Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
Em 2011, estava visitando a exposição Des femmes en femmes, em Lille, norte da França, que contava a história das mulheres por meio de objetos de épocas diversas. Um dos itens expostos era uma sentença datada do século XVII- salvo engano- em que uma mulher fora condenada por ser considerada bruxa (sorcière). Foi meu primeiro contato com uma sentença da Inquisição. Eu li parte do manuscrito e fiquei “admirada” – no sentido filosófico do termo- com o conteúdo. Na minha terra eu diria que fiquei “encucada”! Eu esperava ler coisas do que o nosso imaginário costuma dizer sobre bruxas e feiticeiras e nada disso foi percebido. O espanto foi tão grande que enviei um e-mail para meu querido orientador Sérgio Araújo contando-lhe o que me ocorrera e perguntando se no Brasil não existira algo parecido. Foi então que comecei a estudar a inquisição no Brasil ou pelo menos sua influência por aqui, já que sabemos que não tivemos um Tribunal em terras tupiniquins. A competência para julgar os moradores da Colônia, que por ventura caíssem nas garras da Inquisição, era do Tribunal de Lisboa.
Não me lembro exatamente do conteúdo da sentença, mas a sensação ao ler o documento era de que a pobre mulher estava sendo condenada por sua condição de mulher. O crime era ter saído do esperado, do estabelecido pela sociedade naquele período histórico. Quis, então, estudar as sentenças das moradoras do Brasil e me deparei com dados muito interessantes. Percebemos, por exemplo, que o crime que a sociedade mineira mais denunciou ao promotor, no que se refere às mulheres, foi o crime de feitiçaria. Nos Cadernos do Promotor, pode-se acessar o nome de todas as mulheres que foram formalmente denunciadas e que moravam na região das minas setecentista. Resende (2013) assim descreve esses cadernos:
Trata-se de uma volumosa série documental composta por manuscritos avulsos, organizados na forma de códice, com cerca de 300 a 600 fólios, contendo registro de denúncias, sumários de testemunhas, devassas e diligências realizadas no Brasil, durante o período de atuação do Santo Ofício na Inquisição de Lisboa. (RESENDE, 2013, p.415).
“Resende (2013, p.415), a partir dos cadernos do promotor, fez um “um rol de denúncias referentes a Minas Gerais ao longo do século XVIII”, compreendendo os anos de 1692 a 1800. Dos 384 denunciados, apenas quatro se referiam ao crime de heresia (Resende, 2013, p.417) e 81 denunciadas eram mulheres. Quatro delas foram denunciadas por bigamia; 11 por desacato, duas sem informação sobre o crime; 63 foram denunciadas por feitiçaria e apenas uma por heresia e apostasia”[1]. Para muitos, ainda é uma surpresa saber que algumas mulheres das Minas do século XVIII eram acusadas de serem feiticeiras tal qual acontecia com as europeias, como a mulher da sentença citada acima, e que foram denunciadas e processadas pelo Tribunal do Santo Ofício.
“A sociedade mineira parecia preocupada com o crime de feitiçaria, são essas práticas que eram denunciadas, levadas ao conhecimento dos agentes do Tribunal. Convém observar que a maioria das denunciadas eram negras e os fatos descritos nas denúncias como feitiçarias tratavam-se de práticas religiosas diversas das católicas. O vigário Alexandre Nunes, por exemplo, denunciou a preta forra Páscoa Roiz “por curar com feitiços e calundu, e que todos lhe tomam benção, beijando-lhes pés e palma da mão” (RESENDE, 2013, p. 423). Luiz Pereira denunciou Suzana, negra, por “suspeita de enfeitiçar um negro, e por curá-lo em uma cachoeira, onde lhe assentara umas folhas de bananeira e o mandara saltar por cima” (RESENDE, 2013, p. 428)”.[2] Mulheres como Joana e Brites tiveram suas denúncias registradas nos cadernos do promotor nos seguintes termos:
Livro 296., fol. 0617, doc 260- Denúncia de João Gomes Coutinho contra Joana Alvares, crioula, por feitiçaria, com presunção de pacto, por trazer uma oração com cruzes por toda ela e o demônio pintado e a forca a cadeia e palavras diabólicas, e a defumou com enxofre e foi assentá-la em uma encruzilhada fora de hora, Congonhas do Sabará, 1733. [3]
Livro 295, fol.0133-0138, doc 62-64 – Denúncia de Maria da Candelária contra Brites Furtada de Mendonça, por feitiçaria, com casulo de algodão, azeite de mamona, vestida de branco, dizendo falas e deitada de bruços, com braços em cruz, com contas na mão. Vila de São João Del Rei. 1738. [4]
As condutas denunciadas e que parecem ter causado espanto na sociedade católica mineira setecentista nada mais eram que práticas não católicas. A ideologia dominante era o catolicismo que se dizia dono da verdade revelada por Deus e, portanto, tudo o que fosse contra ou simplesmente diferente da Igreja deveria ser considerado heresia e passível de condenação.
