Sistema Prisional Brasileiro: Realidades e Perspectivas

30/07/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

O presente ensaio parte de reflexões realizadas sobre pesquisa empírica em prisões. Isso porque fomos convidadas a apresentar para uma turma de estudantes de Direito, sob o título "sistema prisional brasileiro: realidades e perspectivas", nossas vivências com o sistema prisional durante a elaboração de nossas dissertações de mestrado, concluídas há pouco, em dezembro de 2020. Diante disso, como colegas de profissão, de mestrado e de temática de pesquisa, apresentamos nossas reflexões a partir da preparação da apresentação. Nesse cenário, salientamos que os fundamentos têm como base a criminologia crítica latino-americana e as proposições político-criminais voltadas para o desencarceramento.

Frente ao desafio, passamos a debater alguns pontos em comum de nossas pesquisas de campo, visto que foram realizadas em instituições prisionais destinadas à execução da pena no regime fechado. Locais que, em tese, estão destinados à privação de liberdade. Contudo, a privação de liberdade é eufemismo à realidade dessas instituições, de seu funcionamento e de suas pretensões. É o que a criminologia crítica já alerta há tempo considerável e foi o que encontramos tanto na Penitenciária Modulada Estadual de Ijuí (BELINASO, 2020) quanto na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Porto Alegre (CARLAN, 2020). Sendo assim, as indagações sobre a concretude da privação de liberdade e os resultados almejados pelas políticas criminais permitem a reflexão sobre os paradoxos enfrentados no campo prisional.

Eufemismos que também nos atravessam durante o relato sobre o vivenciado no cárcere, visto que são inúmeros os limites para retratar e, inclusive, extrair, a dor marcada nas pessoas aprisionadas. Então, é dentro de um local onde se operam inúmeras violências que podemos denunciar a discrepância entre discursos oficiais e discursos reais. Trata-se de compreender que o Brasil permanecerá com altos índices de encarceramento se mantiver sua insistência no discurso da impunidade. Na retórica, muitas vezes cansativa, que sustenta a punição do outro, do indesejável, de homens e mulheres que têm raça e classe definidas, como instrumento de diminuição da criminalidade.

Assim, fixamos como ponto de partida que a sociedade na qual vivemos é heteropatriarcal, racista e capitalista. Descartamos a possibilidade de colocar em dúvida tal informação, pois já há dados científicos suficientes que comprovam a realidade concreta do Brasil, a mesma que é refletida na sua condição de terceiro país que mais encarcera pessoas e quarto que mais encarcera mulheres (PRISION, 2021). Nessa linha, partimos da análise dos dados oficiais, cujos principais meios de obtenção são o sistema de estatística do Departamento Penitenciário (SisDepen) e do Conselho Nacional de Justiça (Geopresídios).

Essa busca serve para um mapeamento de como ocorre o processo de criminalização, ou seja, para compreender quem são as pessoas encarceradas e descortinar o que parece ser (aparência) a fim de encontrar o que é (essência). Logo, o levantamento estatístico propõe identificar a tendência da criminalização e não a criminosa, já que são os dados, se bem interpretados, que desmascaram questões inadiáveis: prendemos os jovens ao invés de garantirmos seus direitos. É assim que a prisão torna-se um projeto político, ao precarizar os corpos pela lógica da categorização e vigilância de territórios específicos.

Estima-se que mais de 800 mil pessoas estejam privadas de liberdade no Brasil, número que não se reduz nem mesmo durante a pandemia de covid-19 (INFOVIRUS, 2021). O cenário apresentado é o resultado de uma crise ainda mais profunda que a sanitária, é a síntese da forma de organização social e das possibilidades do viver,  que revelam um encarceramento desenfreado mediante a apropriação obscena dos recursos públicos, do desapossamento dos territórios, do desmonte dos sistemas de proteção social.

Dessa maneira, a análise das realidades prisionais que investigamos permitiram identificar que os dados oficiais também são problemáticos. Por exemplo, em junho de 2020, constava na plataforma Geopresídios que a Penitenciária Modulada Estadual de Ijuí (PMEI)  é destinada ao aprisionamento masculino, com capacidade de 460 vagas. Já para o SisDepen o estabelecimento é misto, com um total de 708 vagas. Por fim, no site da SUSEPE a instituição possuía um total de 723 pessoas. A incongruência dos dados conduz para a dúvida, mas as mulheres encarceradas existem na PMEI . Estão alocadas em vagas adaptadas não só do déficit, que é uma realidade de todo o sistema prisional que não se revolve com a construção de mais vagas, mas pelo histórico de omissão e violação de direitos que sofrem as mulheres e os grupos vulneráveis.

