Coordenador: Gilberto Bruschi
1. Os argumentos para a contagem única do prazo
Para o STJ, o prazo para interposição da ação rescisória só tem sua contagem iniciada do trânsito em julgado da última decisão existente no processo, não importando se houve capítulos não impugnados nas demais instâncias. Inclusive, o tribunal editou a súmula de nº 401, afirmando que “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.”.
Para tanto afirma que (a) Como o direito de ação, o processo e a sentença são unos, só poderá haver o trânsito em julgado quando todos os pontos controvertidos estiverem resolvidos (b) a admissão do trânsito em julgado progressivo geraria insegurança e atrasos na resolução da lide.
Quanto ao ponto (a), o CPC/2015 foi expresso na admissão da formação da coisa julgada progressiva; já em relação ao ponto (b), tal admissão iria auxiliar na duração razoável do processo e efetividade processual, pois a parte que deseje rescindir um capítulo trânsito em julgado anteriormente a outro não teria que esperar até a resolução de todos os pontos controvertidos. Além disso, poderia haver o adiantamento do cumprimento de sentença definitivo, não fazendo sentido esperar a última decisão no processo para tanto.
É possível inserir mais um argumento em defesa do prazo único, derivado da literalidade do texto normativo. De acordo com o art. 975, do CPC/2015, “O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo”.[1] É bastante sedutora a interpretação de que a expressão “última decisão proferida no processo” impõe que a contagem do prazo apenas seja iniciada a partir do trânsito em julgado de todos os capítulos. Assim, seria irrelevante o momento do trânsito em julgado de cada capítulo, pois o prazo apenas seria iniciado com a última decisão proferida no processo. Para Daniel Amorim Assumpção Neves, seria possível o trânsito em julgado parcial, no entanto, a contagem do prazo se daria da seguinte forma: seria possível à parte ajuizar a ação rescisória desde o trânsito em julgado do capítulo impugnado, no entanto, o termo final ocorreria apenas dois anos após o trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.[2]
Ocorre que o CPC/2015 admite, de forma expressa, o trânsito em julgado parcial. Haveria uma contradição entre a admissão da coisa julgada parcial e, ao mesmo tempo, da contagem única para o ajuizamento da ação rescisória. A admissão desse posicionamento restritivo faria surgir um problema sem solução no caso de haver determinado capítulo não impugnado que se encaixe em uma das hipóteses de rescisão elencadas no art. 966 do CPC/2015. Por conta disso, a interpretação adequada a ser concedida a esse texto normativo deve ser no sentido de que ele faz referência à última decisão proferida em cada capítulo que não possua qualquer relação de dependência com outro, ou seja, à decisão que substituiu por último cada capítulo.[3]
Acerca do posicionamento de Daniel Amorim Assumpção Neves, é possível destacar o seguinte problema, levantado por Ana Paula Schoriza em relação ao enunciado n. 401 do STJ, mas aplicável ao caso, ao afirmar que esta definição do início do prazo apenas ao fim de todos os recursos violaria frontalmente o princípio da isonomia. Tal se daria porque “enquanto uma parte tem dois anos para impugnar por meio de ação a sentença (acórdão), a outra pode ter seis, oito, dez anos, dependendo do número e do tempo que levará o recurso para ser julgado”[4]. Além disso, haveria violação da segurança jurídica ao permitir que um capítulo ficasse por um tempo indeterminado de anos sujeito a uma eventual rescisão.
No caso da posição de Daniel Amorim Assumpção Neves, haveria o trânsito em julgado, a parte poderia rescindir de imediato o capítulo de danos materiais. A questão é que o termo final do prazo ficaria a espera do trânsito em julgado dos demais capítulos, o que não parecer ser uma interpretação constitucionalmente adequada, como indicado.
O próprio STJ deu sinais de eventual alteração do seu posicionamento. No recurso especial n. 736.650, embora tenha reafirmado a validade do enunciado n. 401 de sua jurisprudência dominante, ressalvou eventual necessidade de novo exame do tema. Isso caso houvesse alteração do entendimento das turmas do STF (já realizado por uma delas, conforme será indicado) e fosse mantida a previsão da coisa julgada progressiva no à época projeto de NCPC, o que efetivamente foi mantido na redação final.[5]
2. A contagem autônoma dos prazos
O segundo entendimento defende a possibilidade de que o prazo para a rescisão, salvo casos excepcionais, começa a ser contado do trânsito em julgado do capítulo respectivo. Assim, seria irrelevante o momento de ocorrência do trânsito em julgado da última decisão no processo, caso o referido capítulo tenha sido acobertado pela coisa julgada material anteriormente e o prazo de dois anos tenha sido ultrapassado.
