Sobre a ameaça terrorista em tempos de estratégias equivocadas (ou: precisamos continuar falando sobre a ingerência militar ocidental)

28/09/2016

Por Konstantin Gerber e Ana Helena de F. R. Quinteiros - 28/09/2016

Dos cursos ministrados pelos Profs. Julian Fernandez[1] e Philippe Lagrange[2], pode-se questionar se a intervenção militar da França na Síria é necessária e proporcional, quando de seu exercício de legítima defesa individual diante de ameaças iminentes de ataques terroristas, bem como depois dos efetivos ataques à sua população civil.

Uma primeira provocação tangente à questão que deve ser suscitada é se a geração massiva de refugiados pode ou não ser considerada um dano colateral da intervenção militar. Um segundo questionamento que também surge é se houve motivos para a primeira intervenção militar na Síria.

Isso porque a legítima defesa de um Estado existe diante de um ataque armado grave e também, conforme o costume internacional do séc. XIX, para os casos de ameaça iminente. As questões que se colocam são a respeito de quando se pode invocar a legítima defesa, se esta pode perdurar no tempo e, ainda, se pode ou não ser dirigida a atores não-estatais.

Tal meio de defesa, previsto no art. 51 da Carta das Nações Unidas, tem sua origem na prática costumeira da sociedade internacional. Há quem admita interpretação expansiva da legítima defesa a fim de englobar atores não-estatais, o que permitiria reagir a ataques provindos do Estado Islâmico (ou, preferível no acrônimo árabe, Daesh).

Para a intervenção francesa no Iraque não há problema de legitimidade jurídica, pois houve autorização deste para que o Estado francês procedesse com a intervenção por meio da coalizão de Estados, para o exercício da legítima defesa coletiva em face do Daesh, ainda que esta problemática terrorista remonte às primeiras intervenções ocidentais no Afeganistão e no próprio Iraque. Intervenções essas duramente criticadas, sobretudo a realizada em solo iraquiano em face da rejeição por parte de muitos Estados da tese da legítima defesa preventiva diante de iminentes ataques.

Segundo a Carta da ONU, para haver utilização da força é preciso autorização do Conselho de Segurança, ressalvados os casos de legítima defesa. Foram aprovadas Resoluções deste órgão posteriores às intervenções militares tanto do Iraque quanto do Afeganistão, porém, não na condição de uma autorização implícita de uso da força, mas sim na condição de uma situação de ruptura de paz, para o que se autorizou a atuação de forças multinacionais em referidos Estados.

Em relação ao Afeganistão, são diversas as Resoluções tanto sobre o terrorismo, quanto sobre sua ameaça, como ilustra a Resolução 2160 de 2014, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 8522 de 28 de setembro de 2015, que renovou o regime de sanções aplicáveis “a indivíduos e entidades do Talibã ou associados ao Talibã que constituam ameaça à paz, à estabilidade e à segurança do Afeganistão”.

Para o tema ora enfocado, refira-se o Decreto n. 8799 de 06 de julho de 2016, “que dispõe sobre a execução da Resolução 2253 de 17 de dezembro de 2015 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que atualiza e fortalece o regime de sanções, imposto pela Resolução 1267 (1999), relativo ao Estado Islâmico no Iraque e no Levante e à Al-Qaeda”, calcado no capítulo VII da Carta das Nações Unidas, na hipótese de ruptura da paz, a qual não está imune de críticas de se haver “aparelhamento” das Nações Unidas por parte dos Estados que se dispuserem a “cooperar”.

Atualmente, o ponto está em enfrentar a carta do governo Sírio, a qual rechaça a intervenção francesa, qualificando-a como violação de sua soberania, ainda que se possa argumentar que  a condição de Estados combalidos ou com força insuficiente para o combate ao terrorismo possam dar ensejo a justificativas de falta de cooperação a ponto de exigir uma intervenção militar (o que não é todavia reconhecido pelo direito internacional para justificar o uso da força). Como afirmado na última das cartas do governo Sírio: “quem quiser combater os terroristas terá de se coordenar com o governo sírio”[3].

