Por Bartira Macedo de Miranda Santos – 26/10/2016
Sou nordestina, da caatinga, do sertão. Cresci vendo vaquejada. Meu pai teve parque de vaquejada. Toda cidade do Nordeste tem parques de vaquejada, públicos ou particulares. A Lei 10.220/2001 classifica a vaquejada como prova de rodeio e institui normas gerais relativas à atividade do peão, equiparando-o a atleta profissional. Porém, em 06/10/2016, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN 4.983-CE, considerou ilegal a prática da vaquejada.
A ADIN 4.983-CE (Ação Direta de Inconstitucionalidade) foi proposta pelo Procurador Geral da República (chefe do Ministério Público Federal) em face da Lei nº 15.299, de 8 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como atividade desportiva e cultural naquele Estado.
Na petição inicial, os subscritores aduzem que a Constituição Federal é um documento que espelha o tipo de sociedade que se quer ser e que ela tutela – além dos direitos individuais – “os chamados direitos de terceira geração ‘denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade’”. Alegam que a vaquejada enseja danos aos bovinos e equinos, podendo ser taxada de prática que implica em tratamento cruel e desumano aos animais que dela participam. Assim, enquadram a questão, juridicamente, como um conflito entre a preservação do meio ambiente e a proteção conferida às manifestações culturais. Com isso, sofisticamente, colocam a solução em um quadro equivocado, como se bastasse constatar a prática da vaquejada para se configurar a violação da proteção ao meio ambiente, que deveria ser preservado enquanto bem jurídico superior, se comparado às manifestações culturais.
A decisão do STF incorre no mesmo equívoco. Para o Ministro Marco Aurélio, relator da ADIN 4.983-CE, trata-se de conflito entre normas constitucionais, tendo de um lado, o art. 225, que assegura o direito ao meio ambiente e, de outro, o art. 215, que garante o direito às manifestações culturais enquanto expressão da pluralidade.
Concluiu o relator que a lei cearense não encontra respaldo na Constituição Federal, violando o art. 225, § 1º, inciso VII e que “discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada”, por implicar em inequívoca crueldade contra os animais, conforme asseverado na Inicial. O Ministro baseou-se nos laudos técnicos juntados pela parte autora e, com base neles, se convenceu de que a crueldade é intrínseca à vaquejada, que causa dores físicas e sofrimento mental aos animais. Para o Ministro, não existe a mínima possibilidade de o boi não sofrer violência física ou mental quando submetido à prática da vaquejada.
A partir da vivência no sertão, que nenhum ministro do STF conhece, gostaria de comentar alguns aspectos da decisão, observando como a Corte Suprema pode chegar a esta conclusão, que, a meu ver, está equivocada.
Primeiro. A decisão pressupõe que a vaquejada é uma prática que implica em crueldade e em “verdadeira tortura” e maus-tratos aos bovinos. Esta conclusão não poderia ser tomada aprioristicamente, uma vez que implica em presunção sobre um fato que deve ser verificado empírica e pontualmente. Haveria, portanto, necessidade de prova. Entretanto, o relator se contentou com o laudo técnico da Doutora Irvênia Luíza de Santis Prada, da Faculdade de Medicina Veterinária da USP, que se dedica ao estudo da espiritualidade dos animais. Não sei dizer se os animais possuem espiritualidade, mas um Estado Laico não tutela a ordem interna dos indivíduos e se essa “espiritualidade” é uma das premissas das conclusões dos estudos apresentados, do ponto de vista jurídico, temos um problema, porque na verdade não se trata de laudo, mas sim da opinião de uma (única) profissional quem tem um olhar peculiar (e parcial) sobre a matéria sobre a qual se pronunciou.
