Será possível sonhar em não ser apenas um consumidor?

30/03/2018

Uma das primeiras - talvez uma das mais contundentes - lições que se aprende quando se tem contato com “Vida para consumo”, de Zygmunt Bauman, pode ser resumida na seguinte frase: todos devem ser consumidores. O autor parte dessa premissa: de que, em uma sociedade como a vigente – a “Sociedade de Consumidores” – todos devem (ou são direcionados a) desejar viver como consumidores, compreendendo o consumo como vocação e o “consumir” como a realização de um sonho.

Trata-se de uma perspectiva desoladora, mas aparentemente não distante do que se vislumbra desde o advento da Sociedade de Consumo. No desvelar de suas características[1], é factível afirmar que o consumismo imantou à palavra sonho o complemento “de consumo”, relacionando, não raramente, nossos desejos e aspirações a bens e serviços veiculados em anúncios publicitários.

Como bem delineou Baudrillard: 

Se os sonhos de nossas noites são sem legendas, aquele que vivemos despertos pelos muros de nossas cidades, pelos jornais, pelas telas de cinema é coberto de legendas, é subtitulado de todos os lados, mas tanto um como o outro associam a fabulação mais viva às determinações mais pobres e, assim como os sonhos noturnos têm por função preservar o sono, os prestígios da publicidade e do consumo têm por função favorecer a absorção espontânea dos valores sociais ambientes e a regressão individual no consenso social (BAUDRILLARD, 2006, p.182). 

Em outras palavras - talvez mais drásticas mas não menos verossímeis: trata-se de uma Sociedade que aprisionou desejos e sonhos em vontades ligadas ao consumo. Nesse contexto, a felicidade e a satisfação encontram-se atreladas à aquisição de bens ou à fruição de serviços. Paradoxalmente, até mesmo a liberdade costuma ser tema de anúncios publicitários, condicionando implicitamente - ou não - o “ser livre” ao consumo.

A manutenção deste sujeito de direito vigente estrutura o sonho de liberdade e igualdade na concepção do sonho consumista. A tensão entre sujeito/mercado de consumo é reduzida ao direito do consumidor tornando-a inexistente para a tomada de uma mudança social, há muito mais em jogo quando se fala de consumo (ACOSTA, 2017, p. 261). O humano é mais do que sua relação com as mercadorias, entretanto está preso no sonho delas. Neste sonho vê o direito como mercadoria, torna-se um consumidor do direito.

Dia após dia, mensagens são direcionadas a cada um de nós, veiculando promessas de que produtos e serviços são capazes de transformar sonhos em realidades[2]. Engendra-se ambiência na qual se observam sonhos condicionados e imaginários colonizados por um estilo de vida que pode ser definido como “consumista”.

Mas este “simples” conceito consumista não consegue captar a profundidade de si mesmo. E o consigue ao operar o - ludibrio do sentido realizado pelo Espetáculo; nada mais que um canto épico do dançar das mercadorias e suas paixões (DEBORD, 1997, p. 44). No baile das mercadorias somos servos que dançam essa música. Não somos capazes de perceber que da acumulação nasce a opulência e a doença do corpo social. O sonho de viver em viver em harmonia com o planeta, por exemplo, torna-se impensável.  

Imersos neste cenário - no qual as perspectivas e possibilidades aparentam sempre partir do ponto de vista de uma sociedade moldada para ser uma “sociedade de consumidores” - a libertação de tal lógica assemelha-se a aspiração próxima de um sonho muito distante. De um sonho dos sonhos. Um sonho fora desse falso sonhar.

Parece, em certa medida, um absurdo. E talvez seja.

Talvez seja sonhar o sonhar..

Um sonho que não nos imobilize no espetáculo delirante da vida consumista – apresentada diuturnamente como vida, pura e simples, sem qualificação – e que, eventualmente, seja capaz de fazer despertar para possibilidades que se encontram fora da Sociedade de Consumo, aproxima-se do sonho vivenciado a partir da perspectiva surrealista.

O sonho, na ótica do surrealismo, revela-se livre, contrapondo-se ao sonho submisso da mentalidade dominante, ou, na Sociedade de Consumo, a sonhos e desejos que se confundem com bens e serviços oferecidos em anúncios publicitários. 

O sonho (como poesia encantada) é um espaço de criatividade sem censuras: gestos, imagens, desejos sem vigias nem tiranias. É um modo de expressão-vacinada contra o poder e os poderosos, contra a teia de aranha que forma, em um vendaval de imposições, medos e dependências, o homem resignado (WARAT, 1988, p.15). 

Para o surrealista, o absurdo - assim entendido o “buraco” no qual o racionalismo dominante enclausurou todas as formas de expressão que não se adequam à sua lógica - é uma forma de protesto, por meio do qual se propugna múltiplas compreensões do mundo. Uma porta de saída da unidimensionalidade vigente. “Uma manobra”, continua Warat, “para tentar corroer o monopólio de uma razão que propaga a submissão: saberes feitos de lugares comuns e falsos tesouros com os quais, por esquecimento de nossa singularidade, naturalmente concordamos” (WARAT, 1988, p.14).

