Por S. Tavares-Pereira – 28/07/2017
Séries
Neste 2017, as publicações estão classificadas em séries. Veja, no pé deste post, as publicações anteriores. Hoje se dá sequência a série: Tecnologia e trabalho.
Série Tecnologia e trabalho VII
Megatendências induzidas pela tecnologia: o trabalho na berlinda (I)[1]
Os fatos apontam para o fim da era da visão maniqueísta de mundo dividido entre capital e trabalho. Durou mais que o necessário e, infelizmente, seus ranços persistem em alguns bolsões desavisados. Há uma tsunami se aproximando da praia do emprego e tais noções apenas complicam a paisagem.
Aguilhões ideológicos podem gerar, ainda, confiança em antigos e ineficazes abrigos. Mas a realidade, desde Heráclito, é um monstro que avança em movimentos furtivos e sempre diferentes e que exige renovação continuada das estratégias de defesa.
No Brasil, a CLT está aí, incólume até o momento, operada por um ramo judicial extremamente competente e eficaz. E, no entanto, uma onda de 14 milhões de desempregados avança pela praia do emprego, incontida e desgovernada. Pode-se atribuir o balanço momentâneo do desemprego ao desnorteio político do estado brasileiro. De fato, há uma causalidade aí que embaça as análises. Mas também acende uma dúvida sobre os poderes da lei na luta pelo emprego. É é preciso levantar o olhar para o horizonte e distanciar-se das circunstâncias. Olhares para o hemisfério norte são muito esclarecedores e apontam tendências, essas sim, mais confiáveis, apesar de funestas em alguns sentidos.
Com CLT ou sem CLT, com direito do trabalho na constituição ou fora da constituição, com o estado brasileiro livre dos descaminhos ou perfeitamente administrado, com Justiça do Trabalho ou sem ela, o fato é que está chegando muito rapidamente um tempo em que somente capital e trabalho, juntos, poderão enfrentar minimamente a crise do emprego[2]. Se houver a necessidade de apontar culpados para as transformações que se avizinham, qualquer elenco incluirá a tecnologia e sua exuberante e exponencial explosão.
Os especialistas têm chamado de megatendências, induzidas pela tecnologia, os fatores desmanteladores da estabilidade no mundo do emprego. Quem não leu, em obras de três ou mais décadas, que algum nível de desemprego era fundamental para a contenção do consumo e da inflação. Tratava-se apenas de uma variável controlada, mediante mágicas matemático-econômicas, numa equação engendrada para a estabilidade da macroeconomia. Mas o que denominavam de macroeconomia era apenas uma parcela ínfima da economia total, onde um miolo exuberante e bem cuidado era circundado por uma casca imensa e grossa de miséria e exclusão.
O desemprego circunstancial do Brasil não deve impedir a apreciação da realidade global: desemprego invadindo as grandes e sólidas economias, estado de desilusão, não comprometimento e angústia dos trabalhadores em todo o mundo. Dados e estatísticas são abundantes a respeito. Uma pesquisa no DuckDuckGo[3], sobre o desemprego na atualidade, surpreende, para não dizer que assusta. Não se trata de uma exclusividade brasileira. Esteja onde estiver, o cidadão do mundo está percebendo que há “algo podre no reino do emprego”. Carências, falta de expectativas, mentiras e erros dos governos, falta de inovação, escassez de visão e uma infindável sequência de percepções são mencionadas (ROCA, 2016,.p.22). Tudo conducente a desalento e não o contrário.
As megatendências[4] filhas da revolução tecnológica, que apenas jogam gasolina na fogueira, podem ser assim resumidas:
(a) globalização, um fenômeno meio antigo mas que a hiperconectividade vai levar ao limite (a promessa de freio do fenômeno foi uma das causas da eleição de Trump);
(b) a nova e mais fulminante terceira onda da virtualização do trabalho e
(c) demografia recomposta, com a irrupção das potências emergentes e o envelhecimento das potências dominantes até agora[5].
Segundo a visão preponderante dos especialistas, toda vez que as oportunidades tendem à igualdade, o mundo se polariza. E isso significa que o meio sofre e se espalha para uma das bandas. Dito de outra forma, pode-se perguntar se cada vez haverá menos classe média e suas características típicas ligadas a salário, padrão de vida, acesso a isso e a aquilo? ROCA e o IPEA discordam a respeito.
As novas tecnologias, que estão alcançando rapidamente todo o mundo, colocam nas mãos de todas as pessoas, num movimento de inclusão sem precedentes, a possibilidade de se engajar num todo que não existia para elas. Globalização e hiperconectividade darão a cada pessoa a possibilidade de, por si mesma, transformar seu futuro. O país em que nasceu, a condição familiar ou o círculo social em que se encontra perderão força na definição do grau de integração da pessoa no mundo. Norte e sul significarão, cada vez mais, apenas sentidos de uma linha que liga os pólos.
