SOBRE A NATUREZA DO REEXAME NECESSÁRIO

03/06/2020

 

Há alguns anos, talvez no segundo semestre de 2015, iniciou-se uma discussão no grupo de Telegram denominado de G300, composto por diversos processualistas do Brasil, motivados, acima de tudo, pelo advento do então Novo Código de Processo Civil. Tal discussão versava sobre a natureza jurídica do reexame necessário. À época, juntamente com Eduardo José da Fonseca Costa e inspirado no entendimento de Pontes de Miranda, travei um longo debate com muitos dos componentes do grupo. De todos os contendores, foi Ronaldo Cramer aquele que mais trouxe argumentos contrários à ideia por mim defendida: a natureza recursal (ou, no mínimo, tendente a tal) do aludido reexame. Frutos, sem dúvida, advieram da discussão, basta atentar para o fato de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha terem, por força dela, mudado seu posicionamento acerca da natureza do instituto, fazendo constar no livro de sua autoria a defesa da natureza recursal, tendo Eduardo José da Fonseca Costa sido citado como referência maior para tanto.  

Neste ano, já na reta final da elaboração de minha tese de doutorado[1], mudei radicalmente de ideia, passando a defender o que consta do texto abaixo, que posso sintetizar da seguinte forma: o reexame necessário tem natureza de ônus jurídico agregado à ação proposta. Por conta disso, rendo homenagens a Ronaldo Cramer, pois, sem dúvida, suas objeções à ideia dantes defendida muito me serviram de parâmetro para a mudança, que se fez necessária.

Segue, com as adaptações necessárias, o texto contido na tese.

...O (complexo) problema da remessa necessária

Diante se está daquele que é possivelmente o mais polêmico dos meios de impugnação. Tanto por questões referentes à sua natureza jurídica como por sua suposta (falta de) isonomia, a remessa necessária não é tema que passe incólume por quem o analise. Mas, em verdade, há nela natureza impugnativa? A solução a essa questão é determinante até mesmo para que se possa comparar a remessa ao recurso. Antes de tudo, é preciso descrever sua ocorrência, a fim de que, tendo uma ideia de sua realidade, se torne possível dizê-la pertencente ou não a determinado gênero. No caso, se ela é uma impugnação ou não.

Nesse sentido, a remessa consiste num ato praticado pelo juiz da decisão pelo qual se determina que a causa, já julgada, siga à análise de outro órgão judicial, mas que de grau superior. Logo, a causa segue para uma reanálise, um reexame, uma reapreciação. Daí se falar de reexame necessário. Muitos não o diferenciam a remessa do reexame[2]. São coisas distintas, contudo. A remessa é apenas aquilo que possibilita o reexame. O fim propriamente é o segundo, sendo ela o meio para tanto. Ademais, embora o juiz tenha o dever de ordená-la, em verdade, não precisa ocorrer, visto que, dada a inércia judicial, à autoridade superior cabe avocar o processamento da causa (§ 1° do art 496, CPC). A chave para a compreensão do problema passa, portanto, pela diferenciação da remessa do reexame.    

O recurso possibilita a reapreciação da questão decidida. O reexame desta, portanto, é algo ínsito àquele. Isto, porém, não porque ele constitua um “segundo tempo” na análise judicial, mas sim porque, simplesmente, ele é impugnativo da decisão. A reanálise no recurso, como se sabe, é produto da inovação causada por ele.    

Com o reexame ocorre algo distinto: a decisão precisa ser avaliada. É necessário ressaltar uma obviedade: não é a decisão que é reexaminada, mas sim, sendo o caso[3], a matéria decidida. O reexame assume, por isso, a feição de uma necessidade, como que um ônus jurídico[4]-[5]. Não no sentido da necessidade de um agir para algo (sob a pena de sofrer pelo não agir), como o é o próprio ônus de recorrer; ônus por ser um peso sobre, sobre o tipo de ação cuja matéria que a compõe submete-se, por força da lei, a reexame, isto é: a uma dupla análise[6]. Por isso, o nome duplo grau de jurisdição necessário lhe é bastante adequado[7]. Já foi assim com as ações de nulidade e invalidação do casamento; continua a sê-lo em outros casos, especialmente o das ações contrárias à Fazenda Pública, com as podas legalmente estabelecidos, claro.   

