Soberania Patriarcal

22/10/2015

Mensagem Preliminar

Entre tantos olhares que se busca apresentar na coluna feminismos, como grupo possuímos uma conversão de compreensões sobre um feminismo emancipatório, o qual repudia a substituição do domínio patriarcal exercido sobre as mulheres pelos seus companheiros, cônjuges e pais pela opressão do Estado. A partir dessa visão coletiva, optamos que nessa semana, ao apresentarmos o primeiro artigo sobre feminismos, homenagearíamos uma pessoa que é um marco simbólico e material das autoras da presente coluna, a patronese da coluna, profa. Vera de Andrade.

A profa. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade é professora de Criminologia na graduação e na pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires e pela Universidade Federal do Paraná e doutora e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.

Vera de Andrade marcou e marca diariamente as pessoas, e mais especificamente as mulheres, que passam por sua vida. Além de um ser humano que possui um coração que transborda todas as formas mais belas de afeto, a criminóloga é referência brasileira no campo da criminologia crítica e do feminismo libertador. Em 2004, Vera de Andrade apresentou ao Brasil o texto crucial para compreender a luta de gênero pela igualdade e pela superação da dominação do patriarcado e da opressão realizado pelo sistema de justiça criminal, intitulado “Soberania Patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher”[1]. O referido artigo foi reformulado e atualizado para compor a obra “Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão” (2013) com o título “ A Soberania Patriarcal: A criminologia feminista, a mulher e o feminino no sistema de justiça criminal.”

Por toda repercussão construtiva nos movimentos sociais, na compreensão dos juristas e nos novos olhares que ela permitiu que compreedessemos, inauguramos a coluna sem a participação das autoras-colunistas, para reiterarmos a importância de Vera de Andrade e de seu texto para o direito e para os feminismos brasileiros – com um sorriso de sim ao pedido de nos apadrinhar – dividimos com vocês, esse marco intitulado “Soberania Patriarcal”.


Soberania Patriarcal 

Por Vera Regina Pereira de Andrade - 22/10/2015

“Temos direito a reivindicar a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza; temos direito a reivindicar a diferença quando a igualdade nos descaracteriza.”

Boaventura de Sousa Santos

1.1 O lugar da Fala: uma Palavra sobre a Dor, o Saber e o(s) Sujeito(s). O Continuum Criminológico e o Argumento

Despindo-me das pseudoassepsias do cientificismo secular, devo iniciar dizendo que o universo da violência é, antes de mais nada, um universo de dor e que se enfrentá-la como objeto teórico e de reflexão implica necessariamente um esforço de suspensão da dor: colocá-la em suspenso não implica, em momento algum, perdê-la de vista ou divorciar-se dela porque é a solidariedade para com a dor e o propósito de contribuir para superá-la que motiva a tentativa de resgatar para o problema a voz dos saberes emancipatórios.

Um campo do saber no qual identifico essa potencialidade emancipatória e embaso minha argumentação é o proveniente da Criminologia desenvolvida com base no paradigma da reação ou controle social (desde a década de 1960), mais especificamente a Criminologia crítica e a Criminologia feminista.[2]

Por meio desse continuum, o sistema penal, este sujeito monumental, não apenas veio a se constituir no objeto criminológico central do nosso tempo, mas veio a sê-lo, sob o influxo do feminismo, no tratamento que imprime à mulher. Podemos demarcar, pois, nesse continuum, três grandes momentos históricos e epistemológicos:

  1. na década de 1960, consolida-se a passagem de um paradigma criminológico etiológico, centrado na investigação do crime e no criminoso (violência individual), de corte ainda positivista, para um paradigma centrado na investigação da reação ou controle social e penal (violência institucional), de corte construtivista-interacionista, dando origem a uma Criminologia da reação ou controle social, amadurecida por dois saltos qualitativos;
  2. a partir da década de 1970, o desenvolvimento materialista desta Criminologia marca o surgimento das chamadas Criminologia radical, nova Criminologia e Criminologia crítica, Criminologia dialética, Criminologia da liberação, no âmbito das quais o sistema penal receberá uma interpretação macrossociológica, no marco das categorias capitalismo e classes sociais (Criminologia da violência estrutural);
  3. quase simultaneamente, o desenvolvimento feminista deste paradigma origina a chamada Criminologia feminista, no âmbito da qual o sistema penal receberá também uma interpretação macrossociológica, no marco das categorias patriarcado e gênero, e a indagação sobre como o sistema penal trata a mulher, a mulher como vítima e uma Vitimologia crítica assumem aqui um lugar central.

Fundamental, portanto, invocar a importância do feminismo como outro sujeito coletivo monumental que, fazendo a mediação entre a história de um saber masculino onipresente e a história de um sujeito ausente – o feminino e sua dor –, e ressignificando a relação entre ambas, aparece como fonte de um novo poder e de um novo saber de gênero, cujo impacto (científico e político) foi profundo no campo da Criminologia, com seu universo até então completamente prisioneiro do androcentrismo.

Gênero é um signo que se tornou teórica e politicamente relevante desde a década de 1970, quando, sob o influxo do movimento feminista e de expressiva revolução de paradigmas nas ciências, estendeu seu significado original de uma classe de algo (música, literatura) ou de seres (animais, vegetais), para designar uma classe de seres humanos (pessoas), configurando-se doravante como um conceito de grande valor para a compreensão da identidade, dos papéis e das relações entre homens e mulheres na modernidade.

Doravante, será possível distinguir entre sexo (biológico) e gênero (social), e a partir da matriz sexo/gênero ressignificar a dicotomia homem/mulher, feminino/masculino, desconstruindo tanto o modelo androcêntrico de sociedade e de saber quanto os mecanismos que, a um só tempo, asseguravam e ocultavam a dominação masculina, mantendo a diferença de gênero ignorada.

Para além do dado biológico que define o sexo (cada nascimento requer um registro sexual), o gênero será concebido como o sexo socialmente construído.

Nessa esteira:

É a construção social do gênero, e não a diferença biológica do sexo, o ponto de partida para a análise crítica da divisão social de trabalho entre mulheres e homens na sociedade moderna, vale dizer, da atribuição aos dois gêneros de papéis diferenciados (sobre ou subordinado) nas esferas da produção, da reprodução e da política e, também, através da separação entre público e privado.[3]

Sem adentrar aqui o que a teorização deixou intocado, como a dicotomia natureza/cultura, importa referir que seu impacto no campo da Criminologia (antecedido pela Ciência do Direito)[4] tem sido fecundo para a compreensão das relações entre criminalidade, sistema de justiça penal, criminalização e mulher/feminino.

De fato, na arena dos saberes talvez nenhum outro tenha sido tão prisioneiro do androcentrismo quanto a Criminologia, com seu universo até então inteiramente centrado no masculino, seja pelo objeto do saber (o crime e os criminosos), seja pelos sujeitos produtores do saber (os criminólogos), seja pelo próprio saber.

O Homem criminoso (1871-1876), título da sacralizada obra do médico italiano César Lombroso, é emblemático a respeito, muito embora, não nos olvidemos, o próprio Lombroso já procurava, na continuidade desta obra, conceder respostas causais para a criminalidade das fêmeas, as prostitutas.[5]

As perguntas possibilitadas pela perspectiva de gênero vão, hoje, na esteira da Criminologia da reação social e crítica (com o deslocamento do objeto criminológico do crime e do criminoso para o sistema de justiça penal e o processo de criminalização por ele exercido), muito além de Lombroso e de seu tempo. A primeira pergunta se refere precisamente à ausência secular da mulher, seja como objeto, seja como sujeito da Criminologia e do próprio sistema penal. Refere-se aos silêncios do saber e do poder: o que sabemos da mulher no universo da chamada criminalidade (como autora e como vítima de crimes) e da criminalização? Por que as mulheres são muito menos criminalizadas do que os homens, como evidencia a clientela prisional do mundo ocidental? Praticam elas menos crimes? De que crimes se trata? Quando, propriamente, as mulheres passaram a acessar, com regularidade, funções no espaço público e no sistema de justiça? Como as exercem e que impacto têm sobre o sistema de justiça? Reprodutor ou transformador? Como o sistema de justiça penal trata a mulher no seu interior (operadora) e desde o exterior (como autora e vítima de crimes)? É possível responder a essas questões? Existe um incognoscível criminológico?

Esses questionamentos, entre tantos outros, bem ilustram a dimensão dos interrogantes e dos desafios teórico-práticos que a Criminologia e o sistema de justiça penal estão interpelados a enfrentar num tempo de profundas transformações nas relações sexuais e de gênero, e no qual não mais se legitimam, nem desigualdades inferiorizadoras nem igualdades descaracterizadoras.