É também no caderno do promotor que se tem registro de “denúncias contra negras que levavam os homens por três léguas sem que eles sentissem, maltratando-os com pancadas. É o caso de José da Costa Souza que assim denunciou a negra forra Joana da Silva (RESENDE, 2013, p.424)”[5]. Enfim, tudo o que era incompreensível ou inadmissível de ser feito por uma mulher na sociedade mineira setecentista jogava-se na conta de feitiçarias.
Caso interessante daquele período e estudado por Neusa Fernandes é o de Luzia Pinta, negra forra, natural de Angola, moradora de Sabará. Foi presa no século XVIII (processo nº252) sob a acusação de feitiçaria. O que Luzia fazia, segundo as denúncias, era dar consultas e curar doentes.
No seu processo, depuseram 19 testemunhas. Todos acusaram Luzia de praticar cura, através de receitas de papas e remédios feitos de ervas, raízes e vinho, e de praticar adivinhações em meio de ritual cantado e dançando. Para tanto, vestia-se à moda de anjo. Usava fita larga na cabeça e trazia um alfanje na mão. As pessoas cercavam-na, enquanto os atabaques eram tocados. Dançando, vinham-lhe “os ventos de adivinhar” e o dom de curar os “defeitos”. Saltando como uma cabra, Luzia fazia trejeitos, bramidos e algazarras. Uma das testemunhas informou que a preta forra praticava essas danças com cascáveis enroladas nas pernas e invocando o demônio (Fernandes, p.151).[6]
Luzia se dizia cristã, tendo sido, inclusive, batizada. Negou que invocada demônios e informou que fazia tudo como obra de Deus. Luzia foi condenada por ter se afastado da fé católica e ter feito pacto com o demônio. Sua pena foi o degredo de quatro anos para Castro Marim e proibição de voltar para Sabará, sua sentença foi lida no auto-de-fé datado de 18.06.1741.
Portanto, não foram poucas as moradoras do Brasil, especialmente das Minas, que foram denunciadas por bruxaria. A mesma situação é percebida quando se estuda as sentenças de mulheres acusadas de feitiçaria na França. Os estudos de lá mostram que eram consideradas bruxas mulheres que tinham poderes sobrenaturais contra homens e contra animais. Elas podiam exercer a feitiçaria por meio de palavras, contato, pó diabólico ou a simples vontade[7]. Em outras palavras, eram consideradas seres perigosos, ameaçadoras, mas, sobretudo, ameaçavam a ordem posta, o catolicismo. Eram consideradas heréticas e heresia foi o crime mais perseguido pelo Santo Ofício, além de ser considerado o mais grave do período.
Nos processos inquisitoriais franceses, se a culpabilidade não fosse claramente demonstrada previamente, o processo poderia se extinguir por meio do pagamento de uma multa. O processo inquisitorial só começava com a culpa formada. Foi o que ocorreu com a francesa Margot de Bliaugies, que no século XIV, preferiu pagar uma multa alta para se livrar da acusação de bruxaria. Ela foi acusada de feitiçaria por uma médica, que praticava medicina itinerária e que estava visitando sua região, Valenciennes, quando foi impedida por Margot de prestar socorro a um homem que estava morrendo. Sem os cuidados médicos ele certamente morreria. Segundo a acusação, Margot teria enfeitiçado o homem e por isso mesmo ele estaria à beira da morte.
