Sobre Betinho, Beija - flor e Defensoria Pública – estamos fazendo nossa parte

21/08/2016

Por Eufrásia Maria Souza das Virgens - 21/08/2016

"Fábula utilizada por Betinho como metáfora de solidariedade"
Houve um incêndio na floresta e enquanto todos os bichos corriam apavorados, um pequeno beija-flor ia do rio para o incêndio levando gotinhas de água em seu bico. O leão, vendo aquilo, perguntou para o beija-flor: "Ô beija-flor, você acha que vai conseguir apagar o incêndio sozinho?" E o beija-flor respondeu: "Eu não sei se vou conseguir, mas estou fazendo a minha parte".

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O saudoso sociólogo Herbert de Souza, semeador de esperança, carinhosamente chamado Betinho, que idealizou a mobilização nacional contra a miséria, contra a fome e pela vida, grande campanha de cidadania, e o primeiro a se preocupar em saber quantas crianças existiam nas ruas do Rio de Janeiro, contava a fábula do beija-flor como metáfora da solidariedade.

Apesar de saber que não acabaria com o incêndio, o beija-flor fez sua parte ao levar pequenas gotas de água.

Assim nos sentimos como defensoras e defensores públicos: a despeito de saber que nosso papel no sistema de garantia de direitos, tal como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê articulação de órgãos governamentais e não governamentais para proteção integral de crianças e adolescentes, não é suficiente para fazer valer os direitos de crianças e adolescentes, vamos fazendo nossa parte.

Um exemplo de atuação que nos motiva a essa reflexão é a defesa do adolescente a quem se atribui ato infracional e que tem sido encaminhado rotineiramente pelas varas da infância e da juventude de todo o Estado para unidades do chamado sistema socioeducativo, que tem se revelado ao longo do tempo muito mais punitivo e violador de direitos do que qualquer outra coisa.

Desde o relatório elaborado em 2005 pela Human Right Watch[1] sobre violações de direitos no sistema socioeducativo no Estado do Rio de Janeiro, vários foram os episódios de morte e violência, praticada pelos agentes ou adolescentes entre si, a exemplo das mortes ocorridas em 2008 no CTR (Centro de Triagem e Recepção, atualmente CENSE Gelson Carvalho do Amaral) e no ESE (Educandário Santo Expedito, localizado no complexo penitenciário de Bangu, chamado por adolescentes e familiares de Bangu 0), em 2014 no CENSE Dom Bosco (antigo Padre Severino) e 2015 na EJLA (Escola João Luiz Alves).

Com a criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio de Janeiro, desde 2011 vêm sendo elaborados relatórios sobre o sistema socioeducativo.

No mês de julho de 2014, durante a copa do mundo, no dia do jogo do Brasil contra Alemanha, ocorreu dentro de unidade de internação provisória (CENSE Dom Bosco) a morte, segundo alegação na época, provocada por outros adolescentes do mesmo “alojamento”, de um adolescente internado provisoriamente por determinação do Juízo da Infância da Comarca de Petrópolis em único procedimento de apuração de ato infracional análogo a tráfico de drogas, que de acordo com a lei não deveria ensejar aplicação de medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios constitucionais de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

No dia 05 de agosto de 2016, dia da abertura dos jogos olímpicos, ocorreu um incêndio na unidade do DEGASE chamada Escola João Luiz Alves, situada na Ilha do Governador, estando sendo apuradas as circunstâncias em inquérito na delegacia da área (37ª DP) tendo sido registrada ocorrência de incêndio provocado pelos adolescentes, que alegam ter feito “gambiarra” na fiação para assistir a abertura da olimpíada, realizada aqui na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Interessante notar que gambiarra foi um termo muito utilizado na abertura da olimpíada.

Em decorrência desse incêndio morreu um adolescente, também da comarca de Petrópolis, que havia respondido a procedimento de apuração de ato infracional análogo a tráfico e que, apesar da excelente e cuidadosa defesa realizada pelo Defensor Público da Comarca de Petrópolis, Rômulo Araújo de Souza, recebeu medida de internação e cujo recurso interposto pela Defensoria Pública na referida comarca, perdeu seu objeto, tendo sido recebido e exercido juízo de retratação para manter a medida privativa de liberdade no dia 06 de julho, um mês antes da morte do adolescente que foi internado com o argumento de ser a medida mais adequada e que atenderia à necessidade de ressocialização.

Como o recurso não será julgado, em razão da perda do objeto com a morte do adolescente que recebeu medida de internação para ser afastado da convivência perniciosa com traficantes, entendendo o juízo que a medida contribuiria para reeducação e reintegração à família e à sociedade, cabe destacar e advertir o quanto o ambiente do sistema socioeducativo tem sido pernicioso e causador de sofrimento e até mesmo morte.

As últimas palavras desse adolescente, ao ser socorrido no dia 05/08 no Hospital Souza Aguiar, que faleceu no dia seguinte em consequência das queimaduras em mais de 50% do corpo e em todo o rosto, segundo a médica que o atendeu na emergência, foi “me coloca para dormir”.

Não cabe mais no atual estágio da evolução legislativa, e mais do que isso dos avanços da Constituição de 88 e ratificação pelo Brasil de instrumentos internacionais, a exemplo da Convenção da ONU sobre direitos da Criança e Convenção 182 da OIT sobre piores formas de trabalho infantil, continuar com discurso de que as medidas privativas de liberdade seriam adequadas ao acompanhamento do adolescente e oferecimento das orientações indispensáveis ao afastamento das situações de risco, o que estaria talvez conforme o Código de Menores.

A medida privativa de liberdade nunca pode ser entendida como um benefício para reflexão ou para rever a prática de atos infracionais, principalmente diante de um quadro de superlotação em todas as unidades do sistema socioeducativo, havendo ações civis públicas em relação a praticamente todas as unidades, inclusive recentemente criadas, como a unidade de Campos.

Não nos compete aplicar a lei para reconhecer o direito ao cumprimento de medida em meio aberto diante da superlotação, em se tratando de ato infracional análogo a crime cometido sem violência ou ameaça contra a pessoa, como está no artigo 49, II, da Lei 12.594/2012 (SINASE);

Também não cabe ao defensor público aplicar a lei e a Constituição para observar os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;

Tampouco é nosso papel aplicar a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que reconhece a participação de crianças e adolescentes no tráfico de drogas assim como na luta armada, dentre outras, como piores formas de trabalho infantil.

Sabemos que nossas ações na esfera coletiva assim como as defesas nos procedimentos de apuração de atos infracionais e recursos, inclusive medidas em esfera internacional, como petição feita em conjunto pela Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) e Núcleo de Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro através de grupo de trabalho com a participação dos valiosos colegas Fábio Amado, Daniel Lozoya, Gislaine Kepe, Rodrigo Azambuja, Renata Tavares e Daniela Consídera, não são suficientes para apagar o incêndio ou evitar as tragédias anunciadas em unidades superlotadas e sem a estrutura adequada ao princípio constitucional da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento nem à normativa nacional e internacional, mas estamos fazendo nossa parte, tal qual o beija-flor com gotas d´água tentando ajudar a apagar o incêndio na floresta.


Notas e Referências:

[1] www.hrw.org/de/.../2005/.../brasil-abusos-ocultos-contra-jovens-internos-n...


.IMG_8046 (1)Eufrásia Maria Souza das Virgens é Defensora Pública coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e conselheira estadual de defesa da criança e do adolescente (CEDCA).

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Imagem Ilustrativa do Post: Beija-Flor // Foto de: Iron Pedreira Alves // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/62565241@N02/8701239017/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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