A Criminologia, portanto, nascida oficialmente no século XIX como a ciência da criminalidade, do crime e do criminoso, transformou-se e está a se transformar, cada vez mais, em teoria crítica e sociológica do sistema de justiça penal (Ciência Social), ocupando-se hoje fundamentalmente da análise de sua complexa fenomenologia e funcionalidade nas sociedades capitalistas patriarcais. E, muito embora já possamos contar com resultados criminológicos solidamente acumulados e considerados pela comunidade acadêmica irreversíveis nesta direção, não estamos perante epistemologias fechadas ou saberes acabados, mas sim diante de construções abertas, processuais. Penso, inclusive, que uma das mais fortes interpelações criminológicas do presente seja precisamente o desenvolvimento cumulativo e integrado das perspectivas “crítica” e “feminista”, juntamente com outras, como a Criminologia do racismo e da cultura, visto que tal bipartição epistemológica não pode ser senão provisória. Compartilho, de outro lado, as preocupações expostas por Guilherme Merolli no sentido do enorme silêncio em torno à construção de uma Criminologia feminista, que atravessa a produção e o ensino da Criminologia manualística no Brasil.[6]

Essa é precisamente a perspectiva em que se insere este texto, pois, partindo de algumas teorias e conceitos criminológicos acumulados, procura avançar e construir conhecimento novo em relação ao funcionamento do sistema de justiça penal, expresso em novas explicações e categorias que aqui proponho (como a lógica da “honestidade” e sua relação com o capitalismo patriarcal), exercendo aquele esforço integrador das perspectivas crítica e feminista. Trata-se de conhecimento focado na figura da vítima e na relação entre autor e vítima, na relação entre criminalização e vitimização pelo sistema penal (aspecto quase inexplorado pela Criminologia crítica), na posição da mulher e do feminino no sistema penal e sua relação com o patriarcado (aspecto explorado pela Criminologia feminista, mas com escassa integração com o acúmulo teórico da Criminologia crítica).

O ponto de partida da análise aqui desenvolvida foi uma pesquisa que realizei, sob o patrocínio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), intitulada “Sistema de justiça penal e violência sexual contra as mulheres: análise de julgamento de crimes sexuais em Florianópolis, na década de oitenta”.[7] Esta pesquisa, que partiu da análise documental da criminalização sexual – por meio do rastreamento de todos os processos por crimes de estupro e atentado violento ao pudor, julgados nas varas criminais do Fórum da Capital de Florianópolis, na década de 1980 –, desenvolveu-se sobre a base teórica da Criminologia crítica e feminista para sustentar e concluir o seguinte: (a) em sentido fraco, o sistema penal é ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e da gestão do conflito, e muito menos para a transformação das relações de gênero. O sistema penal não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado a acionar – o castigo – é desigualmente distribuída e não cumpre as funções preventivas (intimidatória e reabilitadora) que se lhe atribuem. Nesta crítica, sintetizam-se o que denomino de incapacidades protetora, preventiva e resolutória do sistema penal; (b) em sentido forte, o sistema penal (salvo situações contingentes, empíricas e excepcionais) não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência (particularmente da violência sexual, que é o tema da pesquisa), como também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente que afeta a própria unidade (já complexa) do movimento feminista. Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas.

Ao incidir sobre a vítima mulher, a sua complexa fenomenologia de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o sistema penal duplica, em vez de proteger, a vitimação feminina. É que, além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas (estupro, atentado violento ao pudor etc.), a mulher se torna vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual.

A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema penal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura de discriminação, humilhação e estereotipia. Este aspecto é fundamental, na medida em que não há uma ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe), relações sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação social) que violentam e discriminam a mulher e o sistema penal que a protegeria contra este domínio e opressão, mas sim um continuum e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle formal exercido pelo segundo.

1.2 Identidade Do Sistema Penal: Quem é o Sistema e o que Promete?

Para desenvolver o argumento, inicio com a indagação: quem é o sistema penal? E indago quem, precisamente porque se trata de um sujeito e, diga-se, de um sujeito monumental (em abrangência e poder).

1.2.1  Dimensões Normativa e Institucional-Instrumental: O Sistema é o Outro

A primeira dimensão e imagem do sistema penal é a da lei[8] e a das instituições formais de controle, ou seja, a sua dimensão stricto sensu, sem dúvida, a mais visível: Polícia, Ministério Público, Justiça, sistema penitenciário, com sua constelação prisional e manicomial: decisões policiais, ministeriais, judiciais, penitenciárias[9]. Aqui, o Estado se faz onipresente nos níveis dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário: o sistema é monumentalmente percebido como sendo o outro.

1.2.2 Dimensão Integrativa do Controle Social Informal: O Outro não está Só

Enquanto mecanismo de controle[10], o sistema penal, entretanto, não está só. Ao contrário, encontra-se inserido na mecânica global de controle social, de tal modo que não se reduz ao complexo estático da normatividade nem da institucionalidade, sendo concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização para o qual concorrem não apenas as instituições do controle formal, mas também o conjunto dos mecanismos do controle social informal, a saber: família, escola (da pré-escola à pósgraduação, especialmente as escolas formadoras dos operadores do sistema penal), mídia falada (tv), escrita (jornais, literatura, romances, histórias em quadrinhos), internet, moral, religião, medicina, mercado de trabalho.

Existe, portanto, um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle, circundado pelas instituições informais de controle. E todos nós integramos e participamos da mecânica de controle, seja como operadores formais ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública. Chega-se, por esta via, à dimensão ideológica do sistema penal.

1.2.3 Dimensão Ideológico-Simbólica: O Sistema Somos todos Nós

Uma dimensão muito mais invisível e difusa (lato sensu) do sistema é a dimensão ideológica ou simbólica, representada tanto pelo saber oficial (as ciências criminais) quanto pelos operadores do sistema e pelo público, enquanto senso comum punitivo (ideologia penal dominante). Esta capilaridade não deve obscurecer a sua onipresença, tanto ou mais expressiva que a do Estado, e que obriga à percepção de que o sistema somos, informalmente, todos nós: em cada sujeito se desenham e se operam, desde a infância, um microssistema de controle e um microssistema penal (simbólico) que o reproduz cotidianamente.

Referir a dimensão simbólica do sistema implica referir os discursos (as representações e as imagens) das ciências criminais que, conjuntamente com o discurso da lei, tecem o fio de sua (auto) legitimação oficial, pois é do processo de reprodução ideológica do sistema que aqui se trata.

É precisamente a lei e o saber (ciências criminais), dotados da ideologia capitalista e patriarcal, que municiam o sistema de uma discursividade que justifica e legitima a sua existência (ideologias legitimadoras), coconstituindo o senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social, com ênfase contemporaneamente para a mídia.

Notável é o esforço histórico das ciências criminais na tentativa de fazer a assepsia entre o sistema penal e o sistema social e o convencimento jurídico-penal e público de um como se: como se o sistema penal funcionasse como se declara.

São, assim, funções oficialmente declaradas ou promessas legitimadoras do sistema penal: proteção de bens jurídicos que interessam igualmente a todos os cidadãos (o bem) por meio do combate eficaz à criminalidade (o mal), a ser instrumentalizada pelas funções da pena: uma combinatória de retribuição ou castigo com prevenção geral (intimidação erga omnes pela ameaça da pena cominada em abstrato na lei penal) e especial (reabilitação in persona mediante execução penal) a ser aplicada dentro dos mais rigorosos princípios penais e processuais penais liberais (legalidade, igualdade jurídica, devido processo etc.).

Estamos diante de uma ideologia extremamente sedutora, também para as mulheres, e com um fortíssimo apelo legitimador (da proteção, da evitação, da solução) como se, à edição de cada lei penal, sentença ou cumprimento de pena, fosse mecanicamente sendo cumprido o pacto mudo que opera o traslado da barbárie ao paraíso. Por isso mesmo, esta ideologia legitimadora se mantém constante até os nossos dias e consubstancia o que Alessandro Baratta denomina de “mito do Direito penal igualitário”.[11]

1.3 Funcionalidade do Sistema Penal

1.3.1 Das Funções Declaradas às Funções Reais e à Eficácia Invertida

Passando à análise da funcionalidade do sistema penal, o ponto de inflexão fundamental a demarcar é a contradição entre funções declaradas e funções latentes, pois, criminologicamente, sabemos que há tanto um profundo déficit histórico de cumprimento das promessas oficialmente declaradas pelo seu discurso oficial (do qual resulta sua grave crise de legitimidade) quanto o cumprimento de funções latentes inversas às declaradas. Por essa razão, em outro lugar, afirmei que o sistema penal se caracteriza por uma eficácia instrumental invertida, à qual uma eficácia simbólica (legitimadora) confere sustentação[12]. Quer dizer: enquanto suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema), porque não são e não podem ser cumpridas, o sistema penal cumpre, de modo latente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade.

Mas é precisamente o funcionamento ideológico do sistema – a circulação da ideologia penal dominante entre os operadores do sistema e o senso comum ou opinião pública – que perpetua o ilusionismo, justificando socialmente a importância de sua existência e ocultando suas reais e invertidas funções. Resulta daí uma eficácia simbólica, sustentadora da eficácia instrumental invertida.

A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do sistema penal não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construí-la seletiva e estigmatizantemente, e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, de gênero, de raça).

Nesse sentido, o sistema não reage contra uma criminalidade que existe ontologicamente na sociedade, independentemente da sua intervenção. É a própria intervenção do sistema (autêntico exercício de poder, controle e domínio) que, ao reagir, constrói e coconstitui o universo da criminalidade (daí o processo de criminalização) mediante: (a) definição legal de crimes pelo legislativo, que atribui à conduta o caráter criminal, definindo-a (e, com ela, o bem jurídico a ser protegido) e apenando-a qualitativa e quantitativamente (criminalização primária); (b) seleção das pessoas que serão etiquetadas, num continuum pela Polícia, Ministério Público e Justiça (criminalização secundária); e (c) estigmatização, especialmente na prisão, como criminosos, entre todos aqueles que praticam tais condutas (criminalização terciária).[13]

Pelo fato de o sistema não estar só, para compreender a sua funcionalidade é necessário apreendê-lo como um subsistema dentro de um sistema de controle e seleção de maior amplitude. O sistema penal não realiza o processo de criminalização/vitimização e estigmatização à margem ou inclusive contra os processos gerais de etiquetamento, que têm lugar no seio do controle social informal, como a família, a escola (por exemplo, a filha estigmatizada como “ovelha negra” ou “menina fácil”, o aluno marcado como “difícil” pelo professor ou como “maconheiro” pelos colegas, entre outros) e o mercado de trabalho, entre outros.

Toda a mecânica de controle (enraizada nas estruturas sociais) é constitutiva, reprodutora das profundas assimetrias de que se engendram e se alimentam, afinal, os estereótipos[14], os preconceitos e as discriminações, sacralizando hierarquias. E nós interagimos cotidianamente na mecânica (inseridos que estamos em relações de poder nem sempre percebidas, sendo sujeitos constituídos e constituintes, controlados e controladores), particularmente na dimensão simbólica da construção social da criminalidade/vitimação, representada por nosso microssistema ideológico que procede a microsseleções cotidianas, ao associar, estereotipadamente: criminosos com homens pobres; desempregados de rua com perigosos; estupradores com homens de lascívia desenfreada; vítimas com mulheres frágeis, entre outros. Essa é, pois, a funcionalidade que movimenta e reproduz o sistema penal.

1.3.2 A Seletividade Estigmatizante: Seleção de Criminosos e de Vítimas entre todos Nós

A seletividade é, portanto, a função real e a lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, comum às sociedades capitalistas patriarcais. E nada simboliza melhor a seletividade do que a clientela da prisão, ao revelar que a construção (instrumental e simbólica) da criminalidade – a criminalização – incide seletiva e de modo estigmatizante sobre a pobreza e a exclusão social, majoritariamente de cor não branca e masculina, e apenas residualmente (embora de forma crescente) feminina.[15]

A mencionada seletividade pode ser formulada nos seguintes termos: todas as pessoas, de todos os estratos sociais, faixas etárias, etnias e gêneros, ou seja, todos nós (e não uma minoria perigosa da sociedade) praticamos, frequentemente, fatos definidos como crimes, contravenções ou infrações administrativas e somos, por outro lado, vítimas destas práticas (o que muda é a especificidade das condutas). Assim, tanto a criminalidade quanto a vitimação são majoritárias e ubíquas (todos nós somos criminosos e vítimas)[16], percepção heurística para um senso comum acostumado a olhar a criminalidade como um problema externo (do outro, outsiders), a manter com ela uma relação de exterioridade e, portanto, a se autoimunizar.

Ora, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua e a clientela do sistema penal é composta, regularmente e em todos os lugares do mundo, por homens adultos jovens, pertencentes aos mais baixos estratos sociais e em grande medida não brancos, isto significa que a impunidade e a criminalização (e também a vitimação) são orientadas pela seleção desigual de pessoas, de acordo com uma fortíssima estereotipia presente no senso comum e nos operadores do controle penal, e não pela incriminação igualitária de condutas, como programa o discurso jurídico-penal.

Para além, contudo, da ênfase criminológica crítica na construção seletiva da criminalidade, na criminalização seletiva, ou seja, na distribuição desigual do status negativo de criminoso, é necessário enfatizar a construção seletiva da vitimação (que não aparece nas estatísticas), uma vez que o sistema também distribui desigualmente a vitimação e o status de vítima; até porque autor-vítima é um par que mantém, na lógica adversarial do sistema de justiça, uma relação visceral: reconhecer autoria implica, tácita ou expressamente, reconhecer vitimação. A impunidade é a contraface do processo de criminalização.

Vitimização e criminalidade são possibilidades majoritárias, mas desigualmente distribuídas de acordo com estereótipos de vítimas que operam no senso comum e jurídico. Com efeito, “a intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a ‘vítima’ como sobre o ‘delinquente’. Todos são tratados da mesma maneira”.[17]

Nessa esteira, deve-se apreender tanto a vulnerabilidade à criminalização quanto a vulnerabilidade à vitimação, como veremos a seguir.

Considerando, enfim, que o sistema penal está estruturalmente dedicado “a administrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente inferior a 10%”[18], concluo não apenas que “os processos de imunização constituem a interface negativa dos processos de criminalização”[19], mas que imunidade[20] e impunidade constituem a regra de funcionamento do sistema penal e não a sua disfunção.[21]

1.4 O Patriarcado e o Capitalismo como Matrizes Históricas do Sistema Penal: O Sentido das Seleções

Evidente que o funcionamento interno do sistema penal somente adquire sua significação plena quando reconduzido ao sistema social (à dimensão macrossociológica) e inserido nas estruturas profundas em ação que o condicionam, a saber, o capitalismo e o patriarcado que ele expressa e contribui para reproduzir e relegitimar, aparecendo desde sua gênese como um exercício de poder e controle seletivo classista e sexista[22] (além de racista), no qual a estrutura e o simbolismo de gênero operam nas entranhas de sua estrutura conceitual, de seu saber legitimador, de suas instituições, a começar pela linguagem[23]: eis o sentido da seletividade. Ora, nisso, o sistema penal replica a lógica e a função real de todo o mecanismo de controle social, que, se em nível micro implica um exercício de poder e de produção de subjetividades (a seleção binária entre o bem e o mal, o masculino e o feminino), em nível macro implica um exercício de poder (de homens e mulheres), reprodutor de estruturas, instituições e simbolismos. O sistema penal ocupa, assim, um importantíssimo lugar na manutenção do status quo social.

Importante, nessa direção, a constatação fundamental de Alessandro Baratta[24] de que:

Para compreender o mecanismo geral de reprodução do status quo da nossa sociedade, contemporaneamente patriarcal e capitalista, faz-se necessário ter presente não apenas a importância estrutural da separação entre esfera pública e privada, mas, também, da complementaridade dos mecanismos de controle próprios dos dois círculos. Em um corpo social como o nosso, a divisão entre público e privado, formal e informal, constitui um instrumento material e ideológico fundamental para o funcionamento de uma economia geral do poder, na qual todas as várias relações de domínio encontram o seu alimento específico e, ao mesmo tempo, se entrelaçam e sustentam.

1.5 Funcionalidade de Gênero: O Androcentrismo do Sistema Penal

1.5.1 A construção Social do Gênero no Patriarcado: Espaços, Papéis e Estereótipos

Considero indispensável olharmos doravante para o androcentrismo do sistema penal e sua funcionalidade de gênero. Para tanto, é necessário incursionar brevemente na construção social do gênero no patriarcado (a dicotomia masculinofeminino), que, como é sabido, encontra-se em desconstrução, mas continua operando, como parece ser menos evidente, sobretudo no sistema penal. Isso implica falar em espaços (divisão entre público e privado com correspondente divisão social do trabalho), papéis (atribuição de papéis diferenciados aos sexos nas esferas da produção, da reprodução e da política) e estereótipos.

