Ser o que se é: (im)possíveis contribuições da Psicologia ao Direito

04/05/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 04/05/2015

Se eu calei foi de tristeza. Você cala por calar Mas calado vai ficando; só fala quando eu mandar Rebuscando a consciência com medo de viajar

até o meio da cabeça do cometa

girando na carrapeta no jogo de improvisar Entrecortando eu sigo dentro a linha reta Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar

(Avohai. Zé Ramalho)

A partir do texto da lei “Maria da Penha”, o trabalho do psicólogo parece fundamental para que o operador do Direito possa tratar da matéria “violência doméstica”. Isto porque a própria definição do que ela seja inclui, pelo menos em parte, a necessidade de se julgar aspectos psíquicos[1]. Poder-se-ia pensar que, então, quando solicitado, o trabalho do psicólogo nos casos tratados pelas Varas de Violência Doméstica restringir-se-ia ao posicionamento técnico quanto aos aspectos psicológicos envoltos no ato julgado.

Porém, ainda que isto seja possível e cabível, não é o que deste profissional tem sido esperado. Assim como nos casos julgados pelas Varas Criminais em que as vítimas são crianças ou adolescentes, tem-se esperado que o psicólogo faça o trabalho da Polícia Judiciária (vide fundamentações de indiciamentos restritas a passagens do relatório produzido pela psicóloga a partir da escuta da criança/adolescente – ou seja: relatórios reduzidos à palavra da vítima) e mesmo do Ministério Público Poder Judiciário (vide denúncias, condenações e absolvições fundamentadas no relatório referido ou no testemunho do psicólogo sobre o atendimento prestado).

Neste texto, procurar-se-á delimitar como e por quem a colaboração da psicologia poderia ser solicitada, considerando seus limites. Partir-se-á das normativas provindas do Conselho Federal de Psicologia, entendendo que, se há algum órgão de classe que melhor pode dizer o que é da ordem do psíquico, é este. E se iniciará por aquilo que a psicologia não pode oferecer: substituir os operadores