Com esse posicionamento, é possível que, dentro de um mesmo processo, existam diversos prazos autônomos para a rescisão de cada um dos capítulos decisórios. É inegável que tal situação pode causas algumas dificuldades de ordem prática, a exemplo da eventual dificuldade para verificar se um determinado recurso impugnou aquele capítulo específico ou mesmo se há relação de prejudicialidade entre determinados capítulos que impediriam o seu trânsito em julgado autônomo. No entanto, para além da inegável possibilidade do trânsito em julgado parcial no CPC/2015, as vantagens da adoção deste posicionamento superam os eventuais problemas.
Elas estão tanto no plano teórico, quanto no aspecto prático, uma vez que este permite maior efetividade processual e densifica a duração razoável, ao permitir que o capítulo transitado em julgado já possa ser executado de maneira definitiva.
Ou seja, admitindo-se tal possibilidade, ter-se-ia que o prazo para a interposição da ação rescisória correspondente seria iniciado a partir do trânsito em julgado do da decisão rescindenda. Ou seja, se o capítulo A transitou em julgado no primeiro grau, o B no tribunal local e C em tribunal superior, existirão três prazos diversos a serem contados para a interposição da ação rescisória.
Além disso, esse posicionamento torna possível à parte que tenha contra si um capítulo desfavorável com trânsito em julgado, que já possa impugná-lo desde logo, sem esperar o fim de todo o processo.
O STF adotou este entendimento no recurso extraordinário 666.589, caso em que afirmou o tribunal que “Os capítulos autônomos do pronunciamento judicial precluem no que não atacados por meio de recurso, surgindo, ante o fenômeno, o termo inicial do biênio decadencial para a propositura da rescisória”.[6] Por mais que tenha havido atecnia na utilização da terminologia de preclusão para fazer referência ao trânsito em julgado parcial, é evidente a sua admissão pelo STF. Do contrário, não teria admitido a contagem, em separado, do prazo da ação rescisória. Ainda é possível fazer menção ao fato de que o trânsito em julgado parcial já havia sido admitido no julgamento da AP 470[7] e, anteriormente, podia ser extraído do enunciado n. 354 do tribunal: “Em caso de embargos infringentes parciais, é definitiva a parte da decisão embargada em que não houve divergência na votação”
Destaque-se que a admissão do trânsito em julgado progressivo parte da interpretação, pelo STF, do art. 5º, da XXXVI, que trata da garantia da coisa julgada, na hipótese, da permissão de que seja forma de maneira parcelada, permitindo a execução definitiva imediatamente. Ou seja, trata-se de interpretação constitucional, da Corte competente para tanto, que deve, nesse sentido, superar o entendimento do STJ. Isso ocorre porque, na prevalência entre a leitura infraconstitucional e a constitucional de um mesmo texto, deve prevalecer o entendimento do STF sob o ponto de vista constitucional. Se o precedente deve ser tido como fonte do direito, o precedente constitucional é hierarquicamente superior ao infraconstitucional. Além do mais, sendo o STF o guardião da Constituição, a interpretação à luz desse texto normativo deve prevalecer em detrimento do posicionamento dos demais tribunais. Em outras palavras, a decisão do STF no recurso extraordinário 666.589 tornou o enunciado n. 401 do STJ inconstitucional, por violar a garantia da formação da coisa julgada parcial.[8]
O mesmo entendimento é também adotado pelo TST ao afirmar, no inciso I, da súmula n. 100, que “O prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do dia imediatamente subseqüente ao trânsito em julgado da última decisão proferida na causa, seja de mérito ou não”.
Há quem diga que a adoção desse posicionamento violaria o programa da norma contido no caput do art. 975, do CPC/2015.[9] Não parece ser esse o caso. Trata-se de uma interpretação sistemática, a partir da adoção expressa da coisa julgada parcial (art. 356), da atuação do princípio da igualdade (art. 8º), que exige que os capítulos tenham, todos, o mesmo prazo de dois anos. Admitir que a contagem apenas inicia após o trânsito em julgado do último capítulo é permitir que algumas decisões possam ter um prazo de cinco, oito, dez anos para serem rescindidas. Além disso, o próprio princípio da segurança jurídica, de natureza constitucional, também exige essa interpretação, sob pena de se permitir que uma decisão acobertada pela eficácia da coisa julgada material fique sob uma situação de insegurança por um tempo indefinido. Assim, a interpretação ora defendida deve prevalecer tanto pelo prisma da interpretação sistemática, como pela eficácia normativa da constituição que determina uma filtragem da legislação constitucional a partir do texto constitucional.[10]
Por fim algumas ressalvas devem ser efetuadas no caso de capítulos dependentes, pois estes acompanham o destino do principal, não havendo a possibilidade do trânsito em julgado destes anteriormente ao do principal.[11] Por exemplo, caso a parte recorra apenas do pedido principal, mas não dos juros, estes serão considerados abrangidos pelo recurso, pois o capítulo de juros está subordinado ao principal.