De outro lado, somente aquilo que é realizado sob o crivo do contraditório pode ser considerado prova. No caso, o laudo foi elaborado e apresentado por uma das partes, portanto não é um laudo oficial. Para esclarecimento da matéria, o Relator poderia requisitar informações adicionais, designar uma comissão de peritos para que emitisse um parecer sobre a questão ou mesmo poderia designar uma audiência pública para ouvir pessoas com experiência e autoridade na matéria, conforme prevê o art. 9º, § 1º, da Lei 9.868/99. No entanto, o procedimento da ADIN 4.983-CE foi abreviado e não há na decisão referência a qualquer parecer técnico, além daquele que acompanha a petição inicial. Nesse ponto, a decisão não resguardou o contraditório e a ampla defesa. Mais. A decisão não foi imparcial, pois tomou previamente como verdade a alegação da parte autora. Julgou sem conhecer, de fato, o que é uma vaquejada. Julgou preconceituosamente, ao considerar a vaquejada (expressão da cultura nordestina) uma prática intolerável, como se os nordestinos que a exercem fossem seres “bárbaros”, não adequados para a sociedade que se quer ter ou ser. Como se os nordestinos não fossem seres civilizados o suficiente para fazer jus a pertencerem à sociedade brasileira. Como se a sociedade brasileira fosse civilizada o suficiente para tratar os animais com “humanidade”, colocando o tratamento dos animais muito acima daquele que é dado aos humanos.
Segundo. A decisão está errada ao contrapor o direito ao meio ambiente e o direito à manifestação cultural. Se a decisão considera a vaquejada uma “verdadeira tortura prévia”, “uma intolerável crueldade com os bovinos” não poderia contrapô-la à proteção do meio ambiente, pois não haveria conflito de normas. A crueldade aos animais não encontra respaldo na Constituição Federal, enquanto direito dos animais, mas enquanto direito humano ao meio ambiente saudável. Quando se lê o art. 225, CF, percebe-se que ali o meio ambiente está tutelado em razão do homem (Todos tem direito ao meio ambiente equilibrado...). O direito ainda é antropocêntrico. Não pode haver conflito entre um homem e um animal porque o animal não é titular de direitos. A vedação à crueldade com os animais (art. 225, VII, CF) é norma específica que não entra em colisão com a regra geral de proteção do meio ambiente ou da livre manifestação cultural.
A cultura, enquanto objeto de tutela no art. 215 da CF, enseja a obrigação do Estado em realizar a proteção às manifestações culturais populares, que vai desde a proteção da iconografia até a assunção de postura de abstenção, pois não pode intervir no modo de vida peculiar de uma comunidade, mesmo que seja uma comunidade tão grande quanto à nordestina.
Assim, é equivocado dizer que de um lado está o direito à proteção ao meio ambiente sadio e de outro, o direito de manifestação cultural. A decisão se assenta em equivocada análise da situação fática. O erro sobre o fato implica no erro quanto ao direito aplicado. O erro foi dúplice: um, ao considerar a vaquejada como prática de crueldade contra os animais; dois, ao dizer que essa crueldade contra os animais está em conflito com a proteção ao meio ambiente. Tivesse o STF oportunizado a dilação probatória, em que seria possível demonstrar que a vaquejada não implica em prática de tortura, maus tratos e crueldade, o resultado do julgamento provavelmente teria sido pela prevalência do § 1º do art. 215: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
Terceiro. Não houve defesa da lei impugnada. Não se cumpriu o § 3º do art. 103 da CF. O Advogado-Geral da União tinha o dever, por imposição constitucional, de defender a lei cearense e não o fez. Optou por apresentar um “parecer” atacando o texto da lei, o qual ele tinha a obrigação de proteger. Sobre isso, disse o Ministro Relator: “Com todas as letras, o § 3º do aludido preceito constitucional não dá margem ao curador para atacar o curatelado (...) o papel da Advocacia-Geral da União, a justificar a atuação, é o de proteção ao ato normativo impugnado. O Advogado-Geral da União não trouxe ao processo peça defendendo a lei questionada. Ao contrário, deu parecer no sentido de o Tribunal declará-la incompatível com o Diploma Maior. Deixou, portanto, de cumprir o preceito constitucional”. O STF registra a sua perplexidade diante da atuação do Advogado-Geral da União, mas não extrai da ilegalidade qualquer consequência jurídica. A Assembleia Legislativa do Estado do Ceará também não se manifestou em defesa da Lei estadual. Falaram, em favor da Lei, o Governador do Estado e a Associação Brasileira de Vaquejada – ABVAQ, representada pelo Advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakai. A ABVAQ foi admitida como amicus curiae, no entanto, sua intervenção não dispensa a atuação do Advogado-Geral da União para a efetividade do contraditório.
É de se perguntar qual seria a consequência jurídica do desrespeito ao preceito do § 3º do art. 103, da CF. O Ministro poderia tomar alguma providência, aplicar alguma sanção? Ora, a própria Constituição não prevê a consequência jurídica em caso de desobediência ao referido mandamento. Caberia, em tese, sanção administrativa, a ser apurada em processo ético-disciplinar; mas, no processo da ADIN, parece mesmo não haver previsão legal para a inusitada situação. Se o Relator não recebesse a manifestação do Advogado-Geral da União, teria que devolvê-la para ele mesmo e a ele mesmo caberia definir o seu posicionamento. E se ele insistisse que a manifestação dele é essa mesma, qual seria o posicionamento jurídico do Ministro Relator?
São em situações como essa que o poder e o direito se encontram. Se o Relator tivesse uma cultura mais autoritária, poderia oficiar a corregedoria da AGU, mas isso instauraria um mal estar entre as instituições. Diriam que o Ministro está ferindo a autonomia do Advogado-Geral da União. A questão é de poder, e não de direito. A Constituição manda o Advogado-Geral da União defender as leis impugnadas nas ações diretas de inconstitucionalidade. No caso concreto, o Advogado-Geral decidiu fazer o contrário do que manda a Constituição. Então, o Advogado-Geral praticou um ato inconstitucional. Mas, e daí? É certo que o seu ato é contrário ao texto expresso da Constituição, mas o que pode ser feito contra isso? Se a Constituição vale(sse) acima de todas as leis, a não obediência deliberada aos seus mandamentos implica(ria) em uma ilegalidade, ou melhor, em inconstitucionalidade. Apesar disso, ele está no exercício dos poderes de Advogado-Geral da União. Não é uma questão de direito, mas de poder. Ele não tem o direito de fazê-lo, mas exerceu o poder de fazê-lo.
O problema é que isso gera uma crise de legitimidade. E uma crise de grandes proporções, que não diz respeito meramente ao que um Advogado da AGU pode ou não fazer no limite de suas atribuições constitucionais. Nem mesmo a crise se limita às relações de poder entre STF e AGU. A crise é do Direito e das relações de poder entre Estado e cidadãos. Se os agentes do Estado não cumprem as leis, com que legitimidade exigirão o cumprimento delas aos demais cidadãos? Se não há uma ordem jurídica a ser respeitada, a atuação dos agentes da lei passa a ser de poder e não de direito; prevalece a força e não o Direito. Não é a força do Direito, mas a força do poder. Seguindo esse caminho, cada um praticará ilegalidades do jeito que puder, a depender do tamanho da sua força.
No caso da ADIN 4.983-CE, prevaleceu a força dos movimentos ambientalistas de proteção dos animais, que conseguiram movimentar o MPF, a AGU e o STF. Perderam os vaqueiros, os peões de rodeio, os nordestinos, os caatingueiros, os sertanejos que só veem a mão do Estado para lhes retirar direitos.
Não podemos deixar de reconhecer como interessante a posição assumida pelos ministros do STF que julgaram procedente a ADIN 4.983-CE, suspenderam a eficácia da lei estadual do Ceará e declararam intolerável a prática da vaquejada, colocando o direito dos animais num patamar que não é reconhecido aos humanos.