Tão logo, a realidade do encarceramento feminino é a realidade das sobrecargas de punição, já que é no cárcere adaptado que as cargas de dominação e de punição potencializam-se. Sendo assim, as instituições mistas são hipotéticas aos sistemas estatísticos, devendo ser nominadas de masculinamente mistas já que encarceram homens e mulheres, “mas sobrepõe ao feminino uma orientação androcêntrica nas práticas e nas dinâmicas carcerárias” (CHIES; COLARES, 2010, p. 408). Na PMEI coexistem linhas que demarcam aqueles/as que se ajustam e os que não se ajustam às regras disciplinares, orientadas linhas pela concepção dualista de ser homem e de ser mulher. Essas sobrecargas expressam-se na falta de um vaso sanitário, no uso restrito do pátio, no controle das roupas, na escassez de vagas de trabalho, na maior restrição de acesso ao contato familiar durante a pandemia. Condições justificadas sob o argumento de serem necessárias mais vagas, no âmbito prisional interno, pela Superintendência dos Serviços Penitenciários, como também pelo Ministério Público, Judiciário e Polícia Civil.

Já na pesquisa desenvolvida sobre a APAC de Porto Alegre, percebeu-se que, atualmente, tais instituições prisionais estão na pauta das proposições político criminais, o que ocorre a nível local e nacional. Apesar de existirem desde os anos 70 como Associações que auxiliam a execução penal de um delimitado grupo de apenados, é ainda na esteira de estabelecimentos que privam a liberdade de pessoas que as iniciativas seguem sendo propostas. A APAC atua a nível individual e não estrutural, visto que seu objetivo não é substituir o sistema prisional, tampouco reformá-lo, pois oficialmente cumpre o que é estabelecido na Lei de Execuções Penais. E cumpre com as disposições legais em razão de suas características estruturais: estabelecimentos pequenos e autogestionados que possuem condições materiais que garantem minimamente os direitos das pessoas presas, apoiados financeiramente por voluntários e órgãos estatais e privados.

A instituição diferencia-se em características que se somam a punição, a exemplo de possuir segurança não armada, autogestão da casa prisional pelos apenados, possibilitar maior diálogo entre a administração e os presos e participação comunitária que ocorre através do voluntariado. Assim, ao retomar a busca pelo ideal sistema de execução penal ressocializador previsto em lei, a APAC afunila a seletividade já existente no sistema penal ao contemplar os presos ressocializáveis e disciplináveis em seus estabelecimentos. Destina-se, de maneira geral, aos advindos das galerias dos trabalhadores e dos evangélicos, aos que não contemplam a população carcerária vinculada às facções, que configuram a engrenagem do encarceramento em massa.

O que se capta, sobretudo, é o fato de a APAC estar sendo colocada como uma possibilidade de política criminal a ser adotada no intuito de possibilitar a abertura de novas vagas no sistema tradicional superlotado. Isso sem desconsiderar a existência de um “pressuposto da superioridade da APAC sobre o sistema comum como um fato dado que não é questionado” (VARGAS, 2009, p.148). Dessa maneira, as APACs são comumente interpretadas como um contraponto quiçá muito progressista à realidade prisional brasileira (leia-se a de observância da Lei de Execução Penal). Apoiando-se nesses aspectos, o movimento de sua expansão atua como modelo de sustentação da prisão, e a expansão de uma prisão diferenciadora, que não se pretende reformadora ou descarcerizadora, esvai qualquer possibilidade propositiva de barrar o expansionismo punitivo.

O impulso para a construção de mais vagas, tanto na modalidade tradicional (PMEI) quanto na modalidade APAC, esteve presente em ambas as pesquisas, o que demonstra que encarcerar pessoas segue uma crescente ante a manutenção do processo de criminalização assimilado por nós em momento anterior. Portanto, as perspectivas compartilhadas acerca do sistema prisional são a de abertura de vagas, o resultado da punição por meio da prisão, da busca incessante da manutenção do controle de corpos que apenas adquire outras justificativas a depender do contexto político e social.

A postura punitiva encontrada em nossos campos de pesquisa refletem o modelo adotado pelas instituições que operacionalizam o sistema penal e a política de segurança pública voltada para o policiamento ostensivo. Não à toa que o movimento de políticas criminais alternativas, a fim de contrapor a expansão do sistema punitivo, ainda enfrenta resistências em sua aplicação, como o exemplo das medidas cautelares diversas da prisão (Lei 12.403/2011) que permanecem na esfera formal. Já que ao invés de minimizarem a abrangência da punição terminam por expandir o sistema punitivo, as decisões que antes fundamentavam pela liberdade provisória da pessoa acusada, hoje a mantém em algum tipo de liberdade vigiada pelo Estado.

