Por Juliano Keller do Valle - 25/04/2015
O filme Pixote, a lei do mais fraco, foi um filme brasileiro produzido e dirigido pelo premiado Hector Babenco, lançado em 1980, após iniciada a abertura política desencadeada pela Lei da Anistia (Lei 6.683/79) e pela edição de novo texto que regulava a doutrina da situação irregular esculpida pelo Código de Menores (Lei 6.697/79).
Ambas legislações editadas, separadas por um curto espaço de tempo – a primeira em agosto, a segunda em outubro daquele mesmo ano – sublinharam para a volta, lenta e gradual ao regime democrático.
Mesmo assim, não havia um tratamento adequado a situação do chamado ‘menor’ em situação de risco[1], até porque o Código de Menores sempre fez confusão conceitual entre carência/delinquência, criando-se “[...] sistema sociopenal de controle de toda a infância socialmente desassistida, como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil[...]”[2].
Naquele filme, Pixote - interpretado pelo ator Fernando Ramos da Silva – era o retrato do adolescente brasileiro em evidente situação de risco, dada a carência total dos meios necessários ao seu pleno desenvolvimento afetivo, moral, material e psicológico.
A confusão entre carência e delinquência[3] do Código de Menores redundou na incompreensão do Estado no olhar sob Pixote acerca de seu ritual de passagem de criança para adolescente, e os delitos praticados no decorrer daquele filme.
Com o advento definitivo dos ventos democráticos pós Constituição de 1988, procurou-se dar efetividade a doutrina da proteção integral, opção adotada pelo constituinte após intensos e calorosos debates, autorizando, de per si, a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
Não sem razão a metáfora utilizada no presente texto sobre o filme que retratou toda uma geração de excluídos foi a solução brasileira proposta para toda a sociedade ao colocar em vigor um dos textos mais avançados à época, reconhecido por organismos internacionais de elevada conceituação em matéria de direitos humanos e defesa às crianças e adolescentes.
Ao indicar que a criança e o adolescente deixariam de ser objeto de direito para sujeito de direito[4], atribuiu à família, sociedade e ao Estado o dever de zelar pela prevalência daqueles direitos[5], como prioridade absoluta.
O discurso de Lei e Ordem que hoje bate às portas das academias, do ambiente forense, e principalmente do legislativo de que ‘bandido bom é bandido morto’ para a extensão ‘adolescente infrator bom é adolescente morto’ contido na Proposta de Emenda Constitucional 171/1993, ignora olimpicamente os direitos humanos!
Por favor, não estou aqui a defender como muitos filósofos de botequins pensam que ao defender direitos humanos, se defende o criminoso, o desviado, e que sou contra o sujeito de bem.
Muito pelo contrário.
Nilo Batista, um dos maiores juristas em atividade no país, assim assinalou quanto ao direitos humanos e sua prevalência, não só ao adolescente infrator mas a todos nós, haja vista que “[...] a ideia principal dos direitos humanos é que toda a pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remuneração digna, aposentadoria, instrução, liberdade, manifestação de pensamento, livre associação e reunião, etc.”[6]
E vai mais além.
O senso comum defende que o ECA é recheado de direitos e pouquíssimos deveres. Pelo contrário. Como se sabe, o instituto da medida socioeducativa existe justamente porque se cobram responsabilidades do adolescente.
Todavia, o discurso para as massas sempre será, de que se aqueles que furtam, que matam, que praticam os atos infracionais mais hediondos e não são responsabilizados são filhos dos que defendem os direitos humanos[7], quando na verdade a propensão para o crime é muito mais do Estado que “[...] permite a carência, a miséria, a subnutrição e a doença – em suma, que cria a favela e as condições sub-humanas de vida”[8].
Jock Young, denunciou que vivemos, na realidade, em uma sociedade que assume o ato de separar e que exclui o outro[9]. O câmbio de uma modernidade para a modernidade recente, cujas forças de mercado transformaram as esferas de produção e consumo, mancharam nossa identidade, tornando-a precária e nosso futuro incerto, cujo sentido “[...] disseminado de demandas frustradas e desejos não satisfeitos”[10], é muito mais decisiva para a escolha e prática de atos delitivos do que possamos supor[11], ainda mais quando se fala em pessoas em processo de formação, como os adolescentes.
A ausência total de discussão séria acerca da proposta de emenda constitucional para a redução da maioridade penal apenas confirma que a imposição do medo pelas esferas do poder, cujo fomento ao inimigo – invisível ou inexistente – é técnica aperfeiçoada cuja finalidade é legitimar o regime opressor e controlar via opção penal, que dessa forma, seduz “[...] à massa que vive numa insegurança imaginária a tão almejada segurança, especialmente de neuróticos”[12].
O astro de Pixote, Fernando Ramos da Silva, que foi tirado da miséria e da marginalidade direto ao estrelato, morreu anos depois vítima das mazelas sociais que o Código de Menores prometeu coibir e não cumpriu.
O sentimento é de que o ECA foi apenas uma quase aposta, em verdade, um blefe, apenas um jogo de cena para a volta ao rigor desenfreado de tão triste memória.
Notas e Referências:
BATISTA, Nilo. Punidos em Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje, Rio de Janeiro: Revan, 1990.
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, São Paulo: Manole, 2003.
ROSA, Alexandre Morais da; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: a ostentação do horror. Rio de Janeiro\: Lumen Juris, 2014.
SILVA, Marcelo Gomes. Menoridade Penal: uma visão sistêmica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
[1] Art. 2º Para efeitos desse Código, considera-se em situação irregular o menor: I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para promove-las; II – vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III – em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou cominitária; VI - autor de infração penal.
[2] MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, São Paulo: Manole, 2003. p. 42.
[3] SILVA, Marcelo Gomes. Menoridade Penal: uma visão sistêmica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 106.
[4] Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
[5] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[6] BATISTA, Nilo. Punidos em Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje, Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 158.
[7] BATISTA, Nilo. Punidos em Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje, Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 159.
[8] BATISTA, Nilo. Punidos em Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje, Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 159.
[9] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 15.
[10] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 15.
[11] YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 16.
[12] ROSA, Alexandre Morais da; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: a ostentação do horror. Rio de Janeiro\: Lumen Juris, 2014, p. 98.
Juliano Keller do Valle é Mestre em Ciência Jurídica (CPGD/UNIVALI). É Professor de Direito Processual Penal na Univali e IES/FASC e da Especialização em Ciências Criminais do CESUSC. Email: julianokellerdovalle@gmail.com
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