Sobre as “saidinhas” da Lei de Execuções Penais: combatendo o senso comum

16/08/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

Não passa ano sequer sem que as chamadas “saidinhas” gerem polêmica[1].

Em regra, as críticas giram em torno de duas categorias principais: a) aquelas que relacionam as datas comemorativas em que esse direito costuma ser executado (dias das mães e dos pais, por exemplo) aos crimes pelos quais os apenados foram condenados, especialmente em casos de grande repercussão, como os de Suzane von Richthofen e Alexandre Nardoni; b) aquelas que consideram as “saidinhas” uma espécie de estímulo para a fuga e, consequentemente, uma causa de aumento da criminalidade.

Para além da controvérsia que cerca o tema, tramitam no Congresso Nacional projetos de alteração legislativa que propõe restringir ainda mais as possibilidades de saída temporária[2] ou, em hipóteses mais severas, revogá-la[3], sob o pretexto de que o instituto “retira a credibilidade da Justiça e reforça a sensação de impunidade”[4].

Na tentativa de desmistificar o instituto da “saída temporária”, previsto na Lei de Execução Penal (LEP), este breve artigo propõe uma análise da legislação, com o objetivo de estabelecer os requisitos para a sua concessão, sob a perspectiva dos princípios da isonomia e da intervenção mínima. Ao final, busca responder, com fundamentos doutrinários e empíricos, a ambas as críticas.

A saída temporada, como esclarece Renato Marcão, integra o rol de direitos dos presos e está disposta na Lei de Execução Penal com a finalidade de garantir ao apenado em privação de liberdade o retorno gradual ao convívio em sociedade, “com atividades que interessam à (re)estruturação de sua formação moral, ética e profissional, como mecanismos aptos a viabilizar sua (re)integração social” [5].

O autor faz remissão à Exposição de Motivos da Lei[6], cujos itens 127, 128 e 131 justificam a inserção do instituto na prática brasileira. Registrou o legislador, ainda em 1983, mas já consciente das críticas que o sucederiam, serem as autorizações de saída temporária importantes instrumentos para atenuar o rigor da pena corporal, definidas por Elias Neuman como “um considerável avanço penalógico e os seus resultados são sempre proveitosos quando outorgados mediante bom senso e adequada fiscalização”[7].

Trata-se, em síntese, do direito subjetivo das pessoas privadas de liberdade[8] de reingressarem, aos poucos, à sociedade, podendo conviver com seus familiares[9], frequentar curso profissionalizante e participar de outras atividades que contribuam para sua reinserção.

Conforme consigna o artigo 122 da LEP, fazem jus à saída temporária somente os apenados que cumprem pena no regime semiaberto. Nessa espécie, vale lembrar, estão aqueles condenados a penas fixadas entre 04 (quatro) e 8 (oito) anos, nos termos do artigo 33, § 2º, ‘b’ do Código Penal; bem como aqueles que progrediram a partir do regime fechado, seja após o cumprimento de 2/5 da pena para crimes hediondos, seja depois de cumpridos 1/6 do tempo da sanção para crimes não hediondos.

O artigo 123 fixa como requisito subjetivo indispensável para a concessão do direito de afastar-se temporariamente do cárcere a comprovação de comportamento adequado, a ser aferido de acordo com informações da administração penitenciária. Assim, o apenado que tiver praticado qualquer falta disciplinar – independente da gravidade - não tem direito ao benefício.

Como critério objetivo, o referido artigo aponta a necessidade do cumprimento de 1/6 da pena, se o condenado foi primário, e ¼ no caso de reincidência. Vale destacar, nesse aspecto, que “[i]ngressando o condenado por progressão no regime semiaberto, após o cumprimento de um sexto da pena no regime fechado, não será necessário que cumpra mais um sexto, agora no regime semiaberto, para que possa obter o benefício”[10].

