Slow medicine e slow judicial review – Por Clenio Jair Schulze

26/12/2016

Slow medicine é um movimento que propõe uma mudança na forma de exercício da medicina. É a medicina sem pressa, em que se busca maior contato com o paciente. É a medicina centrada na pessoa e não a medicina centrada na doença[1].

Um dos grandes nomes em slow medicine é Marco Bobbio, médico cardiologista, especialista em estatística médica e atualmente diretor chefe do Ospedale Santa Croce e Carle di Cuneo, na Itália.

A mecanização da medicina traz um risco inevitável, ou seja, “um perigo da medicina contemporânea: o aperfeiçoamento da técnica pode induzir a um comportamento mecânico impessoal no tratamento do paciente. Para cada diagnostico há quem recorra automaticamente àquela tal máquina que fornece o diagnóstico, perdendo de vista o paciente, isto é, o ser humano que pede ajuda, às vezes por problemas mínimos, como o meu dedinho, outras vezes, por problemas gravíssimos.’”[2]

Uma demonstração da importância do movimento slow medicine é o aumento significativo de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH. “O fato é que os critérios diagnósticos foram estendidos a ponto de se prescrever medicamentos até para crianças que falam em excesso, que não escutam as recomendações, que não se lembram do que estudaram: em suma, que incomodam. O desempenho dos pais, que devem fazer carreira, ganhar muito, ter uma casa perfeita, seguir as tendências da moda, dedicar algum tempo para cuidar do próprio corpo, não pode ser colocado em risco por um molequinho que tem seu próprio ritmo de crescimento e aprendizagem ou que teria necessidade de brincar ao ar livre em vez de ficar em casa grudado em videogames. A paciência para suportar uma criança muito ativa não existe mais: melhor um remédio para sedá-la. [...] qualquer criança que antigamente as professoras definiam como ‘um pouco travessa’ se torna um doente a ser tratado. O mal-estar é retirado com um remédio e nos convencemos, desde pequenos, que para cada sintoma existe um tratamento.”[3]

Outro aspecto importante que o movimento slow medicine pretende corrigir é a noção da medicina sem limites, ou seja, o pensamento equivocado de que todos os problemas em saúde podem ser resolvidos[4].

“Às vezes, saber desistir é um dom que os médicos devem assimilar, para humanizar, em certas circunstâncias. Porém, saber renunciar não significa abandonar o doente e sua família, mas sim orientá-los e acompanhá-los em um percurso mais natural, tranqüilizando-os que os sofrimentos serão reduzidos e evitando ressentimentos posteriores. Em certos contextos, é necessário saber recuperar uma slow medicine, que ajude os pacientes ‘a otimizar o final de suas vidas e os familiares a criar condições para garantir confiança e segurança a seus entes queridos’.”[5] 

Slow medicine também significa maior participação do paciente no processo decisório. A responsabilidade não pode ser exclusiva do paciente. “Os médicos e as estruturas de saúde, para evitar processos judiciais longos, humilhantes e dispendiosos, submetem os pacientes a um crescente número de exames e à prescrição de um exorbitante número de medicamentos, visto que o paciente e familiares ficam mais perturbados pela omissão do que pela ação excessiva, esquecendo os danos que podem ser provocados por um exame ou por um tratamento inútil. Entretanto, cada vez mais, os especialistas recomendam integrar a intervenção técnica a uma abordagem disponível e sincera: o paciente participa do processo decisório, consciente da incerteza inerente a qualquer decisão.”[6]

Como se observa, slow medicine é uma nova forma de pensar a arte da medicina, permitindo ampliar a relação médico e paciente, dentro de uma lógica de parceria pessoalizada e não apenas uma relação contratual objetiva.

O slow medicine é importante mecanismo para concretizar o princípio da integralidade em saúde previsto nos artigos 196 e 198, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil.

E o movimento slow medicine também traz a reflexão da necessidade de criação de um movimento na área jurídica, o slow judicial review, que propõe o fomento à ampliação da resolutividade dos problemas sociais na esfera administrativa. Isso reduz e evita a burocratização do Estado.

Conforme já foi divulgado, há quase um milhão de processos sobre o direito à saúde em tramitação no Poder Judiciário brasileiro[7].

Assim como o slow medicine propõe demonstrar que os médicos não podem tudo, o slow judicial review segue na mesma direção, indicando que o Poder Judiciário não possui a capacidade de resolver de forma ilimitada todos os problemas da vida em sociedade. Portanto, é um movimento que precisa conquistar espaço no cenário nacional, na perspectiva de qualificação da atuação dos gestores em saúde e para fomentar a redução da judicialização da saúde.


Notas e Referências:

[1] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016, p. 223. Título original: Il Malato Immaginato.

[2] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016, p. 47. Título original: Il Malato Immaginato.

[3] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016. pp 168/170. Título original: Il Malato Immaginato.

[4] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016, p. 214. Título original: Il Malato Immaginato.

[5] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016, p. 217/218. Título original: Il Malato Immaginato.

[6] BOBBIO, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2016, p. 217. Título original: Il Malato Immaginato.

[7] SCHULZE, Clenio Jair. Novos números sobre a judicialização da saúde. In: Empório do Direito. Acesso em 26/12/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/novos-numeros-sobre-a-judicializacao-da-saude-por-clenio-jair-schulze/


 

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