Serão os juristas como os gatos de Fialho de Almeida?

04/02/2015

Por Andréia Ferreira Bispo - 04-02-2015

Eu não tinha a menor ideia de quem era Fialho de Almeida. Pensei que era um livro sobre criar gatos e como foi escrito em 1.889 e prezo o laborioso conhecimento adquirido naqueles tempos em que se filosofava sobre botas, formigas e cadeiras de balanço, acreditei que ali poderia estar o segredo de como fazer a minha bichana Totó entender quem manda aqui em casa.

Percebi meu engano e a excelência da obra nas primeiras páginas.

Inspirado em "As Farpas", de Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, médico de formação e jornalista por opção, aceitou o convite do editor Alcino Aranha para publicar folhetins nos quais ele falaria sobre a quantas ia Portugal.

Ao fazer esse "Inquérito da Vida Portuguesa", Fialho inicia "Os Gatos" com um texto no qual usa a metáfora de que os homens podem ser equiparados a três espécies de animais – a saber: "o asno, o cão e o gato, isto é: o animal de trabalho; o animal de ataque e o animal de humor e fantasia" – para justificar o título.

Após descrever o comportamento dos bichanos, termina lançando um desafio e dando um aviso: nos hebdomadários seguintes o que se poderia esperar é que ele seria  "artista até ao requinte, sarcástico até à tortura. Para os amigos, bom rapaz, desconfiado para os indiferentes e terrível com agressores e adversários".

E é essa linha do realismo/naturalismo lusitano, deliciosamente divertida em sua crueza, que marca todos os folhetins publicados nos cinco anos subsequentes, os quais posteriormente foram reunidos no formato de livro.

Em 10 de junho de 1890, Fialho fez o relato da sessão da Câmara dos Deputados daquele dia. Tendo tomado assento nas galerias, de onde, segundo ele, era possível observar "a mancha ondeante das cabeças, os burburinhos de entrada e de saída e, finalmente, o investir do primeiro bicho", ele descreveu suas impressões de expectador "não com intuito de mera galhofa", alerta ele, "mas por julgar que a caricatura auxilia um pouco a visionar a psicologia interior do parlamento".

Daquele ponto é que ele apresenta ao leitor "o crânio calvo do dr. Raposas, muito estreito nas têmporas, dilatado no occipital e que visto do alto é tal e qual um urinol de cautechouc. Belo cabouco de homem – e que pena não ter miolos dentro! – que um destino industrial lhe dava eu: pois serrado ao meio, esse crânio, com o feitio que tem, fazia dois bidês" e a "cara de limão sem sumo e não obstante espremido", do Deputado Alberto Pimentel.

Fialho não se restringiu à caricatura dos deputados. Nos comentários aos discursos feitos da tribuna, o autor registra seu ceticismo com o futuro de Portugal, pois no seu sentir o sistema "hereditário" de ocupação de cargos públicos, a privilegiar o interesse daqueles que tinham na Câmara de São Bento seus lugares cativos, espoliava os recursos do país e acabaria por lançar a todos na sarjeta.

Assim, se a crítica ao discurso do Deputado Elmano da Cunha, que pretendia intervir no tamanho dos decotes das atrizes de teatro, é feita num tom de zombaria quase carinhosa, o discurso do deputado Guerra Junqueira, única voz no parlamento a assumir a tribuna para escancarar os meandros das licitações fraudulentas, mereceu de Fialho, mais que respeitosas considerações, verdadeira defesa contra a câmara, "que dificilmente suporta o peso de uma individualidade sobrelevante ao mediocrismo fluente de que se fez escola e capitólio".

Em outros panfletos, retornando ao tema da ineficácia do sistema político-administrativo, Fialho abordou a venda do patrimônio público e a instituição de monopólios, medidas que continuariam sendo adotadas pelo governo, segundo ele, "até haver dilatado o estômago do seu último compadre".

E porque, como bom gato, estava usando a garra e a língua espinhosa para contar aos seus leitores, cada vez mais numerosos, suas percepções sobre a família real, escancarando que seus membros não tinham nada de extraordinário a distingui-los dos demais mortais, recebeu do rei Luís I um recado: "qual a maneira de arreatar" tamanho "jacobinismo?"

Na resposta, publicada no panfleto de 17 de julho de 1889, Fialho faz ao rei um pedido inusitado: que concedesse a um seu criado – um "mariola" que o roubava nas compras, vestia-lhe as camisas e lhe bebia do "Porto reservado aos jantares de anos" – um título nobiliárquico.

Ao lado disso, Fialho defendeu o direito do homem de cometer suicídio, criticou a importação de medicamentos estrangeiros sem qualquer controle de qualidade e eficácia, o consumismo, a desvalorização do modo de vida tradicional face à adoção de costumes alienígenas, a ausência de seriedade nos concursos públicos, o sistema de ensino do Liceu de Lisboa, no qual revela ter estudado, entre outras coisas.

Indiferente às "malquerenças" que fatalmente lhe seriam devotadas, que de resto já eram muitas, Fialho censurou a relação que o homem estabeleceu com os cães.

Trata-se de uma fotografia irônica, sem pretensão de ser uma investigação psicológica ou social, da "pieguice que nos faz vítimas do cão", esse ser que se fez, "no lar, pessoa íntima" que acompanha a "dama da pia batismal ao cemitério" e a quem não é possível extirpar do nosso meio, "dado o poderio das suas protetoras".

Depois de ler esse texto, estou convicta de que Deleuze, que também falou sobre esses animais no seu abecedário, não foi nem de longe tão acre em sua crítica, o que se justifica quando se cuida de incômodos tão distintos, como o são os latidos e a hidrofobia.

O que Os Gatos tem a ver com direito?

Para quem gosta de traçar paralelos entre os costumes de ontem e de hoje, de descobrir o germe de algumas normas, de investigar se a Administração Pública evoluiu em alguma coisa ou de fazer adequação de fatos a normas penais, "Os Gatos" oferece um rico material.

Em mim, o imprevisto das metáforas, a ironia para com as megalomanias e os movimentos inúteis, despertou uma desconfiança: se os juristas são gatos, não posso afirmar, mas que muitos se parecem com eles, lá isso parecem.

Fico eu aqui, lambendo minhas patinhas, enquanto penso no assunto...

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Andréia Ferreira Bispo é Juíza de Direito no Pará e membro da AJD.

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