Já as condições de tempo e modo para o cumprimento da saída temporária estão elencadas no artigo 124 da LEP, segundo o qual a autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, sendo renovável por mais 4 (quatro) vezes no decorrer do ano.

A Lei também estabelece obrigações ao apenado, entre as quais o fornecimento do endereço onde poderá ser encontrado, o recolhimento noturno e a proibição de frequentar bares ou casas noturnas. Cabe, ainda, ao Juízo da Execução impor ao condenado outras condições que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e sua situação pessoal.

Veja-se que as restrições legais ao direito subjetivo de saída temporária se concentram no espectro da própria execução da pena, em nada atrelando-se aos aspectos penais ou processuais do fato pelo qual o apenado foi condenado.

Por isso, transitada em julgado a condenação e dado início à execução penal, o tratamento conferido aos apenados deve ser isonômico. Como explica Rodrigo Roig, o artigo 41, inciso XII da LEP assegura às pessoas presas igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena, norma que deve ser interpretada de modo a abranger a isonomia entre os presos, o que demonstra que a Lei não transige com os preconceitos de qualquer natureza[11].

Aplica-se, portanto, à execução penal o princípio da isonomia, da maneira como sintetiza Boaventura de Sousa Santos: conferindo aos apenados o direito de serem iguais sempre que a diferença os inferioriza; bem como o direito de serem diferentes sempre que a igualdade os descaracteriza[12].

E não poderia ser diferente. Eventuais circunstâncias desfavoráveis, agravantes e causas de aumento relacionadas ao fato praticado pelo agente têm momento de majoração definido no Código Penal. Quando se torna definitiva a pena cominada ao condenado, os elementos utilizados para potencializar a reprovabilidade do delito restam superados pela autonomia da fase de executória.

É dizer, remetendo o leitor aos casos citados no parágrafo inaugural, que não importa – para fins da saída temporária prevista na Lei de Execução Penal – a qualidade da vítima, seu parentesco com o condenado ou o contexto que em foi executado o crime.

O direito à saída temporária, assim como os outros direitos subjetivos do condenado, depende da desvinculação ao delito que deu origem à pena; do contrário, há claro bis in idem – dupla punição pelo mesmo fato.

Mais que isso, depende necessariamente da desvinculação entre o direito e a moral, conforme escreve Luigi Ferrajoli: “somente o abandono de qualquer moralismo jurídico consente à ciência do direito a possibilidade de reconhecer a validade das normas jurídicas com base em parâmetros internos ao ordenamento questionado, independentemente das suas adesões a parâmetros de avaliação externa”[13].

Assim, se durante o processo penal o cidadão só pode ser punido por aquilo que fez, e não pelo que é – como preleciona o chamado direito penal do fato -, na fase de execução o condenado se vincula exclusivamente à pena e ao seu cumprimento, independente do que tenha feito ou de quem seja.

E, se o princípio da isonomia veda o tratamento desigual entre pessoas privativas de liberdade que encontram-se em situações idênticas, o princípio da intervenção mínima assegura que a ingerência do Estado deve ser vislumbrada tão-somente diante de violação aos interesses ou valores mais relevantes.

A intervenção mínima, de acordo com Rodrigo Puig, se visualiza como garantia prevista no item 57 das Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos promulgadas pela Organização das Nações Unidas, segundo o qual: “a prisão e outras medidas que resultam na separação de um criminoso do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem à pessoa o direito de autodeterminação, por a privarem da sua liberdade. Logo, o sistema penitenciário não deve, exceto pontualmente por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação”[14].

Diante disso, os direitos assegurados às pessoas privadas de liberdade – principalmente, aqueles instituído com fundamento na reinserção social do apenado e como forma de atenuar o sofrimento gerado pela reclusão – somente poderiam ser questionados quando colocado em risco interesse ainda mais expressivo.

Concretamente, esse não é o caso das saídas temporárias. Dados divulgados por Secretarias Estaduais de Segurança de todo Brasil demonstram que a taxa de retorno dos detentos aos estabelecimentos prisionais após as chamadas “saidinhas” é superior a 90%.