A contrario sensu, tem-se invocado um princípio, desdobrado em uma teoria (“unable or unwilling theory”, utilizada também para legitimar a jurisdição internacional complementar quando dos julgamentos de criminosos de guerra), que vem sendo tomada de empréstimo para justificar intervenções militares quando certos Estados são inaptos em conter o terrorismo ou a ameaça dele advinda.

A chamada doutrina da responsabilidade internacional de proteger foi utilizada na Resolução do Conselho de Segurança para Líbia (Resolução 1970 de 2011, Decreto n. 7.527 de 2011) mas não na da Síria, a despeito de que se possa argumentar pela necessidade de prevenir as atrocidades de crimes de massa, diante das notícias de utilização de armas químicas. Permitiu-se, na Líbia, a cooperação dos Estados-membros para tomar todas as medidas necessárias para proteger a população e suas áreas sob ameaça, bem como o estabelecimento de uma “zona de exclusão aérea”. O mesmo não ocorre em território sírio, pois uma Resolução com este teor dependeria do apoio da Rússia (o que também não significa que as medidas tomadas na Líbia sirvam de modelo, dada a atual situação neste país).

Nada obstante, entendemos que da mesma forma que a intervenção militar no Afeganistão não resolveu o problema do terrorismo lá vivenciado - que só se alastrou neste e em outros países[4] -, a intervenção militar francesa fará somente agravar o risco de vítimas civis. Isso porque na resposta às incursões francesas quem sofre é o civil e não o militar. Como pensa o Prof. Reginaldo Nasser “deixar de ser alvo [de atentados terroristas] é deixar de interferir [em conflitos armados]”[5].

Ainda que de reunião realizada por dezessete países em 14 de novembro de 2015 em Viena se tenha cogitado um cessar-fogo, o problema reside em não se chamar todos atores ou grupos e os diversos Estados para negociação, sem ainda contar que o Presidente sírio al-Assad enfrenta oposições em frentes diversas, tecendo-se, assim, um quadro complexo e entravado de negociações[6]. Isso sem dizer dos curdos e curdas, que também lutam contra o  Daesh. O apoio a esta frente encontra fortíssima objeção na Turquia.

O terrorismo observado hoje caracteriza-se como fenômeno transnacional. Preferimos, inclusive, nominar de criminalidade terrorista transacional pois não apenas se organiza por meio de redes, localizadas em diversos Estados, como também se vale e se imbrica com a criminalidade comum e com o crime organizado para seu financiamento, implicando uma complexidade de ações criminosas assim como exigindo um sistema multiforme de prevenção e combate, que perpassa todo um (re)direcionamento de política criminal e de securitização.

Pode-se argumentar que grande parte do financiamento do Estado Islâmico provém das contribuições (ou “taxas”) das cidades ocupadas, onde também sempre houve comércio de petróleo. Os campos de Mosul geram vultosos lucros[7].

Ponto destacável é que não há de se falar sempre em terrorismo religioso. O que sempre houve é um mercado da violência, para não dizer uma verdadeira economia de guerra, fortemente estimulada na região.

Cumpre então pontuar o seguinte: na espiral de violência desenvolvida, e adstrito ao que o professor Reginaldo Nasser expôs em debate no dia 30 de julho de 2016, não existe terrorismo sem organização (e aí o viés de criminalidade organizada), o que não significa que o terrorismo tenha apenas um modo hierárquico e com divisão de tarefas estritamente delineadas para arquitetar e executar seus atos, querendo com isso dizer que, a despeito da organização, quem pode cometer tais atos terroristas são amadores, que dispõe de pistolas automáticas de baixo custo e das mais diversas formas criativas de se armar.

Referido pesquisador enfoca o terrorismo como um fato social, retomando E. Durkheim, para não dizer um fato social total, para lembrarmos M. Mauss. Isso porque o tema é complexo. De sua reflexão podemos extrair mais dois questionamentos: o da necessidade de entender como funcionam tais organizações terroristas e do porquê de haver tanta cooptação (recrutamento de estrangeiros) por parte do  Daesh, ainda que seja difícil, senão impossível, fazer uma psicologia das motivações terroristas. O que há: a espiral da vingança, nem precisando para isso referir R. Girard ou autores que estudam esta temática.