A esfera pública, configurada como a esfera da produção material, centralizando relações de propriedade e trabalhistas (o trabalho produtivo e a moral do trabalho), tem seu protagonismo reservado ao “homem” enquanto sujeito produtivo, mas não a qualquer “homem”. A estereotipia correspondente para o desempenho deste papel (trabalhador no espaço público) é simbolizada no homem racional-ativo-forte-potenteguerreiro-viril-público-possuidor.

A esfera privada, configurada como a esfera da reprodução natural e aparecendo como o lugar das relações familiares (casamento, sexualidade reprodutora, filiação e trabalho doméstico), tem seu protagonismo reservado à mulher, com o aprisionamento de sua sexualidade na função reprodutora e de seu trabalho no cuidado do lar e dos filhos. É precisamente este, como veremos, o eixo da dominação patriarcal.

Os atributos necessários ao desempenho do papel subordinado ou inferiorizado de esposa, mãe e trabalhadora do lar (doméstica)[25]  são exatamente bipolares em relação ao seu outro. A mulher é então construída femininamente como uma criatura emocional-subjetiva-passiva-frágil-impotente-pacífica-recatada-doméstica-possuída. Em síntese, espaço público – papéis patrimoniais –, estereótipos do polo da atividade: ao patrimônio, o cuidado dos bens. Espaço privado – papéis matrimoniais –, estereótipos do polo da passividade: ao matrimônio, o cuidado do lar.

Estamos perante o simbolismo de gênero com sua poderosa estereotipia e carga estigmatizante. Este simbolismo (enraizado nas estruturas), que homens e mulheres, entretanto, reproduzem, apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais (biologicamente determinadas). As pessoas do sexo feminino são tidas como membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como o acesso a certos papéis e esferas (da política, da economia e da justiça, por exemplo) são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não a outro,[26] de tal maneira que a mulher é construída como um não sujeito.

1.5.2 O Masculino Ativo e o Feminino Passivo: O Cara e a Coisa, o Criminoso e A Vítima

Existe uma expressão (absolutamente “cara”) na nossa cultura, cotidianamente reproduzida, que emblematiza magistralmente a hiperatividade do sujeito masculino ou, como se queira, o machismo.

O cara é aquele sujeito onipresente e onisciente do nosso imaginário, plantonista de vinte e quatro horas, a quem recorremos para todas as demandas. Se eu contar uma história ativa, ela começará com um cara. O que estraga em casa, da telha ao vaso sanitário, tem que chamar um cara para consertar; o que estraga ou se necessita na rua, do pneu furado às compras para carregar, tem que chamar um cara, e estes não são apenas pedidos masculinos feitos por mulheres, mas por mulheres e homens. Agora, o cara é também o vilão temido no mesmo plantão: se alguém tiver que entrar em nossa casa para roubar, se alguém tiver que colocar uma escada para subir na janela ou no telhado, será um cara. Se alguém porventura nos assaltar na rua, será um cara. O cara é, a um só tempo, exaltado e temido, ação e reação.

Qual é o contraponto do cara? O contraponto do cara é precisamente a coisa: aquilo que não age ou aquilo do que não nos lembramos. Diga-me uma coisa. Como é mesmo o nome daquela coisa? Será que a dona coisa não vem? Ah, que coisa!

O sistema penal existe sobretudo para controlar a hiperatividade do cara e manter a coisa no seu lugar (passivo). Na bipolaridade de gênero, não é difícil visualizar, no estereótipo do homem ativo e público acima referenciado, as potencialidades do seu próprio outro, a saber: o anti-herói socialmente construído como o criminoso, que será tanto mais perverso quanto mais temida a biografia de seu desvio; também não será difícil visualizar na mulher encerrada em seu espaço privado o recato e os requisitos correspondentes à esterotipia da vítima.

Aos homens poderosos, mas improdutivos, o ônus da periculosidade e da criminalização; às mulheres fragilizadas (como as crianças, os velhos, os homossexuais e outros excluídos do pacto da virilidade), o bônus (?) da vitimação.

O estereótipo de homem ativo no espaço público é o correspondente exato do estereótipo de criminoso perigoso no sistema penal. Mas não qualquer homem, o homem ativo-improdutivo. O poder colossal de que o patriarcado dota o homem e o gênero masculino, o capitalismo culmina por solapar.

O estereótipo da mulher passiva (objeto-coisificada-reificada) na construção social do gênero, divisão que a mantém no espaço privado (doméstico), é o correspondente exato do estereótipo da vítima no sistema penal. Mas não, como veremos, qualquer mulher. As mulheres não correspondem, em absoluto, ao estereótipo de criminosos(as), mas ao de vítima(s).

1.5.3 O Sistema Penal Coconstituindo a Construção Social de Gênero na Construção Social da Criminalidade e da Vitimização: Integrando o Controle Social Informal

O sistema penal vai expressar e reproduzir a estrutura e o simbolismo de gênero, expressando e contribuindo para a reprodução do patriarcado e do capitalismo (capitalismo patriarcal). Dizer que o sistema penal é integrativo do controle social informal significa então que ele atua residualmente no âmbito deste, mas este funcionamento residual reforça o controle informal masculino e feminino, e os respectivos espaços, papéis e estereótipos a que se devem manter confinados.

Em realidade, o sistema penal é duplamente subsidiário ou residual[27] relativamente ao controle social informal.

Em primeiro lugar, funciona como um mecanismo público (masculino) de controle dirigido primordialmente aos homens enquanto operadores de papéis masculinos na esfera pública da produção material. A pena pública é o instrumento deste controle.

O sistema penal é integrativo do controle informal de mercado, reforçando o controle capitalista de classe. Nesse sentido, intervém de modo subsidiário para controlar o normal desenvolvimento das relações de produção, selecionando aqueles que não tiveram suficiente disciplina para o trabalho ou que tenham ficado à margem da economia formal e do mercado oficial de trabalho, como bem demonstra a população carcerária (déficit de instrução, posição precária no mercado de trabalho, toxicodependentes) ou, na era da globalização, os excluídos de qualquer integração no mercado e, portanto, do reino do consumo.

Empiricamente, como vimos, são os homens que lotam as prisões, ao lado da incômoda presença de algumas mulheres (valendo lembrar aqui o adágio popular dos três “pês”), que nos Códigos sempre têm a seu favor a exculpante de um estado especial (puerperal, menstrual, hormonal, emocional) e a esperá-las estão os manicômios (controle terapêutico), antes das prisões. A loucura, os estados especiais são os álibis de sua fragilidade: mulher só é perigosa e só corresponde ao estereótipo de perigo no trânsito!

Do lado do sistema de justiça, neste poderoso espaço público, novamente são os homens que historicamente vamos encontrar, como na masculina comunidade de criminólogos. Nesse sentido, podemos dizer que o sistema penal é androcêntrico porque constitui um mecanismo masculino de controle para o controle de condutas masculinas, regra geral, praticadas pelos homens e só residualmente feminino.

Em segundo lugar, o mecanismo de controle dirigido às mulheres, enquanto operadoras de papéis femininos na esfera privada, tem sido nuclearmente o controle informal materializado na família (pais, padrastos, maridos), dele também coparticipando a escola, a religião e a moral. Paradoxalmente, a violência contra a mulher (crianças, jovens e adultas), dos maus-tratos à violação e ao homicídio, reveste-se muitas vezes, aqui, de pena privada equivalente à pena pública.

É pela dupla razão anteriormente enunciada que, saindo em busca do sujeito feminino no catálogo masculino, só residualmente vamos encontrá-lo. Tanto lendo o Código Penal (criminalização primária) quanto olhando para as prisões (criminalização terciária), constatamos que o sistema só criminaliza a mulher residualmente[28] e que, de fato, trata-a como vítima.

O sistema penal funciona então como um mecanismo público integrativo do controle informal feminino, reforçando o controle patriarcal (a estrutura e o simbolismo de gênero), ao criminalizar a mulher em algumas situações específicas[29] e, soberanamente, ao reconduzi-la ao lugar da vítima, ou seja, mantendo a coisa em seu lugar passivo.