Um ponto no qual se vê menos a autonomia distorcida da Sociedade de Consumo[3] e mais a aproximação de nossa própria singularidade, do “[...] homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados” (WARAT, 1988, p.18).

Cumpre referir que, recentemente, a busca por uma porta de saída da Sociedade de Consumo foi abordada na obra do economista e filósofo francês Serge Latouche. Em “Sair da Sociedade de Consumo”, Latouche, externando pessimismo quanto ao porvir[4], afirma, como premissa necessária para a superação do estilo de vida pautado pelo consumismo, a necessidade de descolonização do imaginário. Em outras palavras: pensar em alternativas seria, sob a ótica de Latouche, pensar “fora” da Sociedade de Consumo e da lógica que a permeia. Pensar, talvez seja possível dizer, em um mundo sem consumidores, liberto da escravidão publicitária, em um cenário que possibilite redescobrir valores que não são quantificáveis pelos fabricantes de necessidades (LATOUCHE, 2012, tradução nossa).

Propõe, portanto, uma ruptura, que demanda a descolonização do imaginário para que se chegue à criação de uma sociedade liberta.

É muito difícil não perceber, na abordagem de Latouche, pontos de contato com o sonho surrealista, que compreenderia: 

[...] a revolução pela autonomia da arte. A revolução pelo sonho transformado em atos pedagógicos que incitam micro-revoluções. Assim, a revolução surrealista encara o sonho como possibilidade de descolonizar a imaginação. Por aí passa a procura de uma declaração surrealista dos direitos do homem: a declaração universal dos direitos do desejo, do direito à criatividade, do direito de sonhar (WARAT, 1988, p.15) 

Partindo-se da premissa de que existente íntima relação entre sonho, imaginação autonomia, e democracia, a qual, nessa perspectiva, compreende  “o direito de sonhar o que se quer”,  a imaginação pressupõe que desloquemos nossa mentalidade do sistema instituído (WARAT, 1988,  p.18) - o que se aproxima do propugnado por Latouche. Imaginação que abra espaço, por exemplo, ao direito de sonhar com um Direito que não se revele, por vezes - ainda que inadvertidamente - tão enclausurado na lógica do consumo. Que seja capaz de evitar, por exemplo, a edição de Súmulas como a de n° 381 do STJ, que ponha em xeque a legalidade da publicidade infantil, que, em tantas outras pautas merecedoras de atenção[5], evidencie-se menos imerso na Sociedade de Consumo.

Trata-se de um sonho, mas não o sonho hedonista e limitado às alternativas disponibilizadas em uma Sociedade de Consumidores; refere-se, sim, a um sonho liberto, com amplas perspectivas, como apresenta-se o sonho na perspectiva surrealista.

Ter ousadia é sair porta-afora do salão, durante o sonho do baile das mercadorias.

“Ousar é um privilégio dos que têm coragem” (WARAT, 1988, p.17). 

 

REFERÊNCIAS: 

ACOSTA JÚNIOR. Jorge Alberto de Macedo. Para uma sociologia jurídica crítica do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 113, p. 251-269, set./out.2017.  

BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009. 

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 

LATOUCHE, Serge. Salir de la sociedade de consumo: voces y vías del decrecimiento. Trad. Magalí Sirera Manchado. Barcelona: Octaedro, 2012. 

CATALAN, Marcos. Um sucinto inventário de 25 anos de vigência do Código de defesa do consumidor no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, v.103, p.23-53, jan./fev.2016. 

LIPOVETISKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a. 

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 

WARAT, Luís Alberto. Manifesto do surrealismo jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

 

[1] Bem delineadas por Gilles Lipovetsky em “A felicidade paradoxal” (2007).

[2] Toscani, de forma irônica, ressalta: “Na verdade, você não compra, é o produto que atende às suas expectativas. O dinheiro gasto torna-se mera formalidade, pois de qualquer modo ‘você’ vinha sonhando com isso” (1996, p.36).

[3]  Para Barber, “na cultura patológica da economia de consumo [...] o consumidor imediatamente tanto absorve o mundo, bens e coisas impostos a ele, e portanto o conquista, quanto é definido - via marcas, nomes de produtos e identidade de consumidor - por esse mundo. [...] Ele proclama sua liberdade mesmo trancado na gaiola dos desejos particulares e da libido desenfreada [...] deixando de ser uma pessoa autodefinida para ser uma marca definida pelo mercado [...]” (2009, p.46-47). 

[4] Latouche compreende que o “totalitarismo produtivista, que não mede consequências na busca pelo crescimento e que ignora os danos irreparáveis previstos para um futuro próximo, levará o planeta, em pouco tempo, ao colapso ambiental (2012, tradução nossa). 

[5] Marcos Catalan menciona situações nas quais é possível perceber, no Brasil, retrocessos no que pertine à aplicação do Direito do Consumidor, referindo decisões e ensaios que se mostram alheadas do conteúdo protetivo do Código de Defesa do Consumidor (2016).

 

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