Há diversas formas de sustentar o financiamento às atividades terroristas, dentre as quais as mais recentes e evidentes adotadas pelo Daesh, de exploração econômica das áreas dominadas e de sua população, representam apenas mais uma estratégia. O financiamento pode originar-se, por exemplo, do sequestro de nacionais com intuito de extorsão dos governos; o dinheiro pode advir de empresas de fachada, de patrocínio estatal, de doadores privados, de outras atividade da criminalidade organizada, e de investimentos e negócios, oportunidades em que ocorre a chamada lavagem de dinheiro, manifestamente um meio ilícito.

Conforme estudo de María Cecilia Dómine[8], são depósitos em cash de pequenas quantidades de dinheiro ilícito ou compras de contratos de seguro e demais produtos financeiros que fazem com que o dinheiro tanto possa abastecer empresas “legítimas”, quanto organizações terroristas. Não se olvide do risco da lavagem ocorrer por meio do mercado de arte em razão da volatilidade de preços e facilidade de atuação, eventualmente podendo tal montante ilícito servir ao financiamento de organizações terroristas.

Por evidente, deve-se combater o financiamento e buscar meios de cooperação internacional para tanto. Ademais, poder-se-ia agregar a necessidade de diálogo intercultural sobre direitos humanos, mas em momento de crise aguda como assim o temos no cenário internacional, deve-se apontar com maior premência para a necessidade de melhoria na cooperação e enfrentamento da obtenção de recursos financeiros destas organizações. Caso contrário, a resposta por meio do movimento militarista continuará recrudescendo e, por consequência, assim também os ataques terroristas.

O Brasil editou sua lei antiterrorismo (Lei n. 13.260/2016), prevendo severa punição para o financiamento (art. 6º), o que permite ao Brasil extraditar financiadores. A pressão internacional vinha nesse sentido, buscando maior cooperação judicial, o que não descura de haver maior articulação entre os órgãos do governo brasileiro ou maior cooperação internacional com as organizações internacionais e demais Estados, ainda que se tenha notícia da criação do “Plano Estratégico de Segurança Integrada para os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016” (Portaria Interministerial n. 1678 de 2015) e também do Centro Integrado de Antiterrorismo - CIANT (Portaria Interministerial n. 269 de 30 de junho de 2016).

Para a cooperação judicial, a questão estará sempre entre se considerar ou não um ato por terrorismo ou por delito político, não sujeito à extradição, pelo princípio da não devolução de nacionais que estejam sendo perseguidos ou com risco de perseguição em seu país. O embate surgiu no caso Battisti, quando o STF entendeu ser caso de extradição, ao passo que o Presidente da República de não-devolução, restando, pois, a última decisão do STF em considerar que o ato de extraditar ou não é ato da soberania que cabe ao Chefe de Estado.

Inteligência seria perceber a imbricação dos mercados ilícitos com os mercados lícitos e pensar qual a melhor estratégia no enfrentamento à essa fusão. Não vivemos o problema do terrorismo, mas sim outros problemas como o da violência urbana e dos conflitos fundiários. Nas Américas, inventou-se o narcotráfico, depois a narcoguerrilha e, então, o narcoterrorismo, sem mencionar a prática do terrorismo de Estado (p.ex., com desaparecimentos forçados) em meio a isso tudo.

O termo narcoterrorismo pode ser associado a um período específico na Colômbia, quando da guerra declarada por Pablo Escobar. Pode-se questionar quando se noticia que ônibus foram incendiados nos estados de São Paulo, Rio Grande do Norte ou Santa Catarina se seriam atos terroristas, mas estes não estariam enquadrados como atos relacionados a xenofobia, discriminação ou preconceito nos termos do art. 2 da Lei 13.260 de 2016. Da mesma forma pode-se questionar se os ataques do PCC em 2006 configurariam atos terroristas, pois aterrorizaram a população, paralisando a capital paulista, alvejando-se, mormente, alvos estatais. Portanto, pairam dúvidas se existe terrorismo no Brasil. Pode-se dizer: o que existe é o fenômeno das chacinas que certamente aterroriza familiares e moradores de periferia.

Como bem notamos no Brasil, buscar soluções através da prisão, do populismo penal, ou ainda com a perpetração de extermínio voltado a uma parcela bem definida da população, não resolvem o problema da violência (ao revés, a agrava, decorrente do encarceramento massivo combinado com destratamento penitenciário e com espirais de vingança no mercado necessariamente corruptor das drogas).

Da mesma forma, para o caso da ameaça terrorista, entendemos que a intervenção militar na Síria não terá o condão (é pouco provável) de reduzir o risco de terrorismo ou expansão do ódio ou, ainda, de interferir na logística do mercado de armas e no financiamento da atividades terroristas, restando, apenas, como mais um capítulo do populismo militarista, cujas vítimas continuam sendo civis, independentemente da nacionalidade.


Notas e Referências: [1] A expansão do direito à legítima defesa à luz das intervenções na Síria. XII Curso de Inverno de Direito Internacional do Centro de Direito Internacional, 11 a 15 de julho de 2016, Belo Horizonte, PUC-MG [2] Autorização do uso de força pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas: formas tradicionais e novos desenvolvimentos. XII Curso de Direito Internacional do Centro de Direito Internacional, 18 a 22 de julho de 2016, Belo Horizonte, PUC-MG [3] ABRIL, Aviação francesa mata 120 civis na Síria. 20 de julho de 2016, disponível em: http://www.abrilabril.pt/internacional/aviacao-francesa-mata-120-civis-na-siria [4] Como bem ilustra o jornalista britânico, Patrick Cockburn, especialista na cobertura do Oriente Médio há quase quatro décadas, ao longo de sua obra A origem do Estado Istlâmico (2015, Editora Autonomia Literária), “Foram os Estados Unidos, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes que criaram as condições para a ascensão do ISIS. Eles sustentaram um levante sunita na Síria, embora fosse óbvio, desde 2012, que Assad não cairia.” (p.49) (...) “Era evidente que os governos ocidentais tinham interpretado mal a situação no Iraque e na Síria. Por dois anos, políticos iraquianos alertaram quem quisesse escutar que, se guerra civil continuasse, desestabilizaria o frágil status quo do Iraque.” (p.170). [5] TATEMOTO, Rafael. “França esteve envolvida na criação do Estado Islâmico”, afirma professor. Brasil de Fato, 15 de julho de 2016, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/07/15/franca-esteve-envolvida-na-criacao-do-estado-islamico-afirma-professor/ [6] Cf. nota de rodapé BELKAID, Akram. Na Síria, uma saída política bastante incerta. Le Monde Diplomatique, dezembro 2015, pp. 12-13. [7] Cf. nota de rodapé PRASHAD, Vijay. Isis Oil. 3 de dezembro de 2015, disponível em: http://www.counterpunch.org/2015/12/03/isis-oil/ [8] DÓMINE, María Cecilia. Criminalidad económica y terrorismo. Revista de Derecho n. 01, Universidad Católica, Konrad Adenauer, Montevideo: 2006, pp. 124-125.

konstantin-gerber. . Konstantin Gerber é advogado, doutorando e mestre em filsofia do Direito, PUC SP, onde integra os grupos de pesquisa Direitos Fundamentais e Filosofia Política do Direito.. .


ana-helena-de-f-r-quinteiros. . Ana Helena de F. R. Quinteiros é advogada, bacharela em Direito pela PUC-SP, onde integra o grupo de pesquisa em direitos fundamentais e o núcleo de estudos criminais (NECrim).. .


Imagem Ilustrativa do Post: MINISTRO DE DEFENSA SUPERVISÓ BASES CONTRATERRORISTAS DEL VRAEM // Foto de: Galeria del Ministerio de Defensa del Perú // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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