SISTEMA PENAL: seletividades, imunidades e criação de inimigos, uma breve reflexão.

15/03/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

As sociedades modernas têm como característica a criação do Estado, por meio do qual são exercidos diversos poderes, dentre os quais, o poder de punir, executado a partir do sistema penal, que, por sua vez, é composto por agências que filtram pessoas a serem submetidas à sua coação com a finalidade de impor-lhes uma pena. A isso dá-se o nome de criminalização.

O processo de criminalização pode ser dividido em duas fases distintas: a criminalização primária e secundária. Na primeira, tem-se a criação da lei, que é feita abstratamente, ainda que não de forma homogênea ou igualitária, tendo em vista ser de conhecimento amplo que, a legislação embora seu discurso seja generalista, de aplicação igualitária, sabe-se que se trata de algo direcionado a determinadas parcelas da população.

O sistema penal é ainda seletivo quanto aos bens protegidos: discursivamente se defende que os códigos penais elegem bens jurídicos supostamente merecedores de maior proteção do Estado, mas sabe-se que, na verdade, se trata de ideologia encobridora da real natureza do direito penal, de exclusão e seletividade. Já não é novidade a tese empiricamente comprovada de que o sistema penal enfoca os “interesses das classes dominantes (...)”,  imunizando atores privilegiados, embora praticantes de “(...) comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista (...)”, além de sobrelevar sua atenção às condutas desviantes típicas das classes subalternas (BARATTA, 2011, p. 165).

O arcabouço não só teórico, mas empírico produzido a partir do marco teórico da criminologia crítica lançou luz sobre as falaciosas funções da pena e do direito penal tão alardeadas pela dogmática jurídica. Nesse sentido, à crítica não basta divagações de que a igualdade é uma utopia, já que ela é, em verdade, um instrumento retórico encobridor, tendo em vista que nem mesmo os tipos penais – aos quais a dogmática jurídica atribui as características de abstração e generalidade – são igualitariamente selecionados: a escolha das condutas típicas e a desproporção da intensidade da ameaça penal (que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos desnudam o fato. Basta leitura atenta ao Código Penal para verificar que as penas cominadas a delitos praticados contra o patrimônio individual são, em circunstâncias irrazoáveis, mais duras que aquelas destinadas a bens jurídicos de caráter público e/ou difuso (Administração pública, meio ambiente, fauna, flora), como também àqueles crimes praticados contra a integridade física. Com efeito, “Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capitalistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é frequentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder” subalternas (BARATTA, 2011, p. 165).

Já, a criminalização secundária consubstancia-se na

“ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que se supõe tenha praticado certo ato criminalizado prima riamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo”. (ZAFFARONI, 2011, p. 43)

É nesta fase que a seletividade opera com mais intensidade. Nas palavras de Zaffaroni:

A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem em uma sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é algo tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista de uma cifra oculta. As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. (ZAFFARONI, 2011, p. 43)

Como consequência a este fenômeno, termina-se por naturalizar a seletividade operada na criminalização secundária, apesar de a aplicação do programa primário mostrar-se insignificante. E, de certo modo, a seletividade é mesmo natural: tendo em vista o sem-número de tipos penais, o caminho que resta às agências acaba por ser este da seletividade ou o da absoluta inoperância, contudo, este último acabaria por eliminá-las. A função seletiva fica, em sua maioria, a cargo das agências policiais e a regra é que seja feita entre o que chama o professor argentino de a obra tosca da criminalidade (delitos contra o patrimônio, pequeno tráfico de drogas), e ainda entre pessoas vulneráveis.  (ZAFFARONI, 2011)

Há uma relação fundamental entre seletividade e vulnerabilidade, bastando, para verificá-la, um breve passar de olhos sobre o estereótipo do criminoso de rua (e do encarcerado) no senso comum: ele é homem, negro, feio, de periferia, como se os seus crimes fossem os “únicos delitos” e os estereotipados, “os únicos delinquentes”, a quem “é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar um estereótipo no imaginário coletivo”. Essa homogeneidade da população tida como criminosa pelo senso comum e que acaba sendo o maior alvo da criminalização secundária coincidem com as características que o “biologismo criminológico considerou causas do delito quando, na realidade, eram causas de criminalização”, inobstante “possam vir a tornarem-se causas do delito quando a pessoa acabe assumindo o papel vinculado ao estereótipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário. No entanto, a vulnerabilidade vai para além do estereótipo em seus dois aspectos, e atinge também aqueles que por sua pouca educação realiza “ações ilícitas toscas e, por conseguinte, de fácil detecção”. (ZAFFARONI, 2011, p. 45-48)

