Por Atahualpa Fernandez - 03/07/2015
“Hay una forma de saber si un hombre es honesto: preguntándoselo. Si dice que sí, es un sinvergüenza”
Groucho Marx
Entre todas as espécies, apenas ao ser humano levou a sofisticação evolutiva a começar enganando-se a si mesmo como a melhor forma de afrontar com maior naturalidade a habilidade de mentir aos demais. Um ponto tal de funcionalidade que, somada a uma grande capacidade cognitiva e a linguagem, não lhe fizeram necessariamente mais sincero, senão melhor na arte do engano. E chega mais longe: esta habilidade leva o ser humano a perder a consciência de sua mentira e assumi-la “sem dúvida alguma” de forma sublime.
Sabemos que mentir não é necessariamente prova de maldade e que a mentira é uma atitude generalizada, mas não somos (ou não queremos ser) medianamente conscientes de que os mentirosos que há em nossa vida são todas as pessoas que estão em nossa vida (R. Feldman). As mentiras se tecem em todas as relações e são essenciais para a forma em que pensamos de nós mesmos e como nos apresentamos aos demais.
O grau de perfeita convivência com a versão mais conveniente das coisas, ainda que falsa, faz com que sigamos tendo a melhor opinião de nós mesmos, ao tempo que abominamos da mentira dos demais como uma combinação em um único ato da falta de confiança e de honradez. Nossas interpretações do mundo, a construção de nossa experiência subjetiva da realidade, estão ao serviço das narrativas baixo as quais opera nosso cérebro, narrativas que servem para que nos movamos pela vida com a convicção necessária para defender os interesses próprios. Em certo sentido somos os fabricantes dos significados e do sentido (ou “sem-sentido”) daquilo em que fixamos nossa atenção. E viver com sentido é saber que o nosso é o mundo verdadeiro; desquiciados, falsos, mentirosos, hipócritas, profanos, disparatados ou ao menos estúpidos são os mundos dos «outros».
O problema é que não somente nos mentem: também nós mentimos. A falta de sinceridade está tão profundamente arraigada em nossos atos cotidianos (e em nossa cultura mais ampla) que todos mentimos mais do que pensam os mais desconfiados e boa parte das vezes metabolizamos a tal ponto a falsidade que já não somos capazes de distinguir entre a mentira e a verdade que nos transmitem ou que transmitimos. E mais: se tivéssemos que falar de nós mesmos, todos nos descreveríamos como pessoas "sinceras" e, quando nos descobrimos ou sentimos vítimas de uma mentira, nos enfadamos, nos ressentimos e deixamos de confiar na pessoa que nos enganou. Nada obstante, todos mentimos: mentimos para proteger-nos, para que nos queiram e nos aceitem. E não somente em determinadas situações, para evitar um mal maior, porque sejamos más pessoas ou porque não nos reste outro remédio. Não! Mentimos continuamente, com ou sem motivo, a conhecidos e desconhecidos. Inclusive a nós mesmos.
De fato, se nos detemos atentamente neste fenômeno e o deixamos passar cuidadosamente por nossos neurônios e sinapses saltará à vista a quantidade de vezes que já não sabemos nem o que significa dizer a verdade. E é que há tantas classes diferentes de verdade!
Claro que, como a maioria das verdades amargas, não reporta muita simpatia que nos recordem a falsidade de nosso mundo. Mas o certo é que não somente a maioria das pessoas mente em promedio pelo menos uma ou duas vezes ao dia, senão que não existem culturas onde as pessoas não mintam. O dom de enganar a si mesmo e/ou a outros é uma peculiaridade humana primitiva, o bálsamo a que recorremos para reparar, conservar, fomentar e expressar nossa autoestima: “somos mentirosos redomados y nos mentimos a nosotros mismos para mentir y engañar mejor a los demás”. (R. Trivers)[1]
Por que se mente? Por que criamos “pontos cegos” mentais no que à verdade se refere? Por que tendemos a tomar o próprio proceder como evidente, verdadeiro e normal (a despeito de qualquer evidência em contra) e convertemos automaticamente todo proceder distinto em disparatado, mentiroso ou ao menos estúpido? Por que nos conhecemos tão pouco?
