Sistemas e Inclusão

19/07/2019

Coluna Práxis / Coordenadoras: Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke 

Estamos num momento histórico no qual alguns comportamentos tidos como natural começam a ser questionados provocando mudanças, nem sempre entendidas pela maioria e que entram numa rota de difícil retorno.

A conquista pelo voto feminino, os direitos humanos, tudo que saia da normalidade do já estabelecido, foram anomalias no início. Anomalia que, segundo Thomas Kuhn em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, é uma violação as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal. Trazendo o mesmo conceito para o desenvolvimento da sociedade humana, violar as expectativas de uma sociedade patriarcal é o caminho da evolução da mesma. Assim, as mulheres começaram a conquistar um lugar na estrutura social.

O embate pela implantação dos Direitos Humanos e pelo respeito à Natureza, a inclusão dos chamados “diferentes” entre outras anomalias ensejam mudanças, no início imperceptíveis, que abrem caminho nas fraturas do sistema em vigor que já não responde aos anseios da Alma humana. É o surgimento de uma Nova Estrutura, que é composto do que antes era considerado uma anomalia e que será a base do novo modelo paradigmático.

A exclusão sempre foi um recurso usado pela humanidade para não entrar em contato com o diferente, com o que não cabia na interpretação de um mundo resultante de um sistema rígido, de hierarquia verticalizada, escorada no sagrado, no misterioso. Os loucos, os deficientes, os questionadores, eram excluídos do sistema.

Assim como na Natureza, tudo segue um fluxo de desenvolvimento. É assim no nascimento das sociedades e na evolução do conhecimento.  A aceitação das anomalias que surgem como indicativos de uma nova rota não se dá com facilidade, exatamente pela rigidez dos sistemas de primeira camada onde a humanidade ainda se vê como descolada da Natureza, como se fosse o centro onde a sua verdade impera. Os sistemas de pensamento criado pela Natureza humana de querer conhecer segue uma lógica que é atravessada pelo criacionismo que a impede de avançar sem culpas e a mantém sob controle.

Tendo a saga humana como origem a desobediência e a expulsão do paraíso, a partir daí tudo que não é “perfeito” seria consequência. A exclusão dos efeitos seria o caminho natural para não “ver” o pecado original. Para não ver a si mesmo como o gerador do sofrimento, do embate entre a queda e a ascensão, o retorno ao paraíso e a realidade do inferno. A única forma de seguir em frente seria “fazer de conta” que existe um padrão de comportamento, de estar no mundo, que deve ser seguido por todos. É o salvacionismo sendo introduzido na mente coletiva.

Charles Darwin e a Evolução da Espécie e Seleção Natural observada no reino animal traz uma nova informação que junto com os estudos dos cosmólogos nos tira o chão seguro e infantil da criação em sete dias, mas sem deixar que tudo tenha sido apenas um acaso. A Vida ocupa o tempo de muitas mentes que se dedicam a buscar respostas para perguntas sobre como o mundo foi criado, o que é Vida e outras mais. Muitas hipóteses formuladas e que avançam com as pesquisas de muitas mentes em muitos lugares que valorizam e financiam as pesquisas.

Com o avanço da ciência vamos desvelando a relação da Natureza e o Ser Humano e vendo nesta interação a responsabilidade individual com o planeta e com os seus habitantes. Para percebermos que toda a diversidade reafirma a grandeza humana precisamos sair dos padrões construídos nos sistemas onde a interação só acontece entre elementos do mesmo sistema. São os sistemas fechados que não trocam informações com o exterior. Seguem mantendo o mesmo do mesmo. Quando apresentam alguma novidade é sempre o avesso do avesso.  Este padrão foi satisfatório num momento histórico construindo bases e ferramentas que possibilitaram a extensão e qualidade de vida na terra.

Um exemplo entre tantos outros foi o surgimento da água encanada e esgoto. Na Grécia antiga, já havia a preocupação com a saúde e criaram o costume de enterrar as fezes ou deslocarem para um local bem distante de suas residências.

Já os sumérios originaram a construção de sistema de irrigação de terraços e os egípcios iniciaram a construção de diques e a utilização de tubos de cobre para o palário do faraó Keops.

As primeiras galerias de esgoto da história foram construídas em Nippur, na Babilônia. O Vale do Indo e suas cidades são conhecidas pelos planejamentos urbanos e sistemas de abastecimento e drenagem elaborados para época mas foi o Império Romano que primeiro tratou o saneamento como política pública, tendo construído grandes aquedutos, reservatórios, banheiros públicos, chafarizes tendo inclusive criado um cargo com o interessante nome de Superintendente de Águas de Roma.