1.6 O Tratamento da Violência Sexual Contra a Mulher no Sistema Penal: como a Mulher Aparece no Sistema?

1.6.1 A Mulher como Vítima da Violência Sexual, Nuclearmente, o Estupro: da Lógica da Seletividade à Sublógica da Honestidade e a Seleção das Vítimas 

Precisamente porque a essência do controle feminino no patriarcado é o controle da sexualidade[30], violência contra a mulher e vitimização feminina serão recortadas pelo sistema penal como violência e vitimização sexual, nuclearmente, o estupro.[31]

Aqui, o sistema penal, talvez com mais contundência que em qualquer outra, segue a lógica da seletividade, acendendo seus holofotes sobre as pessoas (autor e vítima) envolvidas, antes que sobre o fato-crime cometido, de acordo com estereótipos de violentadores e vítimas.[32]

O diferencial é que há outra lógica específica acionada para a criminalização das condutas sexuais – que denomino “lógica da honestidade” –, que pode ser vista como uma sublógica da seletividade[33] na medida em que se estabelece uma grande linha divisória entre mulheres consideradas honestas (do ponto de vista da moral sexual dominante) e vítimas, pelo sistema, e mulheres desonestas (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona porque não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à figura feminina.[34]

E muito embora a definição legal do estupro sempre tenha prescindido desta exigência, a lógica da honestidade é tão sedimentada que “os julgamentos de estupro, na prática, operam sub-repticiamente uma separação entre mulheres ‘honestas’ e mulheres ‘não honestas’. Somente as primeiras podem ser consideradas vítimas de estupro, apesar do texto legal”.[35]

Dessa forma, o julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de violência e de violação contra a liberdade sexual feminina, tampouco onde se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, autor e vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. Nessa arena também está em jogo, para a mulher, a sua inteira “reputação sexual”, que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimização sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina.

Regra geral, nos processos de estupro, o conjunto probatório é extremamente frágil, limitando-se às provas pericial e testemunhal ou, muitas vezes, esgotando-se no depoimento da vítima. Isto é facilmente compreensível pelas circunstâncias em que ocorrem. São crimes geralmente praticados em lugares ermos ou na intimidade dos lares, distante do público e de testemunhas, e as partes envolvidas, não raro, são as únicas presentes. Esta é a razão, justifica-se, pela qual nos crimes sexuais a palavra da vítima e o laudo de exame de conjunção carnal assumem especial relevância, o que, aliás, parece unanimidade em matéria judicial (além de doutrinária e jurisprudencial).[36]

A palavra da vítima, contudo, deve ser corroborada pelos demais elementos probatórios constantes dos autos, conforme ilustram os fragmentos do discurso decisório pesquisado.[37]

O que se pode perceber, pelos discursos analisados, é que esses “outros elementos probatórios” nada mais são do que a vida pregressa da própria vítima. Ora, se o conjunto probatório se reduz, muitas vezes, à própria palavra da vítima, então se está a exigir que sua palavra seja corroborada por sua vida pregressa, por sua moral sexual ilibada, por seu recato e pudor. Existindo ou não laudo pericial, ou prova testemunhal, mesmo em situações de flagrante delito, a palavra da vítima perde credibilidade se não for ela considerada “mulher honesta”, de acordo com a moral sexual patriarcal ainda vigente no sistema penal, o que vale igualmente para as vítimas mulheres que não são maiores de quatorze anos.[38] Ao tempo em que a vítima é julgada pela sua reputação sexual, é o resultado deste julgamento que determina a importância de suas afirmações.

Essas são as motivações latentes e reais da sentença que, integrando o senso comum judicial, decisivamente as condicionam, funcionando como mecanismos de seleção que, todavia, não se revelam como tais na sua fundamentação formal (em que a técnica jurídica aparece com seus conceitos dogmáticos). E não é diferente em relação às vítimas crianças, cujas palavras gozam da mesma falta de credibilidade, embora por outro motivo: não são escutadas nem têm voz porque a tendência é não acreditar no que dizem ou desqualificar a sua versão dos fatos como fantasias infantis.

O que ocorre é que, no campo da moral sexual, o sistema penal promove, talvez mais do que em qualquer outro, uma inversão de papéis e do ônus da prova. A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, regra geral, é de iniciativa privada – acaba por ver, ela própria, “julgada” (pela visão masculina da lei, da Polícia e da Justiça), incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada.

A propósito, tem sido reiteradamente posto em relevo como as demandas femininas são submetidas a uma intensa “hermenêutica da suspeita”, do constrangimento e da humilhação ao longo do inquérito policial e do processo penal que vasculham a moralidade da vítima (para ver se é ou não uma vítima apropriada), sua resistência (para ver se é ou não uma vítima inocente), reticente a condenar somente pelo exclusivo testemunho da mulher (dúvidas acerca da sua credibilidade).

Em suma, as mulheres estereotipadas como “desonestas” do ponto de vista da moral sexual, inclusive as menores e em especial as prostitutas, não apenas não são consideradas vítimas, como podem, com o auxílio das teses vitimológicas mais conservadoras, ser convertidas de vítima em acusadas ou rés, num nível crescente de argumentação que inclui a possibilidade de ter, ela mesma, “consentido”, “gostado” ou “tido prazer”, “provocado”, “forjado o estupro” ou “estuprado” o pretenso estuprador, especialmente se o autor não corresponder ao estereótipo de estuprador, pois correspondê-lo é condição fundamental para a condenação.

Por essa razão, a referência à Vitimologia e à pessoa da vítima, em relação com a pessoa do autor, que não se dá com a mesma intensidade em todos os processos de criminalização, nos crimes sexuais encontra o lugar por excelência de sua utilização. É o que encontramos explicitamente declarado na Exposição de Motivos do Código Penal brasileiro de 1940, ao justificar a expressão “comportamento da vítima”, introduzida no artigo 59 deste diploma legal, pela reforma penal de 1984: “Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima erigida, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.”

Nessa perspectiva, o senso comum policial e o judicial não diferem, uma vez mais, do senso comum social. O sistema penal distribui a vitimização sexual feminina com o mesmo critério que a sociedade distribui a honra e a reputação feminina: a conduta sexual.[39]

1.6.2 Impunidade, Imunidade e Seleção de Estupradores: da Violência Sexual à Violência Doméstica

A argumentação sobre a simbiose entre capitalismo e patriarcado como matrizes do sistema penal e condicionamentos estruturais de seu funcionamento androcêntrico nos conduz a lançar luz ao problema da impunidade, tão caro ao feminismo, posto que, nos labirintos da honestidade, ser considerada vítima não implica diretamente punibilidade do autor.

O sistema penal, que promete proteger as vítimas de crimes sexuais, absolve, ao que indicam as nossas pesquisas, com muito maior frequência do que condena. A regra, na conduta de estupro – seguindo a lógica do sistema –, é a impunidade e a condenação em casos limites, permanecendo aquém da imunidade, pois, seguindo também a lógica de funcionamento do sistema, subsiste uma enorme cifra oculta de violência sexual, especialmente a doméstica, mesmo após toda a publicização e politização do problema pelo feminismo, bem como criação das “Casas e Delegacias de Mulheres”.

Mas, o que sucede com quem pratica estupro e permanece no campo da imunidade/impunidade? E quem é efetivamente selecionado, rotulado ou etiquetado com o status negativo de estuprador?

Essas indagações nos remetem à questão da autoria e da etiologia do estupro, dos espaços e relações em que ocorre.

Quanto à autoria, sabe-se hoje que os crimes sexuais são condutas majoritárias e ubíquas e não originárias de uma minoria anormal, conforme preconizam os discursos jurídico-penal e criminológico oficial e o senso comum.

Paulatinamente, descobriu-se que o estupro ocorre com muito mais frequência do que se imaginava, que cada homem pode ser o autor, que cada mulher pode ser a vítima e que a vítima e o autor muito frequentemente se conhecem. São violências praticadas por estranhos, na rua, sim, mas, sobretudo e majoritariamente, encontradas nas relações de parentesco (pais, padrastos, maridos, primos), profissionais (chefes) e de relacionamentos em geral (amigos, conhecidos). Ocorrem, portanto, na rua, no lar e no trabalho, contra crianças, adolescentes, adultas e velhas. Denúncias há de crimes de estupro contra vítimas desde uns poucos meses de idade até mulheres sexa ou octogenárias, praticados por homens que nada têm de tarados, desviados sexuais ou “anormais”, mas, ao contrário, um forte vínculo com a vítima.

Violência sexual é, em grande medida, violência doméstica. Paradoxalmente, a família, que deveria ser um espaço de proteção, é também – como o sistema penal – um espaço de violência e violação.

Quanto à etiologia do estupro, sabe-se hoje, na esteira da primeira argumentação, que não se trata de conduta voltada prioritariamente para a satisfação do prazer sexual (lascívia desenfreada), como também preconizam os discursos criminológico e jurídico-penal oficial e o senso comum.

A pesquisa de Kolodny, Masters e Johnson[40] chega à conclusão de que a maioria dos estupros ocorre dentro de um contexto de violência física, em vez de paixão sexual, ou como meio para a satisfação sexual. Eles constatam, neste sentido, que:

[...] ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudossexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio, do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual.