Desse modo, a remessa tem natureza de ato em cumprimento de dever[8]-[9]; o reexame, que dela não depende, de necessidade, um ônus sobre determinados tipos de ação.

Por isso, fica afastada a suposta natureza impugnativa do reexame necessário e, desse modo, a natureza recursal: conquanto similar ao recurso pelo fim (ambos possibilitam a reanálise da matéria decidida), diferem quanto à forma substancial: não são espécies de um mesmo gênero. Por outro lado, em virtude da necessidade que lhe é essencial, o reexame condiciona[10] o trânsito em julgado[11]. Nisto, equivale ao recurso, posto que, neste, o condicionamento dependa do agir do recorrente; naquele, é algo inerente à própria estrutura da ação posta para julgamento. Frise-se que esse condicionamento não se dá com o ato do juiz que declara a necessidade do reexame e, consequentemente, determina a remessa, mas sim pela simples incidência da regra que o estabelece. Caso o juiz quede-se inerte, a decisão ficará como que num limbo, pois nem se encontra em processo para ser examinada[12], nem transita em julgado. Cabe ao interessado, por simples petição, provocar o juiz sobre a necessidade do reexame. 

De igual forma, não se pode dizer agir recursal o ato de remessa para reexame. Não porque consista no exercício de um dever: é possível direito a recurso preenchido por obrigatoriedade, e não facultatividade, de modo a ser um direito-dever (caso, por exemplo, do recurso interposto pelo curador especial); mas sim porque simplesmente o ato judicial de determinação da remessa não é uma postulação: o juiz não pede, nem para o beneficiário da remessa. Muito menos há impugnação[13]: a decisão não é atacada; é posta para ser examinada. O ato de remessa é nada mais que exercício do dever de impulso oficial, tanto que substituível pela medida já mencionado § 1°do art. 496, caso o juiz quede-se inerte.           

Costuma-se invocar para a negação da natureza recursal à remessa uma série de argumentos, todos eles referentes a aspectos acidentais do recurso, tais como: ausência de dialeticidade, inexistência de tempo fixado para a prática do ato, ausência de voluntariedade (no sentido de agir em facultatividade). Não que isto interfira nas conclusões obtidas acima, mas é válido ressaltar a fim de mostrar o quanto, muitas vezes, a análise da natureza jurídica de algo é metodologicamente equivocada: em vez de ir ao elemento que caracteriza a essência do ente, foca-se em dado acidental. O recurso não é como tal porque é fundado na dialética (entre a tese da decisão e antítese do fundamento recursal), tanto que a ausência de fundamentação recursal implica a debilidade do ato, não um óbice à sua geração. De todos os argumentos acima, o único que pode ser levado em conta – muito por força de uma razão prática – é o da tempestividade, pois todos os atos processuais precisam ter prazos fixados. Observe-se, porém, que, bem vistas as coisas, não é que a remessa necessária não tenha prazo para ocorrer: tem-no, tanto que, caso não se dê, ao tribunal competente para o reexame imputa-se o dever de avocação: o que não tem prazo é o reexame, pois este condiciona o trânsito em julgado: enquanto não ocorrer, o processo fica como que num limbo inercial. Fala-se, além disso, que não há legitimados na remessa. Nada em direito, como em qualquer ação prática, se dá sem legitimados, no sentido de sujeitos referenciados ao ato. Quer na remessa quer no reexame há esses sujeitos: nela, o juiz da decisão e, caso se dê a aludida inércia, o tribunal em seu órgão competente. O juiz é legitimado no sentido mais próprio deste termo: o de titular, no caso, do dever de remeter; nele, o autor da ação onerada e, de algum modo, o beneficiário da remessa. Eis, enfim, um ótimo exemplo para mostrar (no sentido aristotélico do termo) como o estudo de temas mais analíticos precisa de maior acuidade por parte de muitos.   

