No dia seis de setembro de 2024, foi encerrado o julgamento em Plenário Virtual do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.429.329 do Rio Grande do Norte. A decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal se inscreve como um capítulo importante da história institucional brasileira ao fixar a Tese nº 1322 com repercussão geral: “A utilização, por qualquer ente estatal, de recursos públicos para promover comemorações alusivas ao Golpe de 1964 atenta contra a Constituição e consiste em ato lesivo ao patrimônio imaterial da União”[1].
O estabelecimento da tese ocorreu após um longo percurso processual iniciado em 31 de março de 2020 com a proposição da Ação Popular nº 0802121-11.2020.4.05.8400 pela deputada federal Natália Bonavides em virtude da publicação da segunda Nota Comemorativa (a primeira ocorreu no ano de 2019) ao golpe civil-militar de 1964 pelo Governo de Jair Bolsonaro. A ação visava, sobretudo, a retirada do ar da nota, bem como a proibição de que o governo realizasse quaisquer comemorações ao período em questão – uma vez que representaria, em termos gerais, uma ofensa à ordem constitucional estabelecida em 1988.
A nota, a segunda das quatro lançadas anualmente no mandato de Bolsonaro, comemora o golpe civil-militar de 1964 e justifica as arbitrariedades e violências da ditadura (1964-1985), tal como se observa a partir dos trechos: “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época (...) As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder” (Brasil apud Guimarães, 2022)[2].
Nesse sentido, a fixação da tese com repercussão geral estabeleceu-se como um ponto de inflexão importante nas disputas pelos sentidos não apenas históricos, mas fundamentalmente normativos a respeito da comemoração institucional do 31 de março de 1964, já que, desde o ano de 2019, verifica-se a judicialização da questão por meio de diversas ações que visavam impedir atos comemorativos realizados pelo governo federal, tais como o Mandado de Segurança nº 36.380/DF; a Ação Civil Pública 1007756-96.2019.4.01.3400; a Ação Popular 1007656-44.2019.4.01.3400; dentre outras.
Desse modo, o que se observa no percurso de tais ações, bem como no curso da Ação Popular originária da tese, é a existência de decisões divergentes conforme a instância julgadora. Em determinados casos, prevaleceu a inconstitucional argumentação de que seria possível a comemoração, uma vez que a liberdade de expressão e de interpretação de fatos históricos deveria imperar. Por outro lado, algumas decisões foram corretamente orientadas pela proteção da ordem constitucional estabelecida em 1988, que se firmou como uma ruptura em relação à ditadura civil-militar inaugurada pela data em questão – sendo, portanto, inconstitucional a comemoração de um golpe de Estado.
Vale ressaltar, não obstante a fixação da tese, que as decisões permissivas à comemoração se basearam em argumentos eivados de inconstitucionalidade, já que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, não podendo ser utilizada como pretexto, por exemplo, para a defesa e comemoração de regimes autoritários e violentos, tal como o foi a ditadura civil-militar brasileira. O precedente firmado pelo STF no HC 82.424/RS, popularmente conhecido como Caso Ellwanger, aponta justamente para a limitação do direito à liberdade de expressão quando diante de discursos que incitem o ódio e a violência[3].
No que tange à argumentação relativa à liberdade de interpretação histórica, qual seja, a possibilidade de compreensão da data e do período como positivos e como responsáveis pela guarda dos valores democráticos, tal como narrativa disposta nas notas alusivas do governo Bolsonaro, não há que se falar sequer em perspectiva histórica. O negacionismo histórico, por meio da distorção dos fatos/datas/eventos, busca, sobretudo, a legitimação da ordem ditatorial inaugurada em 1964 (que foi responsável, nos termos do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, pela morte, desaparecimento e tortura de milhares de brasileiros) sem quaisquer preocupações com a factualidade. Nesses termos, não é possível falar em defesa institucional de uma narrativa negacionista e falseadora da história, que, além disso, viola diretamente o Estado Democrático de Direito.