Notas e Referências:
[1] Criticando a redação do texto normativo por não ter tomado posição acerca da polêmica do prazo para a rescisória no caso do trânsito em julgado parcial, cf.: SANTOS, Welder Queiroz dos. Ação Rescisória: de Pontes de Miranda ao Projeto de Novo CPC. DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa; GOUVEIA FILHO, Roberto Campos. Pontes de Miranda e o direito processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 1222-1223. Destaque-se que o autor defende a contagem dos prazos autônomos, mas não indica qual entende ser o posicionamento do texto normativo do CPC/2015.
[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. São Paulo: Método, 2015, p. 497. No mesmo sentido: BARIONI, Rodrigo. Comentários ao art. 975. DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 2.176; ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues. Comentários ao art. 975. CÂMARA, Helder. Comentários ao CPC. Lisboa: Almedina, no prelo; ARAÚJO, José Henrique Mouta. Pronunciamentos de mérito no CPC/2015 e reflexos na coisa julgada, na ação rescisória e no cumprimento de sentença Disponível em: http://portalprocessual.com/pronunciamentos-de-merito-no-cpc2015-e-reflexos-na-coisa-julgada-na-acao-rescisoria-e-no-cumprimento-de-sentenca/. Acesso às 12h, do dia 29 de setembro de 2016.
[3] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, RAFAEL. Curso de direito processual civil. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 2, p. 528-529. Acolhendo a argumentação ora defendida: OLIVEIRA JÚNIOR, Délio Mota de. A formação progressiva da coisa julgada material e o prazo para o ajuizamento da ação rescisória: contradição do novo código de processo civil. FREIRE, Alexandre; BARROS, Lucas Buril de Macedo; PEIXOTO, Ravi. Doutrina Selecionada: Processo nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 6.
[4] SCHORIZA, Ana Paula Schoriza. Capítulos da sentença: como o STJ tem se posicionado sobre o termo inicial para a contagem do prazo da ação rescisória? Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 176, out.-2009, p. 213.
[5] STJ, Corte Especial, REsp 736.650/MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 20/08/2014, DJe 01/09/2014.
[6] STF, 1ª T., RE 666.589, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 25/03/2014, DJe 03/06/2014. Em outros dois precedentes, o STF já havia adotado entendimento semelhante: No mesmo sentido: STF, Pleno, AR 903/SP, rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 17.6.1982, DJU 17.9.1982; AI 393.992/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30.05.2004, DJ 30.08.2004.
[7] STF, Tribunal Pleno, AP. 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 13/11/2013.
[8] Nesse sentido: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Uma luz no fim do túnel: a inconstitucionalidade da Súmula 401/STJ. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-09/luz-fim-tunel-inconstitucionalidade-sumula-401stj, acesso às 23h, do dia 08 de setembro de 2016.
[9] ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues. Comentários ao art. 975... cit.
[10] No mesmo sentido: DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil... cit., p. 529.
[11] No mesmo sentido: CARDOSO, Oscar Valente. Capítulos de sentença, coisa julgada progressiva e prazo para ação rescisória. Revista Dialética de Direito Processual Civil. São Paulo: Dialética, n. 70, jan.- 2009, p. 79-80; SHIMURA, Sérgio. Prazo para a ação rescisória. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 209, jul.-2012, p. 209. Ainda Barbosa Moreira destaca que “Cumpre ressalvar que os capítulos meramente acessórios de algum outro ficam abrangidos pela impugnação relativa ao capítulo principal, mesmo que o recorrente silencie a respeito deles” MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil... cit., p. 356. Na seara jurisprudencial, o TST parece ter o mesmo entendimento, ao indicar, no inciso II, da súmula 100 de sua jurisprudência dominante, que “Havendo recurso parcial no processo principal, o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes, contando-se o prazo decadencial para a ação rescisória do trânsito em julgado de cada decisão, salvo se o recurso tratar de preliminar ou prejudicial que possa tornar insubsistente a decisão recorrida, hipótese em que flui a decadência a partir do trânsito em julgado da decisão que julgar o recurso parcial”.
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