 

Notas e Referências

[1] GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Da Recorribilidade ao Recurso: um caso emblemático do movimento processual. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2020, sob orientação do professor doutor Lúcio Grassi de Gouveia, defendida no dia 19/05, perante a banca composta pelos professores doutores Sérgio Torres Teixeira, Alexandre Freire Pimentel e José Mário Wanderley Gomes Neto, como membros titulares internos, e Nelson Nery Jr. e Marcelo da Costa Pinto Neves, como membros titulares externos. Presidida, ademais, pelo orientador.

[2] Mas há os que, com acerto, o fazem, como MAZZEI, Rodrigo dos Reis. A Remessa “Necessária” (Reexame por Remessa e sua Natureza Jurídica). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. NERY JR., Nelson; ALVIM, Teresa Arruda (coords.). São Paulo: RT, 2011, v. 12, p. 418-20; PIMENTEL, Alexandre Freire. Análise Histórico Comparativa da Remessa Necessária (II). Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte: Fórum, 2016, v. 94.

[3] Sendo o caso porque, no reexame, a decisão pode vir a ser invalidada, de modo que, ao menos formalmente, não irá haver reapreciação da matéria decidida.

[4] O ônus de reexaminabilidade é, em verdade, de natureza pré-processual, não propriamente processual. Isto por ser inerente à pretensão à tutela jurídica referente à ação (de direito) material deduzível. Ou seja, o peso é colocado sobre a ação antes de ela ser processualizada. 

[5] Em rigor, o ônus acima aludido consiste na reexaminabilidade; o reexame, em si, é uma decisão. Não obstante, para se falar do ato-reexame deve-se antes aludir à possibilidade-reexame, tal como se diz que a ação é a potência do ato-decisão. Em suma, ele é o ponto final (ômega) de um movimento, sendo ela o inercial (alfa).   

[6] Não se trata, porém, de dizer ser o reexame necessário a última etapa de um ato complexo, no sentido mais administrativístico do termo. No ato complexo, cada decisão proferida é parte de um todo: por exemplo, o STJ escolhe, dentre os inscritos, cinco pessoas para compor a lista necessária ao preenchimento da vaga nele existente (de qualquer um dos terços institucionais que o compõem). A lista segue ao Presidente da República (PR) para a devida escolha. O ato do STJ não é uma deliberação revisível pelo PR; é a primeira etapa da deliberação final para o preenchimento da vaga. No ato complexo, enfim, o ato anterior da autoridade anterior é autônomo em relação àquele que lhe vem depois. Definitivamente, não é isto que, pela própria definição, se dá com o reexame necessário.   

[7] Nesse sentido, valendo-se de tal nomenclatura, PIMENTEL, op. cit.

[8] O ato do juiz de determinar a remessa, conquanto seja em cumprimento de dever, não é em si uma decisão. Devendo, prioritariamente, ser praticado na própria (no sentido de no mesmo ato) decisão “reexaminável”, não consiste numa resolução de questão, critério que, conforme se demonstrou no capítulo passado, é o adequado para diferenciar a decisão dos demais pronunciamentos. Não obstante, a determinação da remessa quando não é caso para tanto constitui, dada erronia na percepção da realidade, autêntica decisão. Dizer que há necessidade de reexame (que é exatamente o que o juiz faz ao determinar a remessa) implica impedir a ocorrência do trânsito em julgado: a ordem de remessa (ou, no mínimo, a declaração da necessidade dela) verdadeiramente cria um impedimento a ele, pois desfaz o efeito que se dá pela simples incidência da regra estabelecedora da necessidade do reexame. Já o não determinar a remessa é omissão decisional passível de ser suprida por uma simples petição, não há qualquer necessidade do meio recursal. 