Ainda que o cenário seja desolador (como o é a privação de liberdade), identificamos perspectivas positivas, a exemplo da Justiça Restaurativa. Não obstante se desenvolva no paradigma punitivo e apareça como propostas dos que operam o sistema penal, inclusive é citada pelos agentes públicos atuantes no sistema prisional, estamos diante de um campo em disputa. Consequentemente, sustentamos que o movimento da Justiça Restaurativa é um contraponto concreto, um modelo significativo de resistência ao expansionismo punitivo e prisional, visto que possui ferramentas que rompem com o modelo tradicional, a exemplo da escuta e voz ativa aos envolvidos no conflito. Diante disso, o desafio que está posto (e é amplamente debatido) se resume com o seguinte questionamento: como não torná-lo mais uma ferramenta disposta a auxiliar a engrenagem que opera a favor do expansionismo punitivo? (CARLAN, ACHUTTI, 2019).

Tal questionamento evidencia que compreender a representação e os objetivos das iniciativas político criminais é fator imprescindível. No mesmo sentido, Baratta (2011), já trazia pistas sobre a necessária distinção de objetivos entre uma política penal e uma política criminal, sendo a primeira uma resposta à questão criminal que circunscreve o exercício da função punitiva do Estado, dentro do qual encontra-se a privação de liberdade. E a segunda como política de transformação social e institucional.

Então, ao nos alinharmos ao segundo horizonte, de proposições descarcerizadoras, reconhecemos uma resistência às políticas criminais alternativas. Resistência presente não só nos nossos campos de pesquisa, mas no próprio ambiente acadêmico. Evidenciamos, por fim, a validade da hipótese de que as proposições político criminais que atuam sobre o sistema prisional brasileiro caracterizam-se, ainda, como proposições político penais que sustentam o modelo carcerocêntrico pautado pelo idealismo ressocializador. Enfim, entre idealismos e realismos, consideramos inadiável avançar às críticas frágeis que circundam  o “fracasso” do sistema prisional.

 

Notas e Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução À sociologia do Direito Penal. Revan: Rio de Janeiro, 2011.

BELINASO, Camila. Encarceramento feminino e criminologia crítica: Um estudo com ênfase na sobrecarga punitiva em tempos de pandemia de covid-19 na penitenciária modulada estadual de Ijuí. Dissertação. Programa de Pós Graduação em Direito. Universidade La Salle. 2020, 156p.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Polén, 2019.

 BORGES, Juliana. Prisões: Espelhos de nós. São Paulo: Todavia, 2020.

CARLAN, Fernanda Koch. Os discursos de sustentação da prisão e a expansão das APACs no Brasil: Um olhar sobre a experiência de Porto Alegre. Dissertação. Programa de Pós Graduação em Direito. Universidade La Salle. 2020, 146p.

CARLAN, Fernanda Koch; ACHUTTI, Daniel Silva. Perspectivas para uma justiça restaurativa pensada desde a margem do sistema penal brasileiro. In: XXVIII Congresso Nacional do CONPEDI – Belém/PA, 2019. Anais GT Criminologias e política criminal II, 2019 Disponível em < https://www.researchgate.net/publication/342082869_PERSPECTIVAS_PARA_UMA_JUSTICA_RESTAURATIVA_PENSADA_DESDE_A_MARGEM_DA_REALIDADE_DO_SISTEMA_PENAL_BRASILEIRO > Acesso em: 25/07/2021.

CHIES, Luiz Antônio Bogo. COLARES, Leni Beatriz Correia. Mulheres nas so(m)bras: visibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios masculinamente mistos. Estudos Feministas, Florianópolis, 18 (2): 352, maio-agosto/2010.

CODINO, Rodrigo. Por uma outra criminologia do terceiro mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul. Tradução Salo de Carvalho. Revista Liberdades, Ed. nº 20, set./dez. 2015.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.

 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2019.

 DAVIS, Angela. A Democracia da Abolição. Para além do império das prisões e da  tortura. Rio de Janeiro: Difel, 2019b.

 DAVIS, Angela; KLEIN, Naomi. Construindo Movimentos: uma conversa em tempos  de pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.

INFOVÍRUS. De olho no Painel do DEPEN. 2021. Disponível em: https://www.covidnasprisoes.com/infovirus. Acesso em: 25/07/2021.

PRISON POPULATION TOTAL. World Prison Brief, 2021. Disponível em: https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All. Acesso em: 25/07/2021.

VARGAS, Laura Jimena Ordóñez. Todo homem é maior que seu erro? bases para uma reflexão sobre o método alternativo de gestão carcerária APAC. Entramado, vol. 5, núm. 2, julio-diciembre, 2009, pp. 134-151 Universidad Libre Cali, Colombia. Disponível em <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=265419724009> Acesso em:25/07/2021.

 

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