Sobre a sociedade classista-racista-sexista, a violência doméstica contra as mulheres e meninas brasileiras e a pandemia do novo coronavírus     

09/03/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry

No final de 2019, em uma palestra em território brasileiro, a intelectual e ativista feminista italiana Silvia Federici falou sobre como a violência doméstica contra mulheres era funcional para a criação de novos trabalhadores e, consequentemente, para a reprodução e manutenção do sistema capitalista (racista e sexista). Discussão e teoria em movimento há anos, que pode ser aprofundada ao engendrarmos a realidade mundial, latina e brasileira. Questão essencial discutida já antes da chegada das primeiras notícias de Wuhan; bem antes da quarta-feira de cinzas com a notícia do primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus no território brasileiro; e levantada, no referido momento, em uma distância temporal das mais de 120 mil agressões físicas notificadas contra mulheres e do absurdo aumento das taxas de feminicídio no ano de 2020, embora teórica e politicamente muito próxima. 

Com a pandemia do novo coronavírus, o problema da violência doméstica fica ainda mais evidente e, debruçar-se sobre sua origem, torna-se cada vez mais urgente. Além do aumento da quantidade de medidas protetivas concedidas entre janeiro e julho de 2020, em relação ao ano de 2019, as taxas de feminicídio também subiram. De acordo com o relatório Um Vírus e Duas Guerras (2020), elaborado em parceria por sete veículos de jornalismo independente, entre março e abril de 2020, ocorreu um feminicídio a cada nove horas, o número de feminicídios subiu de 117 para 143, alcançando uma média de três mortes por dia. 

Dos estados brasileiros investigados, entre os meses de abril e maio, apenas houve redução nas taxas de feminicídio em três desses: Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Segundo o referido relatório, o agravamento mais crítico foi o estado do Acre, com um aumento de 300% no número de feminicídios, seguido pelo estado do Maranhão com 166,7% e o Mato Grosso, com um aumento de 150%.

Na Paraíba, através dos dados de violência doméstica estaduais obtidos nos relatórios mensais do Centro da Mulher 8 de Março (CM8M), entidade que milita, principalmente, na luta contra a violência praticada às mulheres e os abusos sexuais sofridos pelas crianças e adolescentes, podemos também perceber o evidente aumento de feminicídios e abusos sexuais. No relatório anual do CM8M, foi levantado que aconteceram, em 2020, aproximadamente 102 agressões graves, 43 tentativas de feminicídio, 18  estupros e 42 abusos sexuais com crianças e adolescentes. Embora não se trate de um dado oficial, a metodologia cuidadosa da pesquisa desenvolvida pelo CM8M faz uma pesquisa diária nos principais portais de notícias da Paraíba. Portanto, é mister destacar que os dados do referido relatório foram levantados a partir do que era divulgado pela mídia e, evidentemente, assim como outros relatórios, há uma subnotificação dos casos.

De acordo com uma matéria do portal G1-PB, as mortes violentas (de homens e mulheres) cresceram cerca de 22% em 2020, após 8 anos de queda. Esses dados foram coletados a partir do Anuário da Segurança Pública, divulgados pelo Governo do Estado, e apontam que 93 mulheres foram vítimas de mortes violentas, 20 a mais do que em 2019, em que, das 93, 36 foram classificadas como feminicídio, aproximadamente 38,7%. 

É importante pontuar que, assim como os abusos sexuais sofridos por crianças e adolescentes, os principais agressores e autores de feminicídio possuem, na maioria dos casos, algum tipo de vínculo com a vítima. De acordo com algumas vítimas, essa proximidade dificulta denúncias ou mesmo uma reação. Em outras palavras, uma das dificuldades para se acabar com esse ciclo de violência, reside no fato de que se trata de agressões vindas por quem algum tipo de afeto ainda é nutrido, são ex-namorados, maridos, pais, irmãos, filhos, indivíduos tão próximos dessas meninas e mulheres.

Nesse contexto, vale destacar um fenômeno que tem sido cada vez mais frequente, principalmente nesse período, que é o assassinato de maridos e namorados com um longo histórico de agressões ou em casos pontuais de legitima defesa. A respeito disso, a criminóloga britânica Carol Smart, em seu livro "Women, Crime and Criminology" (1977) no qual faz um estudo detalhado sobre as mulheres autoras e que sofrem algum delito, ainda que tenha fundamentado seus estudos na realidade inglesa dos anos 1970, também discutiu sobre essa questão. De acordo com ela, a maioria dos crimes de homicídio cometidos pelas mulheres tem como vítimas pessoas do contexto familiar, sendo normalmente crimes de autodefesa. Além disso, Smart (1977) também aponta que os delitos têm relação direta com o momento histórico em que são praticados e criminalizados. Portanto, não nos surpreende o fato de que em um crescimento de violência doméstica contra a mulher, também haja um crescimento de homicídios de agressores, maridos e namorados.