Em casos marcadamente mais raros, a criminalização abarca pessoas que seriam imunes ao poder punitivo, no entanto, em ocasiões tais que saíram perdedoras de “uma luta de poder hegemônico e sofreu por isso uma ruptura na vulnerabilidade”, o que é chamado de criminalização devida à falta de cobertura e atuam no sentido de “alimentar a ilusão de irrestrita mobilidade social vertical (...)  e servem também para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode apresentar-se como igualitário”. (ZAFFARONI, 2011, p. 48-50)

A seletividade, no caso dos crimes de colarinho branco, se denota ao constatar que, apesar de ser um fenômeno comum a todas as sociedades capitalistas e cuja elevadíssima incidência foi trazida à luz por Sutherland, a persecução penal a eles é bastante restrita.

Fica evidente nesses casos que, a criminalização recaída sobre os raros fatos apurados se deve à criminalização por falta de cobertura, tendo em vista que não se tratam de atores vulneráveis social ou economicamente, mas que vivenciam apenas momentos de vulnerabilidade, em perdas relativas a disputas de poder.

A respeito do processo de criminalização, Zaffaroni sintetiza de forma brilhante:

as agências policiais não selecionam segundo seu critério exclusivo (...)provém de circunstâncias conjunturais variáveis. A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que participam das duas etapas da criminalização; sem um empresário moral, as agências políticas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agências secundárias selecionam pessoas que antes não selecionavam. Em razão da escassíssima capacidade operacional das agências executivas, a impunidade é sempre a regra e a criminalização secundária, a exceção, motivo por que os empresários morais sempre dispõem de material para seus empreendimentos. O empresário moral (...) pode ser tanto um comunicador social, após uma audiência, um político em busca de admiradores ou um grupo religioso à procura de notoriedade, quanto um chefe de polícia à cata de poder ou uma organização que reivindica os direitos das minorias, etc. Em qualquer um dos casos, a empresa moral acaba desembocando em um fenômeno comunicativo: não importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. (2011, p. 45)

O fenômeno comunicativo acima mencionado, denominou-se criminologia midiática, criadora de vítimas da vingança da sociedade, da violência essencial, que só cessa quando encontra um bode expiatório, isto é, o inimigo. Girard chama atenção para as características importantes a que devem corresponder este alvo da vingança: tem de ser particularmente esquisita, mas ainda deve ser possível de reconhecida como um ser humano e, por isso mesmo, capaz de personificar toda a perniciosidade de todo o corpo social, tornando-se o objeto de vingança, sendo, para isso, indiferente se é culpada ou inocente. Carl Schimitt, quando atuava na máquina nazista, fazia orientação semelhante: não importa quem seja o inimigo eleito, desde que ele seja útil a justificar todos os males.

É o que parece ocorrer com as grandes operações midiaticamente transmitidas, como a lava-jato, que lançou alguns inimigos - bodes expiatórios – aos espectadores ávidos por vingança.

A necessidade de vingança e os inimigos criados serão melhor explorados em próximo texto. Por ora, necessária uma revisão a respeito da criminologia midiática – parte fundamental na criação dos inimigos – que é conceituada por Zaffaroni (2013, p.143) como o instrumento que passa às pessoas leigas a “visão da questão criminal”, atividade que é inerente ao sistema penal, considerando sua finalidade de satisfação dos desejos de vingança e violência do corpo social. Por isso, sua veiculação midiática é fundamental, pois é o meio pelo qual se diz à massa espectadora que o “mal” está sendo neutralizado.