Pois bem, em seu livro «The Liar in Your Life», Robert Feldman afirma que as mentiras são uma característica típica de nossa experiência cotidiana e que o fato de que “no le demos importancia a tanto engaño solo subraya lo corriente que es en realidad”. Depois de anos de investigação sobre a mentira (trabalho considerado de utilidade pública nos Estados Unidos) Feldman demonstrou, entre outras coisas, que:
- todos somos mentirosos e com demasiada regularidade mentimos de forma automática, sem pensar (“No nos despertamos una mañana y nos decimos: «Hoy voy a engañarme para engañar mejor a los demás»);
- a capacidade de mentir é uma valiosa habilidade social e um mecanismo fabuloso para congraçar-nos com nossos congêneres («Estás muy guapa hoy», «Tienes toda la razón»...);
- mentir é fácil e a maioria das mentiras não as notamos, ou sequer as consideramos enganos;
- com frequência não captamos as mentiras porque queremos viver com elas;
- não sabemos distinguir quando alguém nos está enganando mais do que poderíamos distinguir adivinhando ao azar;
- não existe uma maneira segura de controlar se alguém nos mente ou não;
- os adultos mentem com bastante regularidade em suas conversações, independentemente da intenção de enganar ou de conseguir alguma vantagem ilícita ou benefício imoral (uma mentira cada oito minutos, em especial aqueles que têm mais interações sociais, como vendedores, advogados, jornalistas, médicos, psicólogos, etc.);
- se mente de forma habitual e com normalidade em todos os contextos, nas conversas entre estranhos, entre amigos e nas relações mais íntimas (“No se ha encontrado ninguna relación que sea inmune a la falta de sinceridad y a menudo el objetivo de las mentiras es hacer que la outra persona se sienta cómoda: «Claro que no has engordado», «Eres la mejor del mundo»...);
- a maioria das pessoas mente ao menos três vezes (algumas até doze vezes) no curso de uma conversação de dez minutos entre estranhos;
- há mentiras que a sociedade aceita e, inclusive, fomenta, tanto mais quanto constantemente atuamos como solícitos cúmplices das mesmas, etc... etc.
O extraordinário, diz Feldman, “es la medida en la que las personas se mienten entre sí. […] Mentir en nuestra sociedad no es algo «anormal» y es mucho más común de lo que creemos. La gente corriente que llena nuestras vidas lo hace continuamente, en toda clase de situaciones interpersonales habituales”. Por dizê-lo de uma maneira mais simples, mentir é uma habilidade que cresce no mais profundo de nossa natureza; é uma condição inerente aos seres humanos e está enraizada em nossa sociedade “hasta un punto que si de repente todos dejáramos de mentir no la reconoceríamos; ni probablemente querríamos vivir en ella”.[2]
Não se trata, evidentemente, de afirmar que mentir seja o melhor desde o ponto de vista moral ou de defender a desonestidade e o engano deliberado. Do que se trata é de descrever a natureza humana (D. Livingstone Smith). Como explica Dan Ariely, nossa conduta está impulsada por duas motivações opostas. Por um lado, queremos considerar-nos pessoas honestas, honradas. Queremos ser capazes de mirar-nos ao espelho e sentir-nos bem com nós mesmos (“motivação do ego”). Por outro, queremos sacar proveito do engano e conseguir todo o possível (“motivação típica”). As duas motivações estão em permanente conflito, naturalmente. Como podemos assegurar as vantagens do engano e ao mesmo tempo seguir considerando-nos pessoas estupendas e honradas?
Aqui é onde entra em jogo a assombrosa flexibilidade cognitiva de nossa natureza. Graças a esta habilidade humana, enquanto enganemos só um pouco, podemos beneficiar-nos do engano e seguir vendo-nos como seres maravilhosos. É este malabarismo mental que indica que nosso sentido da verdade (e da moralidade) está associado ao grau de engano com que nos sentimos cômodos. Quer dizer, todos mentimos, mas, na maioria das vezes, mentimos ou enganamos até o nível que nos permite conservar nossa imagem de indivíduos razoavelmente sinceros e honestos.[3]
Somos o que somos. “Nos contamos contos a nós mesmos e aos demais para poder viver” (J. Didion). Com esses contos reafirmamos nossas crenças, abraçamos informação que apoia o que preferimos ou que serve para justificar e confirmar nossas hipóteses e juízos (independentemente de serem ou não verdadeiros), expressamos nossas opiniões com um talento excepcional para contar coisas «que» e «como» nos convém, e encontramos a maneira de navegar pelas estranhas águas da vida sem cruciantes preocupações com a verdade. Por acaso não sabemos, como pensava Johann Nepomuk Nestroy, que “quando se trata de enganar a uma amante, o mais tonto é um filósofo virtuoso?”.
