Ainda que sob a perspectiva do direito positivo, é conhecida na dogmática do Direito Administrativo a vetusta discussão sobre os questionamentos da noção de serviços públicos, ora centrando-se o debate em relação a quem presta, ora quanto ao regime de regulação, público ou privado[2]. Nesse contexto, Charles Eisenmann em 1952 afirmou que tal noção deveria ser relegada para o plano da história em virtude do divórcio com a realidade, mas tal referência reflete as polêmicas sobre as construções teóricas do tema e o mundo da vida.
O debate aqui até é mais simples.
O artigo 175, inciso IV, Constituição Federal, refere que incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos, cuja lei referida disporá sobre a obrigação de manter serviço adequado!
Ora, em 1995, a Lei Federal 8.987, disciplinou no §1º do artigo 6º a noção jurídica de serviço público adequado: “Serviço Adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
Vejam que os brasileiros acostumados com o “nível de prestação dos serviços públicos” foi inclusive brindado por este luxo da legislação: cortesia na sua prestação! É o máximo, não é?
Mas pelas bandas do mundo da vida...
Nos últimos dias o pessoal do andar de cima deu-se conta que está mais difícil chegar lá, por causa do serviço de transporte aéreo (ironia é claro).
A mídia ocupou-se à exaustão do tema, mas o surpreendente é que os problemas de má prestação do serviço decorrem em virtude da oportuna intervenção da ANAC com a adoção de normas mais rígidas de inspeção de passageiros e bagagens de mão do embarque doméstico no país. Tudo em nome da eficiência da segurança.
Como assim?
Então quem decidiu voar para Paris tinha mais segurança nesse quesito do que quem viajou para Brasília?
Mas e a Lei nº 11.182/2005, que criou a Agência Nacional de Aviação Civil, cujo artigo 8º dispõe competir à autarquia adotar medidas do interesse público, dentre elas, fiscalizar a operação dos serviços aéreos do País?
Agora entendi. É que como há discricionariedade quando o artigo 6º, §1º, da Lei nº 8.987/95 fala em segurança leia-se “este conceito jurídico não se aplica para os voos domésticos. ” Juro que até hoje acreditei voar em segurança para São Paulo, Rio de janeiro, Porto Alegre, etc. Sempre imaginei, ao avistar aqueles carrinhos transportando as malas para o compartimento do avião, cujo trabalho delicado de colocá-las no interior da aeronave estava amplamente albergado pela efetividade da segurança dos passageiros.
A ANAC referiu a necessidade de padronizar regras de segurança. Certo, então até hoje, desde 1995, a autarquia criada para atender o interesse público era despadronizada!
Há uma ideia na sociologia bem interessante, muito embora igualmente com grandes controvérsias sobre o seu significado, que é a de anomia. Sem adentrar nos debates entabulados, por exemplo, por Durkheim[3], a anomia também se relaciona com a circunstância de não cumprimento de regras jurídicas, ocasionando a ineficácia do preceito. São diversas e complexas questões no que tange às razões pelas quais os indivíduos em determinado tempo, sociedade e contexto não cumprem as regras. No entanto, maiores problemas surgem quando os processos de anomia são causados pelo próprio Estado, seja pelas autarquias de regulação dos serviços públicos ou prestadoras do serviço, cuja atividade passou pelo público e legítimo processo de delegação.
No entanto, nem tudo está perdido.
Muitos acompanharam as notícias sobre o fato de que outra agência reguladora, a ANVISA, proibiu lote de extrato de tomate com pelo de roedor.
Ainda bem, pois já há muito tempo esperava-se decisão dessa envergadura (outra ironia).
Ao ler o conteúdo das notícias veiculadas, no entanto, os fatos são mais assustadores. A resolução publicada no Diário Oficial proibiu a distribuição e comercialização de determinado lote do extrato de tomate de certa marca conhecida no mercado, pois laudo da Fundação Ezequiel Dias acusou a presença de pelo de roedor acima do limite máximo!
Ou seja, todos consumimos extrato de tomate com pelos de roedores, mas é como a anomia do Direito, é só uma questão de grau!
Não é brincadeira.
A Lei nº 9.782/99 ao definir o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, cujas atribuições do artigo 7ª são direcionadas para a implementação de ações de vigilância sanitária.
Em 2014 foi editada a Resolução nº 14, de 28.03.2014, aprovando o Regulamento Técnico e estabelecendo os requisitos mínimos para avaliação de matérias estranhas e microscópicas em alimentos e bebidas e seus limites de tolerância (artigo 1º). O artigo 2º acrescenta que a avaliação da presença de matérias estranhas direciona-se para a constatação de riscos à saúde humana.