Essa relação de proximidade entre vítima e agressores é, também, grande responsável por uma situação de subnotificação dos casos de violência contra a mulher. Os agressores, por estarem em convivência próxima, podem facilmente impedir as mulheres na busca pelo socorro. Compreendendo esse contexto, especialistas consideram que as estatísticas desses relatórios se distanciam da realidade vivenciada pela população feminina. Se em condições normais, essa realidade já é marcada pela subnotificação, estima-se que as marcas são mais profundas no contexto de isolamento e crise em que vivemos.

Portanto, embora o aumento da violência contra as mulheres seja evidente em todos os relatórios citados, não podemos deixar de mencionar que há a subnotificação desses casos. Além do que foi dito anteriormente, a subnotificação também ocorre devido a outras dificuldades na comunicação e informação, às dificuldades no acesso aos canais de denúncia, bem como a uma situação de desproteção e violação de direitos contra as mulheres que se engendra ao funcionamento de uma sociedade classista-racista-sexista.

Nesse sentido, não é à toa que as principais vítimas de violência são as mulheres negras, em situação de pauperização e jovens. Ou seja, embora o fenômeno da violência doméstica atinja todas as mulheres, ele não as afeta de forma igual. Angela Davis, em seu livro "Mulheres, raça e classe", discute, entre outras coisas, a respeito das especificidades e diferenças entre as mulheres de acordo com a sua raça e classe, concluindo que as categorias estruturais raça, gênero e classe não deveriam ser analisadas de forma dissociada. Ainda, a mesma autora, dessa vez em seu livro "Estarão as prisões obsoletas?", destaca novamente a hiperssexualização imposta e sofrida pelas mulheres negras e latinas, e como esse fenômeno está ligado a uma justificativa dos abusos cometidos, dentro e fora das instituições. Nesse sentido,  debruçando-se sobre o funcionamento dos sistemas de justiça, Davis (2020) afirma: “A criminalização de mulheres negras e latinas inclui imagens persistentes de hipersexualidade que servem para justificar os abusos sexuais cometidos contra elas tanto dentro quanto fora da prisão".

Assim como discutido por Angela Davis, outras importantes feministas (Lélia Gonzalez, Silvia Federici, Cinzzia Aruzza, Tithi Bhattacharya, Danièle Kergoat, entre outras) também buscaram dar a necessária centralidade às categorias estruturais: raça-sexo-classe. A partir desse entendimento do funcionamento da sociedade, é nítido o fato de que as instituições e as relações da sociedade como um todo se constroem e são construídas a partir de uma lógica sexista-capitalista-racista.

Nesse sentido, podemos compreender que o problema da violência contra as meninas e mulheres está intrinsecamente relacionado à forma que a sociedade se estrutura, bem como aos efeitos, causas e consequências das relações sociais concretas. Ao buscar essa compreensão, fica evidente a historicidade dessa questão, da sociedade e de suas instituições. Essa reflexão é importante, pois nos direciona para soluções políticas da violência contra a mulher, muito além do que saídas que se resumem ao punitivismo e encarceramento.

Consideramos como essencial, para uma diminuição nas taxas de violência direcionadas às jovens e mulheres, que os caminhos para uma possível solução partam das pessoas e movimentos sociais, e que, por sua vez, esses movimentos fundamentem suas ações em teorias críticas, bem como compreendam os limites e as determinações das instituições, sobretudo das prisões. É evidente que o Estado pode e deve ser pressionado para pensar e concretizar alternativas para que estejam relacionadas à melhor qualidade de vida desse público, como: melhorias na educação, na saúde, na moradia, alimentação para todos, mais empregos. Alternativas como essas, que combatam o racismo, a dominação masculina, a pauperização e exploração também fazem parte dessa luz de fim de túnel. 

Embora a situação seja desanimadora, é importante lembrar que muito já foi conquistado nessa luta. De relatórios, discussões e posicionamentos políticos de deputadas e deputados evidenciando a questão, passando por vizinhas que criam alternativas para a proteção das mulheres da comunidade, até aplicativos pensados e criados para a denúncia de violências. É preciso não esquecer que muito ainda temos a somar nessa luta, ou com cantou Milton Nascimento: “Se muito vale o já feito, mais vale o que será”.

 

                                    

Notas e Referências

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-de-feminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/10/4881286--a-cada-2-minutos-uma-mulher-e-agredida-no-pais.html

https://projetocolabora.com.br/ods5/mulheres-enfrentam-em-casa-a-violencia-domestica-e-a-pandemia-da-covid-19/

https://projetocolabora.com.br/especial/um-virus-e-duas-guerras/

https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/10/4881286--a-cada-2-minutos-uma-mulher-e-agredida-no-pais.html

 

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