Seguramente o amável leitor (a), como ser humano que é, estará neste momento pensando que isto só ocorre com as outras pessoas. Tampouco caberia esperar outra coisa de um ego que luta encarniçadamente por defender sua honra[4]. Insensato autoengano. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos ou justificarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais e verdadeiras as acolhedoras ficções, fabulações e veleidades que nos inventamos. Somos animais que mentem. Mentiras que confortam, embriagam e até seduzem, mas mentiras ao fim e ao cabo.[5]
Ademais, a mentira fascina e é tão amada quanto a verdade é detestável. Imaginem o insofrível que resultaria manter uma relação com normalidade com outra pessoa se lhe jogássemos toda a dura verdade em sua cara só porque decidimos não mentir nunca; ou o insuportável que seriam nossas relações se todos fôramos honestos uns com os outros: a vida social, tal e como a conhecemos, sofreria um colapso. Necessitamos as mentiras pelo simples fato de que não somente não podemos viver em uma sociedade utilizando, sem reservas, um modelo puramente sincero, senão porque somos incapazes de viver de acordo com o princípio de “simplesmente dizer a verdade”[6].
Assim que ruminar e dar voltas sobre o valor da verdade “em qualquer circunstância” ou tentar averiguar como eliminar a falsidade no mundo pode fazer com que percamos muito tempo em nossas vidas preocupando-nos por coisas que nunca ocorrerão[7]. Talvez o melhor (e provavelmente o único) que possamos fazer seja unicamente assumir o compromisso pessoal de “tratar de mentir menos”[8] mediante uma atenta valoração de tudo o que dizemos e fazemos. Isto, diz Feldman, “no significa la sinceridad radical; significa elegir nuestras mentiras con tanta atención como elegimos los momentos en que somos plenamente sinceros, sin reservas”.
Depois de tudo, dado que não somos completamente impotentes frente as nossas fraquezas (incluída a desonestidade ou nossa natural falta de sinceridade), não há nenhuma razão para não abraçar as ideias de que existe uma inegável satisfação em dizer a verdade (por não dizer escutá-la), que podemos controlar e limitar nossas debilidades, que podemos julgar nossas opiniões e nossas condutas pela clara luz dos fatos e que a virtude da honestidade (ainda que tentada) é um presente que brindamos aos demais.
Notas e Referências:
[1] Além do que, verdade seja dita, necessitamos o autoengano para seguir vivendo e não cair na desesperação. Como o expressa William Hirstein: “La verdad es deprimente. Vamos a morir, lo más probable después de una enfermedad; todos nuestros amigos morirán también; somos unos puntos insignificantes de un insignificante planeta […] Se necesita el autoengaño para salir de la cama cada mañana”.
[2] “Decir mentiras a propósito e creer genuinamente en ellas; olvidar cualquier hecho que se ha vuelto inoportuno y luego, cuando sea necesario, sacarlo del olvido solo por el tiempo que se requiera; negar la existencia de la realidad objetiva, y todo el tiempo tomar en cuenta la realidad que uno niega – todo eso es absolutamente necesario”. George Orwell
[3] Ariely também analisa a moralidade do curioso e não infrequente caso das pessoas que compram e/ou usam coisas falsificadas, concretamente o que os cientistas sociais denominam de “sinalização externa”: simplesmente o modo em que transmitimos aos demais o que somos mediante o que levamos posto. Estes indivíduos, movidos pelo desejo de indicar um falso êxito e mostrar-se por encima de sua classe social, ainda que em silêncio, estão descarada, contínua e “directamente mentiendo a los de su alrededor”. Ademais, segundo os resultados de seus estudos, levar um produto verdadeiro não incrementa a honestidade (ou quando menos não muito). “Sin embargo, en cuanto nos ponemos a sabiendas un artículo falsificado, las limitaciones morales se relajan hasta cierto punto, con lo que nos resulta más fácil dar más pasos por el camino de la deshonestidad. ¿La moraleja de la historia? Si usted, un amigo suyo o una pareja lleva productos falsificados, ¡cuidado! Otra acción deshonesta puede estar más cerca de lo que imaginamos”.
