplicação da tese do marco temporal afetará 144 terras cujos processos de demarcação estão judicializados, com uma população de 149.381 indígenas, além das 228 terras indígenas ainda não demarcadas, com uma população de 107.203 indígenas. Isso significa que 1/3 da população indígena brasileira ficará privada de seus territórios tradicionais, caso se consolide esta tese no Judiciário Brasileiro. O Judiciário terá “decidido”, mas nem de longe solucionado o problema; ao contrário, terá contribuído para o agravamento da violência e do genocídio indígena. Isso porque a profunda interrelação entre direitos humanos dos povos indígenas e seus direitos territoriais (CIDH, 2010) parece ser ignorada no trato da questão.

Mas a interpelação da anciã se explica, caros leitores, pelo fato de que nos processos judiciais em que se postula a anulação dos atos administrativos de demarcação de terras indígenas, as comunidades indígenas não são partes nos processos. Eles não sabem o que os brancos estão discutindo e decidindo sobre suas vidas. A própria produção de provas sobre o fato da expulsão forçada antes de 1988 acaba não sendo realizada a contento. E muitas vezes é mesmo impossível produzi-la: antes de 1988, os índios eram tutelados, tinham capacidade civil relativa, vivia-se um período de ditadura militar. Na maioria das comunidades, sequer se falava português. Imaginem conhecer as leis...

Como, então, explicar essa tese aos indígenas, explicá-la àquela sábia anciã? Muito constrangida (porque de certa forma ela me via mais próxima a quem sustenta essa tese do que deles), eu disse que era uma coisa ilegal dos juízes e dos governantes que devia ser vista como só mais um obstáculo, além dos tantos que eles estão acostumados a enfrentar. Como se fosse preciso eu dizer isso a eles!

Eu devia ter lhe explicado que fora da lógica do mais puro cinismo, é impossível alguém explicar e aceitar essa tese. Talvez ela não entendesse. Queria ter também podido lhe dizer que esse cinismo está nos matando. Está acabando com a própria “civilização” que os oprime. Mas que nós, ao contrário deles, não sabemos resistir. A esta altura, e depois de todas as políticas de extermínio do Estado Brasileiro, a começar pela principal – a assimilação -, projetava-se que os índios tivessem sido extintos. Não só não foram, como a partir dos anos 80 eles experimentaram importante crescimento demográfico.

Os índios sabem resistir. E que bom que saibam. Eles têm uma relação espiritual com seus territórios: o lugar onde está enterrado o umbigo não é qualquer lugar e nunca deixará de ser “o lugar”. Isso é fundamental não só para a sobrevivência dos povos indígenas, mas para sua identidade e para a preservação desses espaços. Essa relação espiritual com a terra é infinitamente mais significativa que a relação meramente econômica que os ocidentais mantêm. Não se trata de uma atitude exploratória, mas de respeito. "Para nós que vivemos em florestas tropicais, as árvores, as plantas, animais e micro-organismos são membros de nossa comunidade. Temos, além disso, deidades que protegem as árvores e as águas. E temos árvores sagradas. Infelizmente, somos ameaçados por proteger as florestas, nossos direitos são violados e esmagados. Estamos em uma crise”, afirmou Victoria Tauli-Corpuz, relatora das Nações Unidas para a defesa das pessoas indígenas (El Pais, 2017).

Nessa condição, as terras indígenas abrigam a grande parte do que resta de biodiversidade em nosso planeta. Os povos indígenas são os guardiões das florestas, dos conhecimentos sobre biodiversidade e sobre a forma sábia de se relacionar com a natureza. Precisamente por isso, pagam o preço da extrema pobreza e da intensa violência contra suas vidas. Mas resistem.

No mês passado, foi realizada na Noruega a Iniciativa Ecumênica de Oslo para as Florestas Tropicais, organizada pelo Governo norueguês em conjunto com a Rainforest Foundation Noruega e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Nessa reunião, líderes religiosos e indígenas de todo mundo uniram-se para enfatizar seu papel na batalha contra o desmatamento. Segundo a reportagem:

A destruição das florestas tropicais significa não apenas um ataque contra a criação de Deus, tal como descrevem os líderes religiosos, mas também contra a fonte de vida das pessoas. Isso porque essas matas absorvem carbono. Evitam que milhões de toneladas de gás acabem na atmosfera e contribuam para o aquecimento global. Também regulam os ciclos da água, razão pela qual seu desaparecimento altera as chuvas de maneira negativa. Acima de tudo, são o lar e o sustento de 1,6 bilhão de pessoas.” (El País, 2017).

A reportagem enfatiza que a razão de reunir religiosos e indígenas em um evento que visa a proteção de floresta é que os primeiros têm poder de influência para atrair os fiéis a essa causa e os últimos mantêm o conhecimento ancestral para a proteção de sua casa, a natureza, que defendem todos os dias para o benefício de todos, arriscando sua vida.

Pois bem. O Brasil está na contramão. E não por acaso estamos vivendo o desfecho cruel das nossas más escolhas e da histórica falta de projetos viáveis e de visão de futuro. A tese do marco temporal é mais um exemplo de negação do futuro às próximas gerações, não só de índios, mas de todos os brasileiros. Neste momento em que para muitos parece não haver saída para a crise que nos assola, talvez seja importante olharmos para aqueles que sempre estiveram aqui, para o que é original desta terra e que tanto se despreza. Os índios protegem nosso futuro e podem nos ajudar a entender o que é resistência.


Notas e Referências:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3388. Relator Min. Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 20 de agosto de 2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133. Acesso em: 13 jan. 2015.

COMISSION INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales : normas y jurisprudencia del sistema interamericano de derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 2010.  Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Tierras-Ancestrales.ESP.pdf. Acesso em: 06 jul. 2016.

EL PAIS. Um encontro ecumênico na Noruega para salvar as “florestas sagradas”. 2017. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/20/internacional/1497940076_174344.html. Acesso em: 02 jul. 2017.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Impactos da PEC 215/200 sobre os povos indígenas, populações tradicionais e o meio ambiente. Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas Programa de Política e Direito Socioambiental. São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/isa_relatoriopec215-set2015.pdf> Acesso em: 12 dez. 2015.


Fernanda Fizzo Bragato. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: Expedição Guarani Kaiowa - Mato Grosso do Sul // Foto de: percursodacultura // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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