Ele é comportamento sexual a serviço de necessidades não sexuais. As mulheres começaram a se dar conta de que o estupro (assim como os maustratos, o incesto, a prostituição, o assédio sexual no trabalho etc.) é fenômeno de uma estrutura de poder existente entre homens e mulheres e o argumento da violência individual foi cedendo lugar ao argumento da violência estrutural.[41]

O conjunto das conclusões criminológicas críticas e feministas é por demais significativo: se o espaço privado-familiar é um locus de incidência majoritária da violência sexual (e seus integrantes os sujeitos centrais envolvidos), pode-se interpretar que isto sucede – para além dos elementos intersubjetivos implicados nas relações de violência – porque, historicamente, na sociedade patriarcal a família tem sido um dos lugares nobres, embora não exclusivo (porque acompanhada da escola, da igreja, da vizinhança etc.), de controle social informal sobre a mulher. E a violência contra a fêmea no lar – do pai ao padrasto, do marido ao companheiro – pode ser vista, portanto (contrariamente à ideologia do agressor como expressão de uma aberração sexual), como expressão de poder e domínio, como violência controladora. E, num sentido último, como pena privada.

A violência aparece como o elemento masculino comum, presente no poder punitivo do Estado sob a forma de pena pública e no poder punitivo da família (pais, padrastos, maridos, companheiros) sob a forma de pena privada, e age nas duas esferas como a última garantia de controle, embora o estilo dos dois sistemas seja diferente.

Embora, contudo, já cientificamente desfeita a mitologia que circunda o estupro, tanto na autoria, nas relações e espaços quanto na etiologia, continua a se reproduzir o estereótipo do estuprador como um ser anormal, de lascívia desenfreada, estranho à vítima e, numa preconceituação masculina, acentua-se o encontro sexual, o coito vaginal antes da violência. Este estereótipo continua agindo no sistema penal, condicionando tanto a seleção quanto a impunidade, pois embora domine a violência familiar e entre conhecidos, a seleção se dá fora dela: os etiquetados como estupradores, ao que tudo indica, são estranhos à vítima e, logicamente, pertencentes aos baixos estratos sociais.

O estupro é, pois, uma conduta majoritária e ubíqua, mas desigualmente distribuída, de acordo sobretudo com estereótipos de estupradores que operam no nível do controle social formal (lei, saber, Polícia, Justiça, Ministério Público) e informal (opinião pública). É mais fácil etiquetar como estupro a conduta cometida por um estranho na rua do que a realizada pelo chefe ou pelo marido, cuja possibilidade está, em algumas legislações ou jurisprudências, explicitamente excluída.[42] Ora, os familiares (maridos, padrastos, primos), colegas e amigos não correspondem, em absoluto, ao estereótipo de estupradores. Por outro lado, nada é tão forte dentro do estereótipo de criminoso quanto o subestereótipo de estuprador.

1.6.3 A Proteção da Família Patriarcal/Capitalista: O Continuum entre Controle Penal e Controle Familiar, entre Pena Pública e Pena Privada[43]

Num plano mais profundo, chega-se a uma importante conclusão sobre o objeto jurídico latentemente protegido pela sublógica da honestidade, a qual, a exemplo da seletividade, revela-se como marca estrutural do exercício de poder do sistema penal. O sistema penal não protege, em absoluto, a liberdade sexual feminina, que, por isso mesmo, é pervertida: a mulher que diz “não quer dizer talvez; a que diz talvez quer dizer sim”, e a que diz não, não é, em absoluto, uma mulher.

O sistema penal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do próprio corpo. Se assim fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguais perante a lei e o assento seria antes no fato crime e na violência do que na conjunção carnal. E elas teriam do sistema o reconhecimento e a solidariedade para com a sua dor. Não é casual que ocorra o inverso.

A sexualidade feminina referida ao coito vaginal diz respeito à reprodução. E a função reprodutora (dentro do casamento) está protegida sob a forma da sexualidade honesta, que é precisamente a sexualidade monogâmica (da mulher comprometida com o casamento, com a constituição da família e a reprodução legítima), de modo que, protegendo-a mediante a proteção seletiva da mulher honesta, protege-se latente e diretamente a unidade familiar e indiretamente a unidade sucessória (o direito de família e sucessões), que em última instância mantém a unidade da própria classe burguesa no capitalismo.

Em nível micro, a proteção é da moral sexual dominante e da família (unidade familiar e sucessória segundo o modelo de família patriarcal/capitalista monogâmica, heterossexual, destinada à procriação legítima etc.), ainda que este modelo esteja passando hoje por profundas transformações culturais e jurídicas. Em nível macro, a função real do sistema é manter estruturas, instituições e simbolismos, razão pela qual, repito, não pode ser um aliado no fortalecimento da autonomia feminina.

Aqui, “também fica claro o papel da família como mediadora entre o sistema patriarcal e a sociedade de classes; e tomando em consideração que o sistema patriarcal é mais antigo do que o sistema de classes, pode-se afirmar que está por baixo do sistema capitalista. Assim, a família tem importante função dupla: ser a mediadora entre o indivíduo e a classe social, e entre o sistema capitalista e a cultura patriarcal (que lhe dá um valor muito mais alto do que se pensava, numa ciência social centrada no homem)”.[44]

Com essas constatações, pode-se melhor compreender e ressignificar o problema da impunidade. Traduzido nos termos criminológicos aqui desenvolvidos, o tratamento que o sistema penal confere à violência sexual, particularmente ao estupro, pode ser formulado na promessa de punir com pena pública o autor da pena privada, o que implica o deslocamento do controle dos homens (pai, padrasto, marido) para o Estado.

Mas, em definitivo, não há esta punição, e na forma de impunidade-imunidade se reafirmam o continuum e a solidariedade masculina destes controles. A impunidade é a cumplicidade ou a solidariedade masculina do sistema penal para com a família patriarcal[45]: a pena, que deveria não só simbolizar, mas também materializar a proteção, não incide: seletividade de gênero.

Ora, se a violência é em grande medida doméstica, o sistema, protegendo a unidade familiar e não a violentada, reforça a cumplicidade punitiva e o controle patriarcal.

Há, portanto, um profundo continuum entre o controle familiar e o penal: não existe uma instância que faça a assepsia; todas se contaminam. A tentativa histórica, todavia frustrada, como vimos, foi da ciência penal.

1.7 Retornando à Dor e Concedendo Voz aos Sujeitos

Se ao longo da argumentação enfatizei que o sistema (assim como os criminosos e as vítimas) somos todos nós e que o tratamento que o sistema penal confere à mulher é o mesmo tratamento que o público-senso comum lhe confere (agora acrescento as famílias, os maridos, os chefes, os homens e as mulheres, inclusive), somente posso concluir que o limite do sistema é, em nível macro, o limite da própria sociedade patriarcal capitalista e, em nível micro, o limite das instituições e dos sujeitos: é o nosso próprio limite. Não existem modelos, oficiais ou outros, que não tragam consigo as marcas destes limites.

Sob pena de continuarmos reproduzindo o maniqueísmo e a culpabilização exteriorizada e exteriorizante do sistema penal, parece haver, em nível micro, um duplo caminho a indicar e duas palavras-chaves: inclusão e corresponsabilização; ou melhor, uma dupla inclusão naquela responsabilidade que parece ser apenas do outro: (a) a nossa inclusão e corresponsabilização na mecânica da violência (e na sua superação) e (b) a inclusão de homens e mulheres como “sujeitos” nas relações de violência, e sua percepção para além de violência estrutural, institucional e subjetiva, como relacional (intersubjetiva). Isso implica conceder voz a todos os sujeitos implicados, individuais (homens e mulheres) e coletivos (feminismos e sistema penal), iniciando por problematizar a grande rubrica do feminismo: “violência contra a mulher”.

A ultrapassagem das lógicas da seletividade, da honestidade (violência institucional que expressa violência estrutural) e da violência sexual é, portanto, um desafio estrutural, institucional e intersubjetivo das estruturas capitalista e patriarcal, do sistema penal e de todos nós. Precisamos, pois, a um só tempo, lutar por macro e micro transformações, num período de transformações profundas nas relações sexuais e de gênero, no qual não mais se legitimam nem "desigualdades inferiorizadoras" nem "igualdades descaracterizadoras".