Retomando à divergência das decisões, percebe-se a relevância da fixação da Tese 1322 como mecanismo processual de uniformização da interpretação constitucional a respeito da comemoração institucional do golpe civil-militar. Contudo, para além da uniformização, a tese apresenta outro ponto importante e interessante: a mudança de posicionamento e interpretação do Ministro Gilmar Mendes sobre a questão.
No ano de 2019, o Ministro foi relator do MS 36.380/DF[4], que objetivava que o governo federal se abstivesse de comemorar o golpe civil-militar. O mandado foi impetrado após coletiva de imprensa com o Porta-Voz da Presidência da República, que anunciou que o Presidente Jair Bolsonaro ordenara que fossem realizadas as devidas comemorações ao dia 31 de março de 1964 (que, afinal, foram realizadas com a publicação de nota alusiva no site do Ministério da Defesa).
A decisão, todavia, negou seguimento ao mandado de segurança, o que pode ser observado nas páginas finais do remédio em questão. As razões da negativa ocuparam duas das vinte páginas da decisão monocrática e possuíam o seguinte teor: argumentou-se que o remédio constitucional não seria cabível, já que a declaração do Porta-Voz configurava ato de opinião emitido em um contexto político e uma manifestação de vontade personalíssima, não caracterizando, portanto, um ato de autoridade do Presidente da República. E as outras páginas?
Estas foram dedicadas à análise da questão a qual se denominou como “sensível”, uma vez que existiriam diferentes interpretações históricas sobre o ocorrido e as democracias deveriam garantir a convivência dessa pluralidade. Para tanto, utilizando argumentos de autoridade, a decisão apresenta um rol de juristas que denominam os fatos como “revolução” e “movimento”, incluindo como exemplo deste último a fala do Ministro Dias Toffoli de que “Não foi um golpe nem uma revolução. Me refiro a movimento de 1964”. Além disso, a decisão frisou o protagonismo das elites políticas no processo de transição, sendo elas responsáveis pelo enfrentamento do regime sem extremismos. Por fim, apontou-se para a importância da Constituição de 1988, vez que representativa de um pacto conciliatório entre setores sociais divergentes em prol da democracia.
O resultado prático da decisão foi a comemoração institucional do golpe pelo governo federal no ano de 2019.
Em 2024, o Ministro seria redator do acórdão que fixou a Tese 1322, inaugurando a divergência ao voto do Ministro Relator Nunes Marques, que negou provimento ao agravo devido à ausência de repercussão geral. O voto divergente foi seguido pela maioria dos Ministros, vencidos os Ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e André Mendonça.
As razões que fundamentaram a divergência demarcaram uma significativa mudança no posicionamento do Ministro Gilmar Mendes, uma vez que a decisão, a todo momento, enfatiza o caráter golpista de 31 de março de 1964 e a natureza ditatorial do governo que se seguiu. Tal ênfase é acentuada ao caracterizar as narrativas divergentes (tal como a estampada na nota) como inverídicas e falsas.
Não obstante a importância de apontar o negacionismo histórico das notas, o que, em seus termos, atentaria contra o direito à informação e à educação previstos na Constituição, a celebração do golpe civil-militar afrontaria diretamente a ordem constitucional estabelecida a partir de 1988. Nesse sentido, pontua que não há que se falar em liberdade de expressão do agente público quando este realiza uma comunicação que veicula mensagens atentatórias à democracia e capazes de incutir na população sentimentos de subversão.
Outro ponto que merece destaque é a linha argumentativa construída na decisão, que posiciona os atos celebratórios do golpe civil-militar durante o governo Jair Bolsonaro como fruto de um contexto mais amplo marcado pelo fortalecimento do protagonismo político dos militares. Nos termos do voto, também se insere nesse quadro as manifestações inconstitucionais sobre o suposto poder moderador atribuído aos militares, bem como os constrangimentos sofridos pelo Tribunal em relação ao exercício de suas competências.
Além disso, a decisão aponta para o que seria o ponto culminante desse contexto incitatório de subversão à ordem constitucional: a invasão da sede dos Três Poderes em oito de janeiro de 2023. Nesse sentido, argumenta:
“De fato, práticas como a combatida nos presentes autos inserem-se em um contexto maior de sucessivas e espúrias contestações inconstitucionais da ordem democrática – quer por via indireta, mediante a exaltação de iniciativas inequivocamente subversivas, como realizado por meio da “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” impugnada nestes autos; quer por via direta, como tivemos a desventura de observar no infame dia 8 de janeiro de 2023”[5].
E ainda:
“A tentativa abjeta e infame de invasão das sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023 não será devidamente compreendida se dissociada desse processo de retomada do protagonismo político das altas cúpulas militares, processo que se inicia e se intensifica por meio de práticas como a edição da “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” combatida nos presentes autos”[6].
A partir da construção dessa linha argumentativa compreende-se, em geral, a existência de uma mudança significativa no posicionamento do Ministro Gilmar Mendes, que escolhe pela demarcação e ênfase no caráter golpista da data aqui debatida, fugindo da tônica conciliatória da decisão no MS 36.380/DF que opta por frisar a importância da pluralidade de denominações.
A nosso ver, essa modificação foi guiada justamente pelo contexto argumentativo traçado na decisão, que destaca os reiterados atos atentatórios à democracia, particularmente desde a ascensão do bolsonarismo, incluindo, de forma central, os ataques golpistas de oito de janeiro de 2023. Esta data marca uma tentativa, felizmente frustrada, de golpe de Estado. Esta data parece ter remetido a outra em que tanques e pessoas foram às ruas contra um presidente democraticamente eleito e marcou o início da ditadura mais longeva da América Latina.
Em conclusão, declarar a inconstitucionalidade da comemoração institucional de trinta e um de março de 1964 diz não apenas sobre o passado, mas também sobre disputas de sentido daqueles princípios e responsabilidades que, como povo, nos constitui como sociedade política no presente em face desse passado e em sua abertura ao porvir: a tese nº 1322, reafirma, portanto, o compromisso com a democracia constitucional em nosso País.[7]
Notas e referências:
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão no Ag. Reg. No Recurso Extraordinário 1.429.329 - Rio Grande do Norte. Relator: Min. Nunes Marques. Redator do Acórdão: Min. Gilmar Mendes, 09 de set. de 2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371426758&ext=.pdf>. Acesso em: 04 de nov. de 2024.
[2] Para visualizar a íntegra das notas alusivas emitidas nos anos de 2019 a 2022, ver nos anexos da seguinte dissertação de mestrado: GUIMARÃES, Júlia. Revisionismos e negacionismos históricos em decisões do Supremo Tribunal Federal: a comemoração institucional do golpe-civil militar brasileiro de 1964 como inconstitucionalidade. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.
[3] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Processo Constitucional, 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 251-264.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática no Mandado de Segurança 36.380/DF. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 29 de mar. de 2019. Brasília: 2019. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339836398&ext=.pdf. Acesso em: 23 de nov. de 2020.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão no Ag. Reg. No Recurso Extraordinário 1.429.329 - Rio Grande do Norte. Relator: Min. Nunes Marques. Redator do Acórdão: Min. Gilmar Mendes, 09 de set. de 2024. p. 17. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371426758&ext=.pdf>. Acesso em: 04 de nov. de 2024.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão no Ag. Reg. No Recurso Extraordinário 1.429.329 - Rio Grande do Norte. Relator: Min. Nunes Marques. Redator do Acórdão: Min. Gilmar Mendes, 09 de set. de 2024. p. 21. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371426758&ext=.pdf>. Acesso em: 04 de nov. de 2024.
[7] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição, 4 ed. rev. Belo Horizonte: Conhecimento, 2023, p. 96-103 e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição, 3 ed. rev. Belo Horizonte: Conhecimento, 2023, p. 134-139.
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