[4] E porque todos “nos creemos únicos y psicológicamente distintos de los demás” (D. Gilbert), miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos sinceridade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos verdades incontroversas. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Não vemos mundo que é, vemos o mundo que somos; somos uma idiossincrasia com patas: “¿Por qué no han de ser todos tan sinceros como yo?”. Ante esta nossa natural tendência a negar a relevância dos fatos e a rechaçar instintivamente as debilidades que nos caracterizam, Steven Novella propõe que, antes de alçarmos a mirada desdenhosa por encima dos demais sem ver a superfície sobre a qual caminhamos, cultivemos uma espécie de “humildade neuropsicológica”: uma simples questão de atitude.
[5] Aqui me permito repetir um conselho de cautela epistemológica: atender às explicações ou justificações que as pessoas dão acerca da “verdade” de suas ações, sentimentos, pensamentos e/ou juízos resulta interessante (e até divertido), mas, com frequência, é uma enorme perda de tempo. Assim as coisas, parece que o mais sensato é ter sempre em conta a advertência Daniel Kahneman (“Não há que confiar em ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”) e seguir o conselho que Richard Dawkins dá a sua filha: «La próxima vez que alguien te diga algo que parezca importante piensa para tus adentros: "¿Es ésta una de esas cosas que la gente suele creer basándose en evidencias? ¿O es una de esas cosas que la gente cree por la tradición, autoridad o revelación?" Y la próxima vez que alguien te diga que una cosa es verdad, prueba a preguntarle "¿Qué pruebas existen de ello?" Y si no pueden darte una respuesta, espero que te lo pienses muy bien antes de creer una sola palabra de lo que te digan.»
[6] Recordemos que Kant acreditava que mentir era pouco ético em todos os casos; ainda quando a intenção fora impedir o assassinato de uma pessoa inocente. Ao igual que muitas outras concepções filosóficas de Kant, “su actitud hacia la mentira no estaba tan argumentada como presupuesta, como si se tratara de un precepto religioso” (Sam Harris). Por certo que este preceito tem a virtude evidente da claridade – não mentir nunca -, mas, na prática, a norma pode amparar condutas que somente um psicopata seria capaz de subscrever.
[7] Por certo que entender isto é muito contraintuitivo e muita gente encontra difícil aceitar que a capacidade humana para mentir existe graças a nossa biologia e é produto do mesmo processo “cego” e “brutal” da seleção natural: ao cérebro não lhe interessa a verdade, senão sobreviver. Não mentimos porque seja certo, senão porque proporciona vantagens adaptativas muito notórias e de grande utilidade para regular nossa vida social. Admitir este fato e descobrir porque somos cada vez mais tolerantes e condescendentes com a falsidade é o primeiro passo para averiguar o preço que pagamos pela deslealdade e o que estamos dispostos a sacrificar “para tentar construir relaciones basadas en la honestidad: con los demás y con uno mismo”. (Feldman)
[8] O que implica estar permanentemente atento à reflexão profunda que realiza Montaigne (inspirada na versão francesa do texto que Pedro Mejía dedica à mentira e que parte, a sua vez, de Gelio) sobre a vaga diferença entre a mentira e o ato de mentir (“dizer uma mentira” e “mentir”): “No sin razón se dice que si alguien no siente su memoria lo bastante firme, no debe meterse a mentiroso. No ignoro que los gramáticos distinguen entre decir una mentira y mentir, ni que afirman que decir una mentira es decir una cosa falsa pero que se ha tomado por verdadera, y que la definición de la palabra mentir en latín, de donde procede la nuestra, comporta ir contra la propia conciencia, y por consiguiente atañe tan solo a quienes dicen algo en contra de lo que saben. A ellos me refiero. Ahora bien, éstos o se inventan lo esencial y el resto, o disfrazan y alteran un fondo verdadero.” Pessoalmente prefiro pensar que não minto nunca. Jamais! Apenas, em determinadas circunstâncias muito concretas e desde que piamente necessário, altero os fatos para que a percepção da outra pessoa não coincida com a minha. Esta é a verdade... “Lo juro por Dios”.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem Ilustrativa do Post: How could you say no? // Foto de: Kenny Louie // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kwl/2963765719/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode