Por José de Assis Santiago Neto - 20/05/2015
O inquisitorial Código de Processo Penal Brasileiro completou no dia 3 de outubro de 2011, 70 anos, devendo, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[1], ser aposentado compulsoriamente ou executado por crime de lesa-cidadania, sofreu, ao longo de sua vigência inúmeras reformas pontuais, nenhuma delas capaz de afastar-lhe a inquisitoriedade e o autoritarismo. Somente uma reforma integral, de cabo à rabo, será capaz de alterar o sistema inquisitório adotado pelo Código Processual Penal pátrio, reformas pontuais apenas têm o condão de transformá-lo em uma colcha de retalhos e não conseguem retirar suas marcas autoritárias, gravadas em seus genes por seus antepassados, Getulio Vargas, Francisco Campos, como seus pais e seus avós Rocco´s, Manzini, Mussolini e companhia limitada.
De lá pra cá já se vão mais de 70 anos, quase 25 deles sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil, que tem como pretensão constituir nosso País como um Estado Democrático de Direito.
Visando adequar o sistema das prisões processuais às disposições constitucionais às exigências Constitucionais, bem como a sistematizar novamente as prisões processuais que, em razão de várias reformas casuístas, principalmente as realizadas pela Lei 6.416/1977, transformaram-se em um modelo completamente incoerente e sem qualquer organização, foi publicada, no dia 04 de maio de 2011 a Lei 12.343, que “altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências”. Tendo seu art. 4º disposto expressamente pela revogação do art. 393 do Código de Processo Penal, único dispositivo que previa a inserção do nome do réu no rol dos culpados.
Com a vigência da Lei 12.403/2011, muito se discutiu sobre a nova regulamentação do regime de prisões processuais, sem dúvida o grande escopo da referida lei foi o de dar contornos constitucionais e regulamentar as medidas cautelares no Processo Penal Brasileiro. Contudo, pouco se vê comentar sobre o art. 4º da referida Lei, que, expressamente revogou o inconstitucional art. 393 do Código de Processo Penal. Pois bem, são os efeitos dessa revogação que passaremos a estudar nas próximas linhas, que não têm o escopo de exaurir o tema, mas apenas de lançar mão das sementes iniciais para a discussão do tema da (in)possibilidade de se lançar o nome do réu no chamado rol dos culpados, sobretudo após a revogação do referido art. 393 do Código processual pátrio.
Em sua redação original, o art. 393 dispunha que: “São efeitos da sentença condenatória recorrível: I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis, enquanto não prestar fiança. II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados”.
O inciso primeiro do art. 393 nitidamente não foi recepcionado pela Constituição de 1988, porém, não adentraremos no referido inciso por fugir ao objeto do presente ensaio. Por sua vez o segundo inciso vinha tendo interpretação à luz do princípio da presunção de não culpabilidade para que o nome do réu somente fosse inserido no rol dos culpados após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória
Com a revogação do finado (e já foi tarde!) do art. 393 do Código de Processo Penal, não mais existe qualquer referência no Código da existência do rol dos culpados. E nem se diga que a inclusão poderá ser feita após o trânsito em julgado, o rol não existe mais! Não há mais previsão legal para a existência do rol, que, foi morto e enterrado, segundo certidão de óbito datada do dia 04 de maio de 2011. Também não se pode dizer que o rol pode ser (re)estabelecido por lei estadual, em razão do princípio da reserva legal, a Constituição reservou à legislação de matéria penal e processual penal à competência exclusiva da União, ou seja, apenas o Congresso Nacional poderá editar normas de natureza criminal.