Em Minas Gerais, dados divulgados em 2016 revelaram que 96,4% dos 4.480 presos beneficiados com as saídas temporárias para Natal e Ano Novo voltaram espontaneamente no prazo previsto de até sete dias[15]. Em São Paulo, informações da Secretaria de Administração Penitenciária coletadas em 2017 demonstraram que, nos últimos 10 anos, a taxa de evasão durante as saídas não ultrapassaram os 6%[16].

No ano de 2019, os índices de evasão têm sido ainda inferiores. No Distrito Federal, somente 14 dos 1.084 detentos não retornaram para a Penitenciária após a saída de Dia dos Pais[17]. Já no estado do Pará, cerca de 4% dos internos evadiram-se após a saída de Dia das Mães[18]. Enquanto isso, os percentuais de evasão nos estados se Santa Catarina, são inferiores a 2,8%[19].

Esses números precisam ser conhecidos e considerados antes de qualquer discussão sobre o direito de saída temporária, porquanto demonstram que sua finalidade de reintegração social do apenado tem sido cumprida em proporções muito superiores às taxas de evasão.

Por óbvio, a fuga de detentos, ainda que no regime semiaberto, é um problema. Todavia, a própria Lei de Execução Penal prevê punições severas ao apenado que deixa de cumprir a obrigação de regresso à prisão após o prazo de saída autorizado.

O artigo 118 da LEP indica que o condenado que pratica falta grave está sujeito a ter sua execução regredida, com transferência para regime mais rigoroso (fechado). Por outro lado, o artigo 125 versa sobre a revogação do benefício de saída temporária quando descumpridas as condições impostas.

Não se aplica, por conseguinte, às saídas temporárias, o argumento utilitarista da “maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas”, em que se sacrificam os poucos direitos daqueles que suportam a pena em prol da segurança social no modelo de direito penal máximo.

Primeiro, porque vige no âmbito das execuções penais o princípio da intervenção mínima, cabendo ao Estado interferir, exclusivamente, nos casos em que o apenado deixa de cumprir o dever de retornar ao cárcere. Segundo, porque os dados empíricos coletados são uníssonos no sentido de que, em regra, o direito às saídas temporárias tem suas condições respeitadas pela grande maioria dos detentos.

Enfim, o olhar técnico e cuidadoso sobre a realidade revela que as críticas feitas ao direito de saída temporária - nos termos em que regidos pela Lei de Execução Penal, com fundamentos nos princípios da isonomia e da intervenção mínima e com base em dados empíricos – são frutos do senso comum e do moralismo que insistem em tomar o protagonismo em debates jurídicos.

O que se espera, em respeito a esses princípios, é que casos de grande repercussão midiática e estatísticas sem qualquer embasamento fático deixem de servir de pretexto para que os poucos direitos das pessoas encarceradas sejam colocados em xeque, fazendo valer as garantias que impedem o homem de deixar de ser pessoa para tornar-se coisa[20].

 

Notas e Referências

[1] A bola da vez foi o comentário do Padre Fábio de Melo no Twitter: “Não entendo de leis, mas a 'saidinha' deveria ser permitida somente no dia de finados - para que visitassem os túmulos dos que eles mataram”. Também se manifestaram, pela mesma rede social, o Presidente da República Jair Bolsonaro (“- O caso Isabella, ocorrido em 2008, repercutiu em todo o Brasil. A criança de 5 anos foi jogada pela janela de seu apartamento. Hoje o pai, condenado pelo assassinato, é beneficiado pela saída temporária de dia dos pais. Uma grave ofensa contra todos os brasileiros. Lamentável!”) e o Ministro da Justiça Sérgio Moro (“Tem coisas na legislação brasileira que não dá para entender, como diz o PR @jairbolsonaro. Estamos trabalhando para mudar. No projeto de lei anticrime, consta a vedação de saídas temporárias da prisão para condenados por crimes hediondos”).

[2] Nesse sentido, o Pacote Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro proíbe a saída temporária para presos condenados por crimes hediondos, tortura ou terrorismo. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2019.

[3] Veja-se o Projeto de Lei do Senado n. 31, de 2018. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132160>. Acesso em: 12 ago. 2019.

[4] Nesse sentido, a justificativa apresentada pelo Senador Ciro Nogueira (PP-PI) para o Projeto de Lei do Senado n. 31, de 2018: “Todavia, o que vemos, ano após ano, é o contrário da ressocialização. Expressivo número dos condenados não retorna ao estabelecimento penitenciário. A sociedade assiste estarrecida esses indivíduos, que receberam o decreto condenatório do Estado, voltarem a cometer graves crimes; voltarem a matar, roubar e estuprar, o que retira a credibilidade da justiça e reforça a sensação de impunidade”. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7352696&disposition=inline>. Acesso em: 12 ago. 2019.

[5] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 206.

[6] Disponível para consulta em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7210-11-julho-1984-356938-exposicaodemotivos-149285-pl.html>. Acesso em: 12 ago. 2019.

[7] “131. Na lição de Elias Neuman, as autorizações de saída representam um considerável avanço penalógico e os seus resultados são sempre proveitosos quando outorgados mediante bom senso e adequada fiscalização (Prisión aberta, Buenos Aires, 1962, págs. 136/137).”

[8] Pavarini e Giamberardino mencionam que o chamado “direito dos presos” é um tema novo, pertencente a uma dimensão prescritiva própria do pós-Segunda Guerra Mundia. Sobre o percurso até o reconhecimento do recluso como sujeito de direitos, veja-se: PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 230.

[9] “A extensão do conceito de família (até mesmo diante do silencio legal) deve ser a mais ampla possível, englobando quaisquer familiares. A visita a companheiros e companheiras também deve ser franqueada (art. 1.723 do Código Civil), inclusive em relações homoafetivas. Na verdade, tendo em vista a necessidade de proporcionar a manutenção de vínculos sociais por parte da pessoa presa, a expressão ‘família’ deve receber interpretação extensiva, abrigando também pessoas amigas. Nesse sentido, a 5ª Turma do STJ já realizou interpretação extensiva do termo ‘família’, para abranger pessoa amiga (agente religioso que prestou auxílio espiritual ao condenado por período de cerca de cinco anos, com habitualidade). A Corte reconheceu, enfim, que a visitação do condenado ao seu conselheiro consiste em atividade que concorre para o retorno ao convívio social, nos termos do inciso III, do art. 120 da LEP (STJ, Habeas Corpus n. 175674, 5ª T., j. 10-5-2011)”. Nesse sentido: ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016. E-book. p. 233.

[10] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 212.

[11] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016. E-book. p. 37.

[12] SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999. p. 44.

[13] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 206.

[14] Disponível para consulta em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[15] Disponível para consulta em: <http://www.seguranca.mg.gov.br/ajuda/story/2889-retorno-de-presos-de-saida-temporaria-e-maior-em-minas-do-que-no-resto-no-pais>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[16] Disponível para consulta em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/09/95-dos-presos-de-sp-retornaram-apos-saidas-temporarias-nos-ultimos-10-anos.htm>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[17] Disponível para consulta em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/08/09/interna_cidadesdf,776349/saidao-de-dia-dos-pais-beneficia-mais-de-1-2-mil-presos-do-df.shtml>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[18] Disponível para consulta em: <http://www.susipe.pa.gov.br/noticias/96-dos-internos-retornam-ap%C3%B3s-sa%C3%ADda-tempor%C3%A1ria-do-dia-das-m%C3%A3es-2019>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[19] Disponível para consulta em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/evasao-de-presos-apos-saidas-temporarias-de-fim-de-ano-em-sc-e-menor-em-2019>. Acesso em: 13 ago. 2019.

[20] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 81.

 

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