Dessa forma, a criminologia midiática remonta ao púlpito: houve alterações no modo como é propagada a ideia, mas a essência se manteve. Naquele tempo obtinha alcance restrito, eis que se bradava no púlpito ou nas praças e, hodiernamente, as informações não têm limites, pois divulgadas por meios de comunicação de massa, como jornais, televisão, internet, o que não transmudou sua característica primordial: criar/alterar a realidade a partir de “informação, subinformação, desinformação”, utilizando-se grandemente de estereótipos, “baseada em uma etiologia criminal simplista, assentada na causalidade mágica”. Cumpre ressalvar que que o componente mágico não é a vingança, mas a noção de “causalidade especial” empregada para dirigi-la em desfavor de alguns grupos, personificações do mal e objeto da vingança coletiva.  (Zaffaroni, 2013, p. 143)

Muito embora o fenômeno ainda tenha mantido sua lógica, o período atual conta com peculiaridades: o discurso em voga prega o neopunitivismo norte-americano, sintetizado por autores como Garland, Wacquant e Simon, que é consubstanciado em governar para o crime, isto é, todo o plano de Estado se dá a partir do propalado medo da criminalidade e na suposta necessidade de prevenção/moralização, cuja propagação conta com o compartilhamento de imagens, que dão outra tônica ao apelo midiático (distinta da que ocorria apenas com ideias, como ocorria com as notícias dadas na praça, no rádio, por exemplo).

O poder da imagem (que para o irrefletido ditado popular vale mais que mil palavras) se estabelece no fato de que é limitadora do pensamento abstrato, da reflexão: lida-se com o que se viu, e ponto. Mais: conta com apelo emocional, impacta, o que explica o cardápio trágico servido ostensivamente nos telejornais. 

A criminologia midiática, como toda ideia pautada no bem x mal, é maniqueísta e mostra um mundo dividido entre bons e maus ou entre os criminosos e os cidadãos de bem. Eles, os criminosos, bandidos, portadores de toda a crueldade, e as pessoas decentes, trabalhadoras, pagadoras de impostos que, para não serem mais reféns da criminalidade, anseiam por penas mais duras, aprisionamento em massa (dos outros), redução das garantias fundamentais, processuais e avanço do estado policialesco (para os outros), o que é também conhecido por populismo punitivo, que será abordado posteriormente.

Os alvos da punição, sempre os outros, eles – os perigosos, inimigos – são aquelas pessoas estereotipadas, alvos de inúmeras cargas de opressão, definidas na feliz expressão de Dussel como “os rostos da opressão” (aos quais se acrescentaria as mulheres). Então a lógica midiática faz uso de imagens desses estereótipos em ação criminosa e passa a ideia de que são os únicos infratores e ao mesmo tempo, todos infratores, ou seja, apenas os indivíduos que perpassam o estereótipo do criminoso são criminosos, mas também todos os estereotipados são criminosos, o que redunda na crença (irrefletida) de que todo portador de um estereótipo é um agressor em potencial, sendo natural o seu afastamento dos cidadãos de bem.

Assim, cria-se o medo das minorias: dos pobres, do índio, do negro, do estrangeiro (africano ou latino-americano, nunca o europeu),dos sem-teto. A televisão mostrou um morador de periferia praticando um ato de extrema violência, um estrangeiro, o espectador deduz que todos (ou a maioria dos) moradores de locais semelhantes ou estrangeiros têm atitude semelhante, já que são os outros e é necessário defender-se deles.

Sendo assim, devem ser neutralizados, afastados, em prisões sujas, as mais violadoras dos direitos humanos o quanto for possível. A bem da verdade, o ideal do cidadão de bem seria que estivessem mortos. Sua integridade física/moral e suas mortes não importam e é um absurdo que a conta da sua prisão seja paga pelos pais de família, trabalhadores pagadores de impostos. Logo, não causa nenhuma comoção serem mortos devido à “resistência à prisão” ou tentativa de fuga. São merecedores de todos os aspectos letais do sistema penal, uma vez que “são um produto natural (inevitável) da violência própria deles (...) se mostra o cadáver do fuzilado como indicador de eficácia preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra” (ZAFFARONI, 2013, p. 147).