Demorou quase 23 anos para o malfadado rol ser excluído da legislação brasileira, contudo, pensamos que desde 5 de outubro de 1988 já não havia mais espaço para sua existência. Em um Estado Democrático de Direito, que possui como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III, CR/88, respectivamente); que tem por objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a marginalização promover o bem de todos sem preconceitos e livre de qualquer forma de discriminação; e que tem como direitos fundamentais a igualdade entre os seres humanos, não pode manter um rol no qual sejam incluídos os nomes daqueles condenados criminalmente, um rol de cidadãos considerados como menos humanos por terem sido condenados por sentença penal condenatória. Portanto, já passou da hora a extinção do rol, e nem era necessário a revogação do finado art. 393 do Código de Processo Penal, bastava ler a lei infraconstitucional à luz da Constituição, mas a revogação veio para que a mesma certeza atingisse também àqueles que insistem em interpretar a Constituição à escuridão do Código de Processo Penal.
A prisão por si só já cumpre papel de etiquetamento, ou, nas palavras de Zaffaroni “cada um de nós se torna aquilo que os outros vêem [sic] em nós e, de acordo com esta mecânica, a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinquente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo. Todo aparato do sistema penal está preparado para essa rotulação e para o reforço desses papeis”.[2] Baratta complementa dizendo que o etiquetamento pelo status de deliquente demanda seu reconhecimento como tal pelas instâncias oficiais de controle social da delinquência[3], portanto, somente recebem o rótulo aqueles que assim são reconhecidos pela instâncias formais de controle penal. O rol dos culpados apenas reforça a rotulação dos indivíduos, colocando-lhes “etiquetas” de delinquentes através da manutenção de um cadastro daqueles que foram condenados pela violação do direito penal e dando-lhes a marca de “criminosos”.
Não estamos afirmando que o Estado não deva manter cadastros organizados daqueles que foram condenados e cumprem pena. Nem mesmo afirmamos que não deva existir cadastros de condenados para fins de reincidência (art. 63 do Código Penal Brasileiro). Apenas estamos a afirmar que não se pode, no atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, separar os indivíduos em um rol daqueles que foram considerados culpados, como se estes fossem menos cidadãos que os demais indivíduos. Ademais, qualquer cadastro deveria existir apenas até o cumprimento da pena, já que a reincidência não sobrevive à uma análise constitucional por configurar um agravamento da pena privativa de liberdade por motivo pelo qual o indivíduo já foi punido e, normalmente, já cumpriu a reprimenda, constituindo notavelmente bis in idem. Ainda que a considerando a reincidência, os cadastros não deveriam existir por mais tempo que os 5 anos caracterizadores da reincidência, após os quais deveriam ser excluídos de ofício pelo próprio Estado. Porém, falar em atos ex officio no sistema inquisitório brasileiro é falar apenas em atos que demandem a limitação da liberdade, com raríssimas exceções.
Conclui-se, portanto, que o rol dos culpados não pode existir em um estado que se pretenda democrático de direito. Seja por violação aos fundamentos da República Federativa do Brasil, seja por contrariar seus objetivos fundamentais ou por rasgar os direitos e garantias fundamentais. Também não subsiste o rol por absoluta falta de previsão legal, sobretudo após a revogação do art. 393 do Código de Processo Penal. Somente quando tratarmos todos seres humanos, sem qualquer exceção, de forma igual como determina a Constituição Cidadã, poderemos falar em democracia em terras tupiniquins.
Notas e Referências:
[1] COUTINHO, Jacinto. O HC no Sistema Processual Penal Brasileiro Hoje (o problema da substituição processual). Artigo que nos foi gentilmente encaminhado por correspondência eletrônica datada do dia 01 de agosto de 2012.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em Busca das Penas Perdidas. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 60.
[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 86.
José de Assis Santiago Neto é Mestre e Doutorando em Direito Processual pela PUC/MG, Professor de Direito Penal e Processual Penal da PUC/MG (Campus Betim), Advogado Criminalista – sócio da Santiago & Associados Advocacia, Diretor do Instituto de Ciências Penais (ICP), Coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Minas Gerais.
Imagem Ilustrativa do Post: Kaserne Krampnitz Hall // Foto de: [AndreasS] // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/norue/4503639114/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode