Por Paola Bianchi Wojciechowski – 13/02/2017
A descriminalização – e o discurso de descriminalização –, em geral, causa perplexidade. É como se a mera descriminalização de dada conduta, repentinamente, prestasse-se à promoção ou apologia à prática daquela conduta, e não, simplesmente, à mudança no enfoque estatal no tratamento da questão.
Por perceber que essa é uma confusão bastante comum e sempre motivada a travar a batalha no campo comunicacional, propus-me a formular um pensamento simples e direto sobre como é possível ser a favor da descriminalização de “X” sem, necessariamente, ser a favor de X.
Você é a favor de que criminalizem o consumo/venda de cigarro? E o consumo/venda de bebida alcoólica?
Imagino que a maioria das pessoas responderia:
- Não, de forma alguma, não haveria motivo para criminalizar tais produtos!
Perante essa resposta, impõe-se outro questionamento:
- E qual seria o motivo, então, para criminalizar a substância entorpecente?
- Porque tais substâncias fazem mal à saúde! - Muitos responderiam. Aliás, essa – a proteção à saúde pública – é exatamente a justificativa fornecida pelo Estado – e embutida na lei penal – para criminalizar o uso/tráfico da substância entorpecente.
- Mas e cigarro e bebida não fazem mal à saúde!?
Claramente, essas substâncias causam mais danos direta e indiretamente à dita “saúde pública” do que as drogas ilegais e, nem por isso, as pessoas são a favor da sua criminalização, não é?
E sabe o por quê?
Porque sobre essas substâncias/condutas não pesa o estigma da criminalização, tais condutas/atividades são aceitáveis socialmente/legalmente. Isso significa que, a despeito dos evidentes danos à saúde pública, o Estado optou por não criminalizá-las. O Estado preferiu regulamentar. Porque é assim: quando o Estado criminaliza, ele abdica de regulamentar! E isso é, em essência, ruim, sobretudo no que concerne a atividades que envolvem direitos básicos, haja vista que quando o Estado opta por regulamentar ele: ganha dinheiro com isso (impostos); faz políticas de redução e prevenção de danos (não fumar em ambientes fechados); fornece auxílio ao sujeito que se vê em situação de risco devido ao abuso da substância (tratamento para alcoolismo); promove pesquisa (propriedades terapêuticas da cannabis); adota um enfoque preventivo (promovendo os direitos reprodutivos e o planejamento familiar).
No entanto, grande parte das pessoas – embaladas pelo discurso midiático-eleitoreiro – tendem a achar justamente o contrário: que a criminalização é uma solução estatal! É necessário entender: a prisão ocorre quando o Estado já falhou! Falhou em prevenir o crime e, via de consequência, em garantir a segurança, a saúde, a integridade física… o bem da vida que se intenta proteger! Então, eu realmente não consigo entender como alguém pode apostar na prisão e comemorá-la.
Não entendo como podem comemorar a falência, o reconhecimento do Estado – e da sociedade – de que “falhamos”! Seria como trabalhar em uma empresa e torcer para que, em um momento de crise estrutural, ela fosse à falência, em vez de tentar identificar os problemas e superar os momentos de crise, as situações conflitivas.
Quando o Estado criminaliza, portanto, ele dá um passo em direção à abstenção de praticar outras medidas preventivas, estruturais, sociais que realmente ajam na raiz do problema. A criminalização encerra as portas ao diálogo/debate sobre dado conflito social, subtraindo-lhe o aspecto político e o apresentando como algo passível de ser solucionado mediante a simples e estéril aplicação da pena. Além disso, a criminalização torna o conflito e sua resolução ou superação inacessíveis para as partes eventualmente envolvidas - “é, pois, o confisco da vítima”[1].
Tem, portanto, o efeito reverso do pretendido, já que é o debate informado na arena pública – o esclarecimento – que tem a potencialidade de promover a emancipação, a prevenção, a solução de conflitos. A criminalização é o: “Não vamos mais conversar sobre isso, já que é proibido!”
No caso do aborto, por exemplo, o Estado abdica de auxiliar no planejamento familiar, de garantir amplamente os direitos reprodutivos – de assegurar à mulher um âmbito de liberdade e autodeterminação individual, intimidade e autonomia, para o exercício de sua sexualidade – para que, assim, ela possa decidir livre e responsavelmente a respeito do controle de fecundidade, reprodução, número de filhos, etc., afastada de quaisquer tipos de discriminação, coerção ou violência.
Aliás, aqui, é pertinente ressaltar que ser a favor da descriminalização não significa ser a favor da realização indiscriminada de processos abortivos, pura e simplesmente. Significa, apenas, ser a favor da adoção de medidas educativas que possibilitem à mulher o pleno exercício de seus direitos reprodutivos e sexuais, a fim de que responsavelmente ela possa decidir a respeito do planejamento familiar, da reprodução, do controle da fecundidade, etc. É levantar-se contra a prisão e a morte de centenas de mulheres (sobretudo de jovens mulheres pobres), que realizam abortos clandestinos e sujeitam-se a métodos abortivos desumanos.
Frise-se, descriminalizar não significa que determinada ação será liberada de forma irrestrita e indiscriminada. Pelo contrário, significa que o Estado terá que, realmente, enfrentar as questões sociais, estruturais, econômicas subjacentes a dado conflito/questão social!
A prisão não tem pauta emancipatória – não emancipa ninguém –, não resolve conflitos sociais, não promove direitos. A prisão fulmina direitos! A prisão significa a morte – social e, muitas vezes, real – do encarcerado. É um ambiente criminógeno: está na gênese de conflitos sociais. É o exercício da violência pelo Estado – quando ele falhou em tentar resolver/prevenir o problema ou mesmo quando não há interesse em buscar soluções para dado conflito/questão social devido a interesses econômicos-eleitoreiros.
Prisão não se deveria celebrar! Mas, infelizmente e historicamente, ou se celebra ou se lava as mãos em relação a ela. Aos cristãos que estão pouco ou muito contrariados com a possibilidade de descriminalização do aborto, por exemplo, apelo sempre ao exemplo da prisão e crucificação de Jesus, os anciãos judeus a celebraram e Pôncio Pilatos lavou suas mãos.
Notas e Referências:
[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 19.
. Paola Bianchi Wojciechowski é Mestra em Direito pela PUC-PR. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Política Criminal pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela PUC-PR. Assessora Jurídica no MPPR. . .
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