Notas e Referências:

[1] Texto originariamente escrito para apresentação no painel intitulado “O sistema de justiça criminal no tratamento da violência contra a mulher”, no 9º Seminário Internacional do IBCCrim, realizado em São Paulo, em setembro de 2003. Ele foi objeto das seguintes publicações: (1) A soberania patriarcal. O sistema de Justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, no 48, p. 260-290, maio-jun. 2004; (2) O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. Justiça e direito. Revista de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas. São Luis, UniCEUMA: Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, v. 1, no 1, jul./dez. 2004; (3) A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Seqüência. Florianópolis, Fundação José Arthur Boiteux, no 50, p. 71-102, dez. 2005; (4) O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, ano 11, no 15-16, p. 167-185, 1º e 2º semestre 2007; (5) A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. In: SANTOS, Sidney Francisco Reis dos; LACERDA, Carmen Miranda de (Orgs.). Debate interdisciplinar sobre os direitos humanos das mulheres. Florianópolis: Insular, 2010. p. 219-243; (6) A soberania patriarcal. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Grupos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. (Coleção Doutrinas Essenciais – Direitos Humanos). p. 575-605.

[2] A propósito, assumo a Criminologia como uma discussão paradigmática, cujo enfoque depende dos paradigmas eleitos, ou seja, do lugar de onde (e do que) se fala. Este texto, tendo atrás de si uma longa trajetória de pesquisas, participação em debates relativos à reforma de lei penal sobre mulher e gênero feminino, palestras e outras publicações anteriores, foi escrito sob a legislação vigente, antes das reformas do Título VI do Código Penal brasileiro “Dos crimes contra os costumes”, introduzidas, sucessivamente, pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005 (que aboliu da lei penal a qualificação patriarcal mulher "honesta"), e pela Lei nº 2.015, de 7 de agosto de 2009 (que promoveu a ampla revisão deste título, a começar pela sua denominação, doravante “Dos crimes contra a dignidade sexual”). Este texto se inscreve, neste sentido, no horizonte da própria luta acadêmica, social e política que conduziu àquelas reformas, e da qual participei, em vários momentos. Estas reformas legais, se por um lado expressam transformações de gênero e sexuais havidas em nossas sociedades patriarcais, e buscam superar tratamentos discriminatórios e inferiorizadores da mulher, potencializando novas decisões no sistema de Justiça penal, por outro, não têm o poder de fazê-lo automaticamente, pois a superação da cultura e da estrutura patriarcal é um processo, razão por que este texto mantém sua validade não apenas como investigação do passado, mas como suporte à compreensão do presente e dos desafios que temos para caminhar nesta direção superadora, apontada na lei penal.

[3] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 21.

[4]  A respeito da teoria feminista e da posição das mulheres no Direito, com incursão também no Direito Penal, conferir: SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. Introdução a uma leitura externa do direito. 5a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 266-293.

[5] LOMBROSO, Cesare. La donna delinquente. La prostituta e la donna normale. Quinta edizione. Torino: Fratelli Bocca, 1927.

[6] MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 189.

[7]  A pesquisa foi desenvolvida no período de agosto de 1996 a agosto de 1997. A respeito, conferir ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2003. p. 81- 124.

[8]  Leis penais, processuais penais, penitenciárias, Constituição, Declarações Internacionais.

[9] E, ainda, ministérios e/ou secretarias da justiça, da segurança pública, do interior e outros: decisões governamentais.

[10] Designam-se por controle social, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e, nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) o próprio desvio e a criminalidade como uma forma específica dele. Daí a distinção entre controle social informal ou difuso e controle social formal ou institucionalizado. A unidade funcional do controle é dada por um princípio binário e maniqueísta de seleção: a função do controle social, informal e formal: é selecionar entre os bons e os maus, os incluídos e os excluídos, quem fica dentro, quem fica fora do universo em questão, sobre os quais recai o peso da estigmatização.

[11]  BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e política penal alternativa. Tradução por J. Sérgio Fragoso. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, Forense, no 23, p. 7-21, jul./dez. 1978. p. 9-10.

[12]  ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. 2a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[13]  De forma mais desenvolvida, conferir ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. 2a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[14]  Os estereótipos, designados por Karl-Dieter Opp e A. Peukert como “Handlungsleitenden Theorien” (teorias diretivas da ação) e por W. Lippman (considerado o primeiro a refletir de forma sistemática sobre eles) como “Pictures in our minds” (imagens em nossa mente), são construções mentais, parcialmente inconscientes, que nas representações coletivas ou individuais ligam determinados fenômenos entre si e orientam as pessoas nas suas atividades cotidianas, influenciando também a conduta dos juízes. A respeito, conferir DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1984. p. 347- 348 (e nota 181), p. 388-389, 553; SCHUR, Edwin M. Labeling Deviant Behavior. Its sociological implications. New York: Harper & Row, 1971. p. 40.

[15] Tomando-se por referente os censos penitenciários brasileiros realizados pelo Conselho Nacional de Política criminal e Penitenciária do Ministério de Justiça a partir de 1995, podemos constatar que há no Brasil uma aproximação entre os dados da criminalização da pobreza (em torno de 95%) e os dados da criminalização masculina (em torno de 96%), contra aproximadamente 4% de criminalização feminina, entretanto, progressivamente ascendente.

[16] Uma das consequências fundamentais dos paradigmas criminológicos aqui utilizados é a de nos conduzir a uma percepção diferenciada da criminalidade, da vitimização e do sistema penal, suplantando a relação de exterioridade com que nos colocamos perante ambos, reenvie a uma relação de inclusão e, consequentemente, de responsabilização. Todos nós somos criminosos, vítimas, sistemas criminais e, portanto, o problema também é nosso.

[17] HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 83.

[18] BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: entre a violência e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, no 2, abr./maio/jun. 1993. p. 49.

[19] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 48.

[20] Imune, diz-se da conduta criminal que fica completamente na cifra oculta, ou seja, ignorada de qualquer agência do sistema. Impune é a conduta criminal que chega ao conhecimento do sistema, mas, em alguma das agências, é interrompido o processo de criminalização, não sendo objeto de punição.

[21]  HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 65.

[22] Ou, em outras palavras, sendo as nossas sociedades, contemporaneamente, capitalistas e patriarcais, a funcionalidade do sistema penal guarda, com estas matrizes históricas, uma conexão funcional, ao tempo que as desvela, operando “como um caledoscópio no âmbito do qual o funcionamento de certos mecanismos é esclarecido”. BERGALLI, Roberto; BODELÓN, Encarna. La cuestión de las mujeres y el derecho penal simbólico. Anuário de Filosofia del Derecho IX. Madrid, Ministério da Justiça, 1992. p. 54.

[23] O universalismo (abstrato e generalizante) e a objetividade, sendo atributos fundantes do modelo androcêntrico de sociedade, serão também do modelo androcêntrico de ciência e de sistema penal, cuja contradição básica pode ser flagrada desde a linguagem, estruturalmente masculina e estigmatizante, com que afirma seus ideais protetores igualitários.

[24] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

[25] Merece observação e reparos a desqualificação que o feminismo de primeira geração procedeu aos papéis femininos na esfera privada: esposa, mãe ou trabalhadora do lar. Sem dúvida, todos estes papéis, fora da condição de subalternidade do domínio patriarcal e no seu exercício com autonomia, são majestosos e importantes para o crescimento existencial da mulher, particularmente o de “mãe”, experiência fecunda para a ressignificação da vida. Esta visão positiva tem sido, inclusive, a assumida pelos feminismos subsequentes.

[26] ALVES, José Eustáquio Diniz; CAVENAGUI, Suzana. Dominação masculina e discurso sexista. Informe ANDES. [s.l.], ano XI, no 97, fev. 2000. p. 11.

[27] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 18-80.

[28]  Entretanto, na medida em que as mulheres passaram a exercer papéis masculinos na esfera pública, sobretudo no mercado informal de trabalho, elas (sobretudo mulheres adultas jovens pobres e de cor) tornaram-se mais vulneráveis à secular criminalização seletiva do controle penal, e é precisamente este o processo que está a suceder nesta era do capitalismo patriarcal globalizado sob a ideologia neoliberal. A criminalização patrimonial feminina (pelas mesmas condutas que os (seus) homens são criminalizados (furto, roubo, estelionato e, nuclearmente, ao que tudo indica, tráfico de drogas) está elevando progressivamente a representatividade das mulheres (e, com elas, partos e crianças) na clientela prisional, o que certamente tem implicações para a identidade androcêntrica do sistema penal.

[29]  a) Criminalizando (primariamente) condutas femininas (a mulher como autora de crimes contra a pessoa (aborto, infanticídio, abandono de recém-nascido), crimes contra a família casamento (bigamia, adultério), crimes contra a família-filiação (parto suposto, abandono de incapazes); b) Criminalizando (secundariamente) as mulheres quando exercitam papéis socialmente masculinos; ou seja, quando se comportam como homens, são violentas, usam armas; c) Criminalizando (secundariamente) as mulheres quando praticam infrações em contextos de vida diferentes dos impostos aos papéis femininos (não vivem em família ou as abandonam). Aqui, não apenas violam os tipos penais, mas a construção dos papéis de gênero como tal e o próprio “desvio socialmente esperado”. Seja como for, crimes próprios de mulheres ainda encontram acolhimento privilegiado no sistema penal: quando criminaliza, exculpa-as de modo que a criminalização é simbólica, para reforçar os papéis de gênero, porque lugar de esposa e mãe é em casa. Cf. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 50-51. Por outro lado, à medida que as mulheres passam a exercer papéis masculinos na esfera pública, elas se tornam mais vulneráveis ao controle penal e é precisamente isto que está acontecendo no mundo inteiro, elevando-se as taxas de criminalização feminina, pelas mesmas condutas que os homens são criminalizados: crimes patrimoniais e, nuclearmente, tráfico de drogas.

[30] Ora, “o controle da sexualidade feminina, através de seu aprisionamento na função reprodutora, historicamente constitui, ao lado da centralidade do trabalho doméstico, um dos dois grandes eixos pelos quais se concretizam as relações específicas de dominação, estabelecidas no plano individual pela estruturação do patriarcado”. (KARAM, Maria Lúcia. Sistema penal e direitos da mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, no 9, p. 147-163 jano-mar. 1995. p. 147). No mesmo sentido, Rose Marie Muraro: “A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade e a reclusão do domínio privado formam os dois pilares da opressão feminina”. (Textos da fogueira. Brasília: Letraviva, 2000. p. 74.)

[31] O estupro (crime hediondo desde o artigo 1º da Lei nº 8.072, de 25.07.1990) era definido no art. 213 do Código Penal brasileiro como: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Desde a reforma introduzida pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, que fundiu os tipos estupro e atentado violento ao pudor em um só tipo penal, ficou assim definido: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º. Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”

[32] Também aqui o sistema faz suas seleções binárias, existindo vítimas honestas e prostitutas (expressão na clientela prisional), as quais, junto com o estuprador, simbolizam aquele ponto nevrálgico de junção entre o capitalismo e o patriarcado que a família patriarcal não pode suportar. Prostitutas e estupradores, ao profanarem a monogamia sobre o interdito dos vários leitos, violam a um só tempo a regularidade do espaço privado e público – a unidade familiar e sucessória.

[33] Esta lógica pode ser claramente apreendida, entre outros, no filme de ficção intitulado Acusados, do diretor Jonathan Kaplan, que trata de um caso de estupro múltiplo, no qual uma jovem é vítima de três estupros numa só noite. A respeito, conferir também FELIPE, Sônia; PHILIPI, Jeanine Nicolazi. O corpo violentado: estupro e atentado violento ao pudor. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996.

[34] Até o advento da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005 (que revogou a qualificação patriarcal mulher “honesta” dos crimes contra os costumes), esta lógica poderia ser empiricamente comprovada ao longo de todo o processo de criminalização, inclusive desde a criminalização primária (definições legais dos tipos penais ou discurso da lei) até os diferentes níveis da criminalização secundária (inquérito policial, processo penal ou discurso das sentenças e acórdãos) e a mediação do discurso dogmático entre ambas. E isto porque, no Título VI “Dos crimes contra os costumes” do Código Penal brasileiro, inteiramente atravessado pela ideologia patriarcal, diversos tipos penais requeriam que a vítima fosse “mulher honesta”, como posse sexual mediante fraude (art. 214), atentado ao pudor mediante fraude (art. 215), sedução (art. 216), rapto consensual (art. 220), pré-selecionando a vitimação, já que estavam excluídas, a priori, as mulheres desonestas e, em especial, as prostitutas. Após a abolição expressa da qualificação “honesta”, signo da ideologia patriarcal, fica a cargo da cultura judiciária a superação da “lógica da honestidade”, que vigora até hoje em relação ao estupro, crime cuja definição legal nunca contemplou aquela adjetivação.

[35]  ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Ministério da Justiça, 1987. p. 35.

[36]  Debilidade da prova – o conjunto probatório frágil (palavra + laudo) não explica, mas justifica a decisão judicial.

[37] Decisões reiteradas dos tribunais brasileiros neste sentido (como RT 327/100, 387/301, 419/88, 498/292 e 533/376) podem ser ilustradas pelas ementas que seguem: “Nos crimes contra os costumes, via de regra, a prova não é coetânea dos fatos, quase sempre sendo mais circunstancial que direta. Assim, a palavra da vítima é do maior valor probante, especialmente quando se trata de mulher recatada, sem aparente interesse em prejudicar o indigitado autor do delito.” “Diante de um passado tão comprometedor, conclui-se que as declarações da vítima não merecem fé, pois não estão corroboradas por outros elementos de prova. Por isso é que se afirma que a veracidade da negativa do denunciado quanto à prática do crime de estupro, sustentada desde a lavratura do auto de prisão em flagrante, tem que prevalecer porque a palavra da vítima está despida do menor prestígio.” “Tratando-se de mulher leviana, cumpre apreciar com redobrados cuidados a prova da violência moral. Tratando-se de vítima honesta, e de bons costumes, suas declarações têm relevante valor.” “Se a vítima é leviana, a prova deve ser apreciada com redobrado cuidado.” “A palavra da moça seduzida constitui prova de autoria do crime quando ela é honesta e de bons costumes e procedimento.” “Se a mulher alega, sem qualquer lesão, ter sido estuprada por um só homem, que se utilizou da força física, suas declarações devem ser recebidas com reservas ou desconfiança.” A respeito destes julgados, ver MIRABETTE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte especial. São Paulo: Atlas. 1986. v. 3. p. 408, 420; DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 390.

[38] Que tinham a seu favor a presunção de violência (violência ficta) prevista no artigo 224, “a”, do CPB (revogado pela Lei no 12.015, de 2009), mas que era relativizada, pois somente valia (lembre-se do célebre julgado do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio da Silveira) se a vítima fosse, igualmente, considerada honesta.

[39]  LARRAURI, Elena (Comp.). Mujeres, derecho penal y criminologia. In: _____. Control formal y el derecho penal de las mujeres. Contexto. Madrid: Siglo Veintiuno, 1994. p. 102.

[40]  KOLODNY, Robert C.; MASTERS, William H.; JOHNSON, Virginia E. Manual de medicina sexual. Tradução por Nelson Gomes de Oliveira. São Paulo: Manole, 1982. p. 430-431.

[41] BEIJERSE, Jolande Uit; KOOL, Renée. ¿La tentación del sistema penal: apariencias engañosas? El movimiento de mujeres holandés, la violencia contra las mujeres y el sistema penal. In: LARRAURI, Elena (Comp.). Mujeres, derecho penal e criminologia. Madrid: Siglo Veintiuno, 1994. p. 143.

[42] O referido artigo 213 do Código Penal brasileiro não proíbe, com efeito, que o marido possa ser sujeito ativo de estupro contra a esposa. Mas, na doutrina e na jurisprudência, goza de forte tradição e hegemonia a tese que sustenta a impossibilidade, sob o argumento de que um dos deveres do casamento civil é a prestação carnal, de a mulher não poder, portanto, recusá-la.

[43]  Daí, também, o rigor da criminalizacão de lenocínio (crimes de favorecimento à prostituição, rufianismo etc.) nada viola tanto a família patriarcal quanto o estupro, de um lado, e a prostituição, por outro, pois, ao profanar a monogamia, os vários leitos ferem a linhagem sucessória masculina.

[44] MURARO, Rose Marie. Textos da fogueira. Brasília: Letraviva, 2000. p. 142.

[45]  A respeito, ver também FELIPE, Sônia; PHILIPI, Jeanine Nicolazi. O corpo violentado: estupro e atentado violento ao pudor. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996, p. 18: “No estudo da violência sexual, cuidamos de tornar explícitas a responsabilidade e a cumplicidade da sociedade com relação ao modo como normalmente a vítima da violência é tratada. Nesse sentido, reconhecemos que uma das funções mais relevantes no tratamento das vítimas da violência é a dos profissionais institucionais, pois eles, a partir do ato de denúncia, passam a exercer papel decisivo no encaminhamento do caso e no modo como o resto da sociedade encara a vítima e o violentador. Nosso trabalho critica explicitamente uma espécie de solidariedade para com o violentador e de culpabilização da vítima de atentados sexuais, típica de nossa cultura.”


 

VeraVera Regina Pereira de Andrade é professora de Criminologia na graduação e na pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires e pela Universidade Federal do Paraná e doutora e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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