Ora, o Airton Sena morreu numa competição e ninguém cogitou proibir o automobilismo; apenas se criaram novas regras para tornar a corrida mais segura. As pessoas sofrem lesões nas diversas modalidades de luta e ninguém propôs o fim do boxe ou MMA. Guardamos carne bovina no freezer, confinamos animais para abate, apreciamos carne bovina no espeto e isso tudo é considerado dentro dos padrões civilizatórios aceitáveis. Cresci vendo corridas de vaquejada e nunca vi nem ouvi falar que algum animal tenha tido a cauda arrancada ou quebrado alguma parte de sua estrutura óssea. Não duvido que casos assim façam parte da literatura médica veterinária, apenas dou meu testemunho de que isso não é corriqueiro. Por que razão, de inopino, o STF se converteu em protetor dos animais, a ponto de elevar a proteção ao cume de não permitir os jogos de vaquejada, em que um bovino é derrubado em um espaço composto por uma camada de 50 cm de espessura de areia?
A decisão do STF pode ser considerada interessante porque ao exigir “tratamento humano” aos bovinos, abre-se a brecha para que também pleiteemos “tratamento humano” para os humanos. Se essa decisão vira precedente, poderemos estar inaugurando uma nova era na luta pela efetividade dos direitos humanos, que passariam por três etapas: primeiro vamos outorgar direitos humanos aos bovinos, depois direitos bovinos para os humanos, e, finalmente, direitos humanos para os humanos. Os nordestinos também seriam beneficiados porque o STF terá contribuído para promover a melhoria de seu estado civilizatório. Quem sabe a gente desenterra Nina Rodrigues e estabelece um código de leis específico para cada região do país?
Falando sério, a decisão do STF não guarda coerência com o nível de “humanidade” e “civilidade” aplicada aos humanos. As prisões do país são prova da baixa preocupação com o tratamento cruel e desumano aos humanos. Na mesma semana que julgou inconstitucional a vaquejada, dias antes o STF havia julgado válida a execução provisória da pena, decidindo contra o texto expresso da Constituição. Isso fez Maurício Dieter, também professor da USP, comentar em uma rede social: “Vaquejada é inconstitucional. Execução provisória da pena, não. Parabéns aos bovinos’.
Sim, parabéns aos bovinos; mas desconfio de decisões avançadas demais por um tribunal que não é progressista. No fim, o STF sucumbiu ao lobby dos ativistas e passou por cima da Constituição, mais uma vez. Decidindo em prejuízo do povo nordestino, sua cultura e dignidade.
Nessa toada, parece difícil dar certo qualquer projeto civilizatório. A construção de uma sociedade democrática exige respeito às leis e às decisões judiciais, que serão cumpridas conforme sejam reconhecidas como legítimas. Não esperem subserviência ao uso do poder pelo qual se expressa preconceito. Quando o povo começa a desconfiar do uso político do sistema de justiça, a estrutura de poder começa a ruir. E o Poder Judiciário está exagerando no uso político do Direito.
Além do mais, se pudermos em falar de dignidade dos animais, isso não implica em “humaniza-los”. A dignidade do boi é ser boi, a do cavalo é ser cavalo. E a dignidade do povo do nordeste é ser nordestino.
Nordestino é povo forte, bruto como a seca que não tem educação para chegar nem para ir embora. Somos queimados pelo mesmo sol que arde a terra e deixa em fratura o fundo dos rios e lagoas. Nossos animais não banham em pet shop, não usam lacinhos, nem perfume. São duros como dura é a vida no nordeste. Nosso paletó é o gibão. Aqui temos mancambira, cançanção, cacto, mandacaru. Nosso gado come palma. Somos únicos, como única é a caatinga. Somos diferentes, mas não somos inferiores. Somos o que somos e respeitamos os nossos animais. Não somos bárbaros. Não somos cruéis. Ninguém vai nos dizer a qual projeto civilizatório devemos nos submeter, como tipo ideal e superior. Respeitem o nordeste. Respeitem os nordestinos.
. Bartira Macedo de Miranda Santos é Doutora em História da Ciência pela PUC-SP, Mestre em Direito, com área de concentração em Ciências Penais, pela Universidade Federal de Goiás, professora da Faculdade de Direito da UFG, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e conselheira seccional da Ordem dos Advogados de Brasil – Seção Goiás..
Imagem Ilustrativa do Post: Vaquejada de Serrinha 2012. Foto-Tatiana Azeviche-Setur // Foto de: Turismo Bahia // Sem alterações
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