O que Chaterine Pavot, que estudou o caso de Margot, questiona é:
Mas poderia ser que Margot tentava curar esse doente usando de magia? Porque magia e medicina coexistem. Os estudos regionais da medicina na Idade Média perceberam que era recorrente o recurso à magia medicinal paralelamente ao exercício da medicina oficial. E a pesquisa de causas sobrenaturais nas doenças às vezes conduzia os mais próximos do doente a recorrer aos poderes dos bruxos. [8]
Não se sabe se ela pretendia curar ou adoecer o homem em questão. Assim como não se sabe o que pretendia Luzia Pinta e todas as acusadas de bruxaria em Minas. Aliás, o termo grego pharmakon é bem útil para se pensar a feitiçaria. A mesma palavra no grego pode significar medicamento e veneno, bem como encantamento.[9] O pharmakos pode ser traduzido por bruxo. As bruxas podem, portanto, tanto curar quanto envenenar por meio de encantamentos. Possuem, sem dúvidas, um saber-poder ameaçador. Não era esperado ou pelo menos admitido que as mulheres possuíssem tais mistérios. Para a mentalidade da época, elas deveriam estar em casa, serem recatadas e do lar. Mas estavam saindo fora do combinado socialmente, estavam, é o que diz as acusações, arrastando homens pela estrada, impedindo de curar ou curando-nunca se sabe; estavam rezando a deuses não autorizados para num contexto ideológico totalitário. Estavam oferecendo algo que a religião oficial não supria, tratavam com mistérios que cuidavam das aflições de seus tempos e que, muito provavelmente, a medicina não dava conta.
A bruxaria se impõe como uma explicação possível para as aflições do tempo. Nós recorremos aos feiticeiros e feiticeiras para lançar o feitiço. Mais que a prática de malefícios, é a ignorância, o medo e as angústias das populações que permitem explicar os primeiros processos de bruxaria conhecidos na região de Valenciennes. [10]
O crime dessas mulheres era ter saído do esperado, do estabelecido pela sociedade naquele período histórico, foram desobedientes. Tal qual Eva, Pandora, Antígona e tantas outras. Nesse sentido, portanto, não é difícil imaginar que seremos sempre acusadas de alguma feitiçaria, seremos, para uma sociedade machista, sempre bruxas e não há direito mais digno, nesse contexto, que o de desobedecer, o de ser feiticeira.
Notas e referências:
FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000.
PAVOT, Catherine. procès précoces de sorcellerie dans la Prévôté-lecomte de valenciennes (1350-1378). Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-du-nord-2005-4-page-753.htm>
ISIDRO PEREIRA, SJ. Dicionário Grego-português. Livraria Apostolado da Imprensa. Porto, Portugal.
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Minas sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do Promotor na Inquisição de Lsiboa (século XVIII). In: Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p.239-254
SOARES, Evânia França. Mulher, judaísmo e inquisição nas Minas- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
[1] SOARES, Evânia França. Mulher, judaísmo e inquisição nas Minas- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
[2] SOARES, Evânia França. Mulher, judaísmo e inquisição nas Minas- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
[3] RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Minas sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do Promotor na Inquisição de Lsiboa (século XVIII). In: Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p.239-254
[4] RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Minas sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do Promotor na Inquisição de Lsiboa (século XVIII). In: Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p.239-254
[5] SOARES, Evânia França. Mulher, judaísmo e inquisição nas Minas- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
[6] FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000.
[7] PAVOT, Catherine. procès précoces de sorcellerie dans la Prévôté-lecomte de valenciennes (1350-1378). Association Revue du Nord | « Revue du Nord »2005/4 n° 362 | pages 753 à 761 ISSN 0035-2624 Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-du-nord-2005-4-page-753.htm>
[8] Mais peut-être que Margot tentait simplement de soigner ce malade en usant de magie ? Car magie et médecine coexistent. Les études régionales sur la médecine au Moyen Âge rendent compte du recours courant à la magie médicale parallèlement à l’exercice de la médecine officielle. Et la recherche de causes surnaturelles aux maladies conduit parfois l’entourage du malade à avoir recours au pouvoir des sorciers. Tradução nossa.
[9] ISIDRO PEREIRA, SJ. Dicionário Grego-português. Livraria Apostolado da Imprensa. Porto, Portugal.
[10] La sorcellerie s’impose comme une explication possible aux malheurs du temps. On tente de confondre les sorciers et sorcières pour conjurer le sort. Plus que la pratique de maléfices, ce sont donc l’ignorance, la peur et le désarroi des populations qui permettent d’expliquer les premiers procès de sorcellerie connus dans le Valenciennois.
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