[9] Luiz Henrique Volpe Camargo, em texto crítico à natureza recursal da remessa necessária, entende ser esta um procedimento de revisão obrigatória da sentença nos casos previstos em lei. Sua definição fala da sentença contrária à Fazenda Pública – numa óbvia alusão ao art. 496, CPC, embora não relevada. Diz, ademais, que tal definição foca naquilo que o instituto realmente é, e não em seus efeitos. Em seguida, afirma ser o reexame uma etapa adicional de revisão de tal decisão. Por fim, sustenta que a remessa necessária, enquanto não julgada, prolonga o estado do processo em curso (Da Remessa Necessária. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2018, v. 279, p. 70). É de se dizer que o autor comete alguns equívocos: i) não é que a remessa seja um procedimento; ela é um ato que dá início a um. Sua definição, portanto, somente tem sentido metonimicamente (designar a parte pelo nome do todo). Não obstante, além de pouco impacto estilístico, isto mais confunde que esclarece, pois nada diz sobre a natureza em si da remessa necessária: ato em cumprimento de dever. Mutatis mutandis, é definir o recurso – não como ato postulatório em impugnação – mas sim como procedimento tendente à reanálise da matéria decidida; ii) logo, provavelmente na ânsia de querer se livrar da pecha colocada sobre aqueles que tentam definir a remessa necessária pelos seus efeitos, equivoca-se ao dizer que está a defini-la pelo que ela é, mas, de modo algum, ela é procedimento; em verdade, principia um deles; iii) ademais, além de, ao que parece, não bem diferenciar a remessa do reexame, erra ao dizer que ela prolonga o estado do processo em curso (litispendência, numa linguagem mais precisa); quando se sabe que tal efeito não é da remessa, mas sim da reexaminabilidade; iv) por fim, como já mencionado, não se deve olvidar que não se trata de reanálise (ou reexame) da sentença, mas sim de análise desta a partir da reanálise da matéria decidida ou, no mínimo, posta à decisão. Não obstante, deve-se atribuir ao autor analisado o mérito de ter saído do lugar-comum, chegando um tanto mais próximo da correta definição do reexame necessário.               

[10] Há certa celeuma entre aqueles que, enfrentando o tema, defendem não ser o reexame necessário uma condição. Não que ele assim o seja; mas há erro nesses autores quando tentam negar tal natureza dizendo que, ao contrário da condição prevista no art. 121, CC, o reexame é um evento futuro e certo, o que o aproxima do termo. O sentido do termo condição empregado para se referir ao reexame é de condição como algo necessário a outro, tal como um pressuposto. No caso, o reexame é necessário ao trânsito em julgado da decisão “reexaminável”. Ademais, consoante defende Pontes de Miranda, há condições outras para além da regulada na legislação civil, compõem o que se chama de conditio iuris (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. 5, p. 97-9).

[11] Condicionar o trânsito em julgado nada que tem com condicionar a eficácia da decisão “reexaminável”. O condicionamento da eficácia é possível no reexame, mas não necessário, tanto que, como bem identificaram Leonardo Cunha e Fredie Didier Jr. (Curso..., op. cit., p. 489), em algumas hipóteses ele não se dá. Já o condicionamento do trânsito em julgado é essencial ao reexame: do contrário, tendo, com o trânsito em julgado, se tornado definitiva, como se poderia dizer “reexaminável” a decisão? Não obstante, o reexame não pode ser definido por isso, já que se trata de uma propriedade dele, não da essência: não é que ele seja (a) condição ao trânsito em julgado; ele o produz.  Só isso é bastante para mostrar o desacerto analítico de trabalhos como o de Jorge Tosta (Do Reexame Necessário. São Paulo; RT, 2005), que, numa monografia sobre o tema, depois de esforço argumentativo para rechaçar posições opostas, acaba por definir o reexame como condição de eficácia. De modo similar, SIMARDI, Cláudia A. Remessa Obrigatória. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos. ALVIM, Eduardo Arruda; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.) São Paulo: RT, 2000, p. 125-27; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe, op. cit., p. 69-70. Tais autores, ousando investigar a fundo a natureza jurídica de determinando ente jurídico, a ponto de tecerem críticas contundentes aos que se posicionam de modo diverso, acabam caindo na armadilha de definir algo por aquilo que lhe é meramente acidental. Nada se diz sobre a essência do reexame necessário ao enquadrá-lo como uma condição de eficácia, porque esta é apenas uma qualidade (logo, simples possibilidade) dele.

[12] E não reexaminada, porquanto reexaminável é a matéria decidida.

[13] Pontes de Miranda, que defende a natureza recursal da remessa, afirma que a impugnação dá-se por força de lei a partir do ato de impulso promovido, ao menos a princípio, pelo juiz da decisão (Comentários..., op. cit., v. 5, p. 217).

 

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