Se os meus leitores têm estômago e não estiver perto da hora do almoço, vale a pena a leitura das definições jurídicas do artigo 4º. Por exemplo, o regulamento adota a seguinte definição de matérias estranhas indicativas de riscos à saúde humana: a) insetos: baratas, formigas, moscas que se reproduzem ou que tem por hábito manter contato com fezes, cadáveres e lixo, bem como barbeiros, em qualquer fase de desenvolvimento, vivos ou mortos, inteiros ou em partes.
Genial não?
A fiscalização sai às ruas segurando cartazes com os dizeres: procura-se, viva ou morta!
Brincadeiras a parte, o conceito jurídico de roedores é bem interessante: a) roedores: rato, ratazana e camundongo, mas agora a parte mais relevante, inteiro ou em partes.
O tópico mais divertido de ler da Resolução nº 14/2014 é a combinação do artigo 12 com os Anexos I e II que estabelecem alguns limites bem significativos, ao menos os cidadãos devem saber que extrato de tomate está exposto nas gôndolas dos mercados.
Imaginem no próximo domingo. Família reunida, pais, avós, crianças, todos na irmandade de mais uma macarronada com molho de tomate, utilizando alguma marca de sua preferência para melhorar a consistência do molho vermelho.
Conforme Grupo de Alimentos, Matérias Estranhas e Limites de Tolerância, para extrato de tomate entende-se como matéria estranha fragmentos de insetos. Mas não se preocupem, é permitido 10 em 100g. Logo, basta calcular quanto tem em cada latinha e estaremos todos seguros. Há, e já ia esquecer, fragmentos de pelos de roedor, a notícia é melhor, pois o limite máximo é de 1 em 100g!
Esse é o serviço público de fiscalização à brasileira. Leon Duguit, um dos grandes juristas clássicos do Direito Francês, quando em sua magistral obra As Transformações do Direito Público e Privado[4], desenvolveu a noção de serviço público inspirado na potencialidade de tais serviços desenvolverem a solidariedade social. E tinha plena razão. No entanto, pelas nossas óbvias necessidades de adaptação em terra brasilis, creio fundamental descrever a nossa solidariedade: todos consumimos, em alguma medida, pelos de ratos!
Nem vou continuar com as boas notícias então – mas não resisto –; sabe aquela geleia deliciosa no pão quentinho, pois é, ela pode sair da fábrica com fragmentos de insetos, mas aqui a resolução foi muito rígida: somente 25 em 100g!
Enfim, as notícias da semana são alvissareiras em matéria do serviço público e de controle realizado pelo Estado, mas já sugiro para resolver diversos problemas, como o da ANAC a criação do Ministério da Despadronização, exatamente para avaliar esses probleminhas escassos de falta de integridade e coerência na Administração Pública.
E para terminar li a notícia sobre os debates governamentais a respeito do término da participação dos médicos cubanos – aproximadamente 11.429 médicos cubanos atuam no programa Mais Médicos - e a necessária substituição dos profissionais, mas eles serão mantidos por mais quatro meses.
Ordem para ainda atender melhor a população?
Não. É para, sempre pensando na eficiência, esperar passar o período das eleições municipais.
Notas e Referências:
[1] Expressão utilizada por Almiro do Couto e Silva no artigo intitulado Privatização no Brasil e o Novo Exercício de Funções Públicas por Particulares. Serviço Público “Á Brasileira”?, In Revista de Direito Administrativo, nº 230, outubro/dezembro, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 45-74. Mais recente CONRADO, Regis da Silva. Serviços Públicos à Brasileira. Fundamentos Jurídicos, definição e aplicação. São Paulo: Saraiva, 2013.
[2] Existe ampla bibliografia sobre o tema, como ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003.
[3] Cf. ARNAUD, Andre-Jean. Anomia, In: Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 38.
[4] Las Transformaciones del Derecho Público y Privado. Argentina: Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 37.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
ARNAUD, Andre-Jean. Anomia, In: Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
CONRADO, Regis da Silva. Serviços Públicos à Brasileira. Fundamentos Jurídicos, definição e aplicação. São Paulo: Saraiva, 2013.
DUGUIT, Leon. Las Transformaciones del Derecho Público y Privado. Argentina: Editorial Heliasta S.R.L., 1975.
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003.
SILVA, Almiro do Couto e. Privatização no Brasil e o Novo Exercício de Funções Públicas por Particulares. Serviço Público “Á Brasileira”?, In Revista de Direito Administrativo, nº 230, outubro/dezembro, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 45-74
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