A respeito da construção da realidade, Zaffaroni (2013), brilhantemente assevera que:

A construção da realidade não se faz necessariamente mentindo e nem sequer calando. Atrás de cada cadáver há um drama, uma perda, um dolo. Basta destacar o que o estereotipado cometeu, em toda sua dimensão real ou dramatizá-lo um pouco mais, e comunicar assepticamente outro, em espaço muito menor, para que o primeiro provoque indignação e medo e o segundo não.

Em qualquer cultura, a causalidade mágica é produto de uma urgência de resposta. Isso não obedece a nenhum desinteresse pela causalidade, mas justamente à urgência por encontrá-la. Na criminologia midiática sucede o mesmo. Deve-se responder já e ao caso concreto, à urgência conjuntural, ao drama que se destaca e deixar de lado todos os demais cadáveres; a falta de uma resposta imediata é prova de insegurança. Evidentemente, reclama-se uma resposta impossível, porque ninguém pode fazer que o que aconteceu não tenha acontecido. Frente ao passado a urgência de uma resposta impossível só pode ser a vingança. Como a urgência é intolerante, não admite a reflexão, exerce uma censura inquisitorial, pois qualquer tentativa de responder convidando a pensar é rechaçada e estigmatizada como abstrata, idealista, teórica, especulativa, distanciada da realidade, ideológica etc. Isso combina à perfeição com a televisão, onde qualquer comentário mais elaborado em torno da imagem é considerado uma intelectualização que faz perder rating.

No entanto, a demanda pela reação instantânea revela incongruências que, contudo, passam despercebidas, dada a imersão emocional gerada nas imagens. Ao mesmo tempo que confere ao televisionado o livre arbítrio de seu ato, busca fazer crer que todo o grupo a que ele pertence padece da mesma “doença”; ao passo que fomenta a fé na pena de prisão como solução para a criminalidade, não deixa de anunciar câmeras de vigilância, alarmes e todo um aparato de segurança (Zaffaroni, 2013).

 Outra incoerência apresentada é que o foco midiático não vai para os episódios com crimes violentos, já que esses já são duramente penalizados. Sobre os delitos sexuais, vez ou outra são explorados, mas sem chamar atenção para o fato de que há um grandioso número de vítimas que são crianças e que seus algozes são familiares, já que esses dados mostrariam a ineficácia do poder de punir para solucionar o problema. (Zaffaroni, 2013)

Com efeito, as atrações fictícias “transmitem a certeza de que o mundo se divide em bons e maus e que a única solução para os conflitos é a punitiva e violenta”. Por meio dessa propaganda de guerra, “Não há espaço para reparação, tratamento, conciliação; só o modelo punitivo violento limpa a sociedade”, crença que “se introjeta muito cedo no equipamento psicológico, principalmente quando a televisão é a baby sitter”. (Zaffaroni, 2013, p. 150)

O auge da realização da criminologia se dá quando se pode exibir uma vítima com que a plateia se identifique: no Brasil, é o caso do assassinato da menina Isabella Nardoni e, mais antigamente, de Daniella Perez, do qual derivou a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos. A memória da vítima ou seus familiares viram objeto de absoluta e irrestrita exploração: filma-se seu choro, seu sofrimento, a quem “se infere um grave dano psíquico; é pouco menos do que uma vivissecção psíquica” (Zaffaroni, 2013, p. 154), que completa:

A vítima-herói é instada a reclamar repressão por via mágica e é proibido responder-lhe, pois qualquer objeção se projeta como irreverente diante da sua dor. Perante o peso da pressão midiática são poucos os que se animam a desafiá-la e a fazer objeções a suas reclamações. Aqueles que mais se amedrontam são os políticos que, desconcertados, tratam de colocá-la de seu lado, redobrando apostas repressivas de acordo com a criminologia midiática, que são amplamente difundidas por esta, juntamente com a desqualificação dos juízes (p. 155).

Pois bem. O inimigo eleito no Brasil pela criminologia midiática no presente momento é a corrupção, os juízes mais arbitrários são elevados à categoria de heróis e os mais garantistas à categoria de cúmplices, tema que poderá ser explorado em um próximo texto, dada sua amplitude e complexidade.  

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Fachada do STJ - Vista interna // Foto de: Superior Tribunal de Justiça Fotos Históricas // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stjfotoshistoricas/5187841542

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