Por Luís Carlos Valois – 24/12/2016 [*]
Nas primeiras elaborações de FREUD sobre o inconsciente, o médico alemão usou a simbologia de duas salas contíguas, sendo que em uma estaria o inconsciente e na outra estariam o pré-consciente e o consciente. Na passagem que interligava as salas haveria um “guarda” (2014, p. 395), fiscalizando o que passaria e o que não passaria.
A utilização de situações da vida para explicar condições psicológicas tem sido comum na psicanálise, assim como, após a afirmação desta como conhecimento científico, o uso de seus conceitos e simbologias para explicar eventos sociais.
A Teoria Crítica, da Escola de Frankfurt, é farta nesse segundo método, de utilizar categorias da psicanálise para uma melhor avaliação do mundo irracional e contraditório em que vivemos.
Entre os expoentes dessa escola está Erich FROMM, que logo percebeu a capacidade de a sociedade apresentar sintomas: “temos que reconhecer os problemas patológicos específicos de nosso tempo para chegar à convicção da necessidade de salvar o mundo ocidental de um desequilíbrio cada vez maior” (1974, p. 108)
Contudo são poucos os trabalhos da Teoria Crítica sobre o sistema penal. O primeiro deles foi de RUSCHE e KIRCHEIMER (2004), utilizando principalmente o método histórico, demonstrando a funcionalidade da prisão no contexto do nascimento e fortalecimento da sociedade capitalista.
Falar sobre a prisão e sobre a inutilidade desse meio de punição tem sido algo recorrente nos meios científicos, sem que a sociedade acorde para essa realidade. A ciência tem falado em vão para uma sociedade cada vez mais sedenta de punição e encarceramento.
Foi assim que se resolveu falar a mesma coisa, de uma maneira diferente, utilizando as categorias freudianas ligadas à psicanálise, notadamente as relacionadas à neurose. Há que se buscar sempre formas de pensar diferente, de dizer diferente, porque ficar repetindo o óbvio tira-lhe força de convencimento.
Para este ensaio bastou o texto denominado Teoria Geral das Neuroses, de 1917, de FREUD, parte de suas Conferências Introdutórias à Psicanálise (Op. Cit.), posto que, se o pensamento de FREUD evoluiu para categorias mais complexas, não se pode negar que cada uma de suas apresentações possuía a sua própria completude e raciocínio lógico.
E a lógica, a razão, são, com efeito, inimigas das neuroses, seja da neurose individual do ser humano doente, como da neurose que tem tomado conta de todos quando se fala de crime.
Mas, então, por que argumentos racionais não convencem para a mudança do sistema que se demonstra irracional? Porque as causas do sistema, que talvez seja a própria doença, não estão no campo do racional. Em outras palavras, o sistema penal pode ser a própria doença, um sintoma que se estabeleceu como forma de vida, única forma de organização social.
Prisões e mais prisões, o Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo, mas o mundo mesmo, sem vislumbrar outra forma de punir, encarcera como se não houvesse amanhã. O exagero é um sintoma a mais a dificultar a conscientização de sua irracionalidade.
Ideias “inacessíveis a argumento lógicos extraídos da realidade, convencionou-se chamar de ideias delirantes” (FREUD, p. 335), e são também consequência da neurose do sistema ou do próprio sistema penal neurótico.
Sobre o que se falou, de um sistema que se estabeleceu como forma de vida, camuflando a sua própria existência como doença, parece claro na naturalidade do encarceramento, independentemente do excesso, este que se pode comparar com a histeria.
O encarceramento não tem justificação racional. Há muito se vem dizendo que não é possível ensinar uma pessoa a viver em sociedade, afastando-a da sociedade, e que, a prisão é, na verdade, um antro de criminalidade; que a prisão aumenta as possibilidades de a pessoa cometer em maior quantidade e severidade os crimes que se pensa estar evitando.
Mas a política de encarceramento, o desejo de encarcerar, não aceita argumentos racionais, sendo o superencarceramento a histeria desse estado de coisas absurdas.
Ideias delirantes são as próprias teorias do direito, como a da intimidação, da prevenção etc. A prisão não intimida a prática de crimes, mas a reforça, não só porque na prisão se praticam tantos ou mais crimes do que fora, mas porque o criminoso em potencial não deixa de cometer crimes porque outra pessoa foi presa, os pratica mais e com orgulho, porque não foi ele o preso.
São ideias delirantes que formam o conjunto do sistema penal neurótico. Como o ciúme citado por FREUD, nascido de uma ideia equivocada da realidade, ideia delirante (Idem, p. 337), criamos teorias, teses das mais variadas espécies para não perceber a realidade de exploração, de fome e de desigualdade que convive com toda essa nossa construção do direito.
No direito, portanto, as ideias delirantes, como acontece no normal das neuroses, tem um grande vínculo com a própria neurose. Assim, sendo neurose e ideias delirantes consequências de uma causa semelhante, a realidade da injustiça social pode ser a causa de ambas.
Ainda, seguindo a analogia com a teoria das neuroses, o sistema penal pode ser resultado de uma projeção. Miséria e criminalidade seriam consequências da injustiça de um sistema político de exploração, e a sociedade, reprimindo o caráter injusto de sua organização, projetaria apenas na criminalidade toda a sua insatisfação.
O que estaria errado na sociedade seria apenas a criminalidade, não a miséria, a injustiça social, a exploração, que restam reprimidas, na sombra, para usar um conceito junguiano (BRACCO, 2015), fazendo com que todo o foco recaia na criminalidade.
Um sistema penal neurótico que causa ideias delirantes: o próprio discurso jurídico. Criam-se teorias com uma compulsão doentia, para além do simples delírio, enquanto o sistema continua encarcerando, superencarcerando a população.
Não se afirma que o superencarceramento é uma ideia delirante porque não é ideia, é realidade, está acontecendo, é palpável, verificável estatisticamente, por isso mais parecido com a histeria neurótica, que causaria efeitos, vômitos, ataques, no paciente.
Nenhum desses efeitos, sintomas, será curável enquanto não se convencer de que o próprio sistema é uma neurose, neurose que causa ideias desconexas da realidade, uma mentira contra a qual argumentos racionais não tem efeito.
As doenças da mente têm algo em comum, nas palavras de FREUD, “sempre e em toda parte o sentido dos sintomas é desconhecido do doente” (Op. Cit., p. 372), e é verdade, perceber a irracionalidade em que nos encontramos já seria o início da cura, mesmo durante os efeitos da doença.
Muito embora, a partir da entrada do manicômio, a saída é difícil. Tentar estar são, entre loucos, é indício de loucura maior. Vide a experiência de David Renhan, citada por Jon RONSON, onde pessoas normais, mandadas para um manicômio como loucas, depois de internadas, não conseguiram sair “até concordar com os psiquiatras que eram insanos e depois fingir melhorar” (2014, p. 233).
Estamos cercados por uma realidade irracional contagiante, loucos somos nós que a denunciamos. Para alguma melhoria em termos de dignidade de um ou outro ser humano, temos que fingir acreditar na loucura do encarceramento em massa, nos muros podres das prisões, antes de reivindicar qualquer coisa.
Diz FREUD que algumas neuroses são resultado de um trauma, outras não, mas todas têm um componente em comum: a fixação em algo do passado. Nossa neurose está evidentemente fixada no passado, na tentativa de reformadores de tentar fazer da prisão algo científico, reformadora também do ser humano.
Pensilvânia, Alburn, modelos de prisão ensinados nos livros até hoje, naquela pequena parte histórica dos manuais de direito penal, são nossa fixação. Não aceitamos até hoje o fracasso da pena de prisão e vivemos em uma reforma eterna, na repetição bem ao gosto de qualquer neurose.
Na analogia que se tem feito neste texto, com a neurose, as coincidências não param por aqui. FREUD chegou à conclusão também que, durante o tratamento, o paciente continua sofrendo, ou seja, vai passando por processos de negação, resistências que são uma oposição do inconsciente, e que impedem de as causas do sintoma virem à consciência.
Resistência de o paciente aceitar certas verdades que poderiam fazer as causas do adoecimento vir à tona. A uma das resistências, FREUD deu o nome de repressão, e a outra simplesmente resistência.
Nossa história do sistema penal não fica longe disso, e a repressão principal é profunda, com bases mesmo no sistema econômico: nossa negação absoluta em reconhecer o sistema massacrante em que vivemos; a dificuldade em perceber que a exploração do suor do trabalhador causa miséria.
Repressão que sequer se pode atacar atualmente, fazendo com que as causas da miséria adormeçam no inconsciente, inclusive de cientistas sociais. E dessa repressão surgem inúmeras outras no processo de adoecimento da sociedade, entre elas a repressão do fato de que estamos piorando as pessoas ao encarcera-las, mas também, e principalmente, a repressão de sentimentos bons como o amor, a solidariedade e a compaixão, incompatíveis com uma sociedade de livre mercado
Por isso a dificuldade de crítica nesta sociedade absorta, uma verdadeira resistência, parecida com a que o paciente oferece no processo de análise, que FREUD chamou às vezes de processo de cura.
A Teoria Crítica tem suas ressalvas a respeito da denominação ou da potencialidade da cura na psicanálise, uma vez que esta, ao invés de curar, pode se constituir em adaptação do sujeito a muitos males presentes no contexto social. O neurótico seria o são nesse mundo irracional.
Mas a resistência à crítica presente no sistema como um todo, a resistência social à percepção dos males que a sociedade causa e apresenta são resultado mesmo da adaptação social.
Uma crítica, mínima que seja, à estrutura de exploração em que vivemos, para logo sermos taxados de inimigos, comunistas, petistas, petralhas, não importa a nomenclatura, sempre demonstrando aquela aversão, aquele desconforto que FREUD via nos seus pacientes no momento de forte resistência à análise.
Quando FREUD vincula a neurose a alguma frustração sexual, a nossa analogia pode perder força, todavia FREUD faz uma minuciosa explicação dos diversos tipos do que ele chama de “perversidade sexuais” (Idem, p. 426), tidas como normais, prazer sexual para muitas pessoas, não limitado apenas à atividade sexual reprodutiva.
Assim, as neuroses, seus sintomas, apresentam-se para FREUD como reflexos de perversões sexuais reprimidas. Os sintomas podem se revelar perversões não sexuais, embora ligados a uma frustração desse tipo.
Por certo, nas primeiras aulas sobre neurose, FREUD não tinha como totalmente desenvolvida a sua teoria sobre a libido. Mas a referência aqui à frustração sexual é em função do prazer – efetivamente um prazer – encontrado nas manifestações de determinadas pessoas na atividade punitiva.
O corpo do condenado, algemado, encarcerado, humilhado na frente das câmeras, exerce uma atração para além do efeito de catarse. A morte, às vezes até a morte do policial, é vislumbrada com grande indiferença, reduzido o corpo, como sempre, a um objeto. Com efeito, a arma, a grade, as correntes e a caneta, se transformaram em instrumentos de prazer.
Notas e Referências:
BRACCO, Bruno. Jung e sua contribuição com o direito: a sombra. Disponível em: <http://justificando.com/2015/10/16/jung-e-sua-contribuicao-com-o-direito-a-sombra/>. Acesso em 13.12.16.
FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 13: Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FROMM, Erich. A psicanálise da sociedade contemporânea. São Paulo: ZAHAR Editores, 1974.
RONSON, Jon. O teste de psicopata. Rio de Janeiro: BestSeller, 2014.
RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.
[*] Texto base de palestra proferida no 1º Congresso Nacional de Direitos Humanos e Garantias Fundamentais, em Balneário Camboriú, Santa Catarina, em 9 de dezembro de 2016.
. Luís Carlos Valois é Juiz da Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, membro da Associação de Juízes para a Democracia – AJD, e membro da Law Enforcement Against Prohibition (Associação de Agentes da Lei contra a Proibição) – LEAP..
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