Mas não tinham um olhar para os diferentes. Só existia um padrão, o do homem romano.

Quanto mais a ciência foi avançando mais evidente ficou a igualdade entre os seres humanos e o valor de todos os seres viventes. As ciências médicas e biológicas adentraram nas células e não viram diferenças moleculares entre negros, brancos e índios.

Em relação aos seres viventes, descobriram que tanto a forma mais rudimentar de vida quanto os organismos mais sofisticados têm funções específicas na manutenção do equilíbrio na Natureza.

À medida que foi desvelando a Natureza, os mitos se dissiparam e a ciência entrou nos intrincados mecanismos que tornam possível a homeostase, que é a busca do equilíbrio pelos organismos. O termo homeostase, do grego homoios, o mesmo, e stasis, parada, foi criado por  Walter Bradford Cannon, fisiologista e médico norte-americano, conhecido por uma série de investigações experimentais no processo de digestão, no sistema nervoso e em mecanismos reguladores do corpo, e não se referia a uma situação estática, mas a algo que varia dentro de limites precisos e ajustados.

E à medida que o conhecimento vai avançando, individual e como sociedade, a forma de organização também vai se transformando. É a busca pela homeostase do conjunto de humanos que está inserida num conjunto maior chamado seres viventes.  E o que era aceitável passa a ser inadmissível.

Mas não é sem reação que acontecem as mudanças nos sistemas e na consciência humana. A evolução do conhecimento é lei a ser seguida. E do mesmo jeito que após a alfabetização torna-se impossível o retorno a condição anterior, também na alma humana, à medida que a ciência avança e a consciência tem mais recursos para avançar no conhecimento, nasce na Alma humana o desconforto com o padrão existente. E surgem pessoas que falam sobre o desconforto e buscam uma melhor forma de agir. São os ativistas, os que primeiro expressam o próprio desconforto com a forma como as relações, sejam com as pessoas, com os animais ou com o meio ambiente, acontecem. O desconforto se dá pela visão mais ampliada em direção ao outro. Tornam-se porta-voz do inconformismo. Assim caminha a humanidade.

Para a homeostase civilizatória é necessário o equilíbrio da sociedade. E este equilíbrio acontece quando as comunidades abrem seus sistemas e passam a trocar, incluindo todos em todas as partes. Incluir é apenas o início de um processo cujo destino não é a aceitação da diferença, mas a quebra das barreiras que separam os seres humanos. É a não distinção entre as várias formas de estar no mundo.

E a forma de estar no mundo varia ao infinito. Assim como toda forma de amar deve ser vista como natural, toda forma de estar no mundo também deve ser visto com naturalidade. Os recursos a serem disponibilizados para os que sofrem por não conseguirem comunicar a sua forma de ver o mundo estão (ou já foram) criados com a ajuda da tecnologia. Falta aperfeiçoamento e, principalmente, acessibilidade.

Hoje a linguagem libras ainda não está disponível a todos em todos os rincões do país. E quando a ciência chegar ao modelo ideal para a correção da visão com a implantação de chips ou coisa equivalente? Será para todos ou para os providos de recursos financeiros? O Estado continuará a ser um Estado arrecadador ou se tornará um Estado Cuidador onde o cuidar passa a ser um valor jurídico?

O mesmo vale para todo o tipo de “deficiência”. Quem tem presbiopsia, distúrbio da visão que ocorre aproximadamente aos 45 anos, em que, por perda da elasticidade e do poder de acomodação do cristalino, o indivíduo não percebe mais com nitidez os objetos próximos, o que o senso comum chama de  vista cansada, tem acesso a óculos para continuar mantendo qualidade de vida?

Incluir exige ações que virem políticas públicas. Para tanto, é preciso que a sociedade civil se mobilize para encaminhar propostas concretas e, muitas vezes, já testadas, que produzam uma sociedade mais justa e igualitária.

Dar voz aos que vivem a exclusão, é o caminho. São eles que conduzirão o olhar daqueles que sabem de exclusão apenas na teoria.

O Seminário de Inclusão é a forma pela qual a Práxis diz: Presente!

 

 

Notas e Referências

ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Org.) História da vida privada: Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. v.1.

BECK, Don E; COWAN, Christopher C. Dinâmica da Espiral: Dominar valores liderança e mudanças. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo: Martin Claret, 2014.

HARARI, Yuval N. Homo Deus, breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

JONAS. Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

PEREIRA, Tania da S.; OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

FOCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2014.

 

 

 

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