Num mundo assim, de oportunidades abertas para todos, cresce a responsabilidade individual porque os caminhos a percorrer serão traçados por cada um no esforço de integração possível. Esse movimento do mundo para a globalização não precisa estar acabado. Ele está em curso e seus efeitos são perceptíveis. O engajamento de forças de trabalho estranhas, cujas condições laborais são totalmente distintas (da regulação à necessidade), está pondo em xeque antigas equações de estabilidade. Os capitais transitam de cá prá lá, disputados amplamente e de olho em maximização da competitividade, eles mesmos sujeitos à quebra das geografias e da mundialização das tecnologias. O legislado não garantirá mais nada, apenas o negociado?[6]
A inteligência artificial transforma-se, rapidamente, num diferencial competitivo que assombra os mais céticos. O que não se fez em 60 anos, desde Turing e suas previsões para o saber computacional, está ganhando vida e expressão em velocidade inacreditável. E isso significa exclusão de emprego? Certamente. Algoritmos inteligentes tornam o cenário do emprego, num futuro breve, mais preocupante ainda. A onda está se formando e vai quebrar em breve.
E não se pode esquecer que a tecnologia de outras vertentes (biotecnologia, por exemplo) empurra as pessoas para mais vida, num mundo com menos trabalho. Já há quem diga que as aposentadorias antecipadas minguarão e as pensões serão percebidas pela ausência.
Uma conjunção de fatores, portanto, está em curso e traz profundo impacto no mundo do emprego. Enfrentar seus efeitos dependerá de muita ponderação e confiança de todos os envolvidos. Não se pode derrotar o novo com armas antigas, por mais poderosas que tenham sido no passado. A imbatível armada japonesa sucumbiu, numa noite, ao radar, uma pequena engenhoca que permitia ver à noite e à distância. Galileu usou argumento semelhante para vender aos detentores de poder italianos o seu telescópio: oferecia a possibilidade de ver as velas das caravelas do inimigo, no horizonte difuso do mar, duas horas antes do que eram percebidas até então.
No enfrentamento da onda que se avizinha, acirrar antigas e inadequadas rivalidades não ajudará. O entendimento da realidade transformada é o único meio de postar adequadamente as baterias e as trincheiras.
Notas e Referências:
[1] O capítulo 1 de Knowmads merece uma visita sistemática e comentada que ocupará os próximos posts. Rachel Roca faz uma análise atualizadíssima do panorama do emprego no mundo frente ao avanço das NTRICs (Novas tecnologias das relações, da informação e da comunicação). ROCA, Rachel. Knowmads. Los trabajadores del futuro. 3.ed. Madrid:LID, 2016. 229p. O livro chegou à terceira edição em apenas um ano.
[2] Numa visão de momento e jurídica, alguns chamariam de prevalência de negociado sobre o legislado.
[3] Um professor, num curso da NewCastle University, indicou este buscador. Segundo ele, não há a manipulação e uso dos dados pessoais de quem faz a busca.
[4] O trabalho do IPEA, a respeito das muitas megatendências para 2030, é imperdível. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/151013_megatendencias_mundiais_2030.pdf. Acesso em: 15 jul. 2017.
[5] “O crescimento econômico mundial, com maior concentração de renda, será sustentado pelos países emergentes.” (MEGATENDÊNCIAS, 2015, p.117).
[6] Para mais detalhes sobre a empresa e a hiperconectividade, ver: TEGON, Cesar Antonio. A era da hiperconectividade. Disponível em: http://www.guiarh.com.br/p46.html. Acesso em: 15 jul. 2017.
Publicações anteriores
Série Tecnologia e trabalho: 1) Relação de trabalho e Uber: desafio (20/01/2017) 2) Uber: juiz mineiro não vê vínculo de emprego na relação (17/02/2017) 3) Uber – do ponto de táxi até o aplicativo: análise sob viés tecnológico (24/02/2017) 4) Knowmads: o trabalho no futuro tecnológico. (27/05/2017) 5) Uber: TRT/MG nega o vínculo de emprego. (02/06/2017) 6) Empregados europeus aplicam microchips nas mãos para controle (21/07/2017)
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S. Tavares-Pereira é mestre em Ciência Jurídica (Univali/SC) e aluno dos cursos de doutoramento da UBA. É especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/RS, juiz do trabalho aposentado do TRT12 e, antes da magistratura, foi analista de sistemas/programador. Advogado. Foi professor de direito constitucional, do trabalho e processual do trabalho, em nível de graduação e pós-graduação, e de lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados em nível de graduação. Teoriza o processo eletrônico à luz da Teoria dos Sistemas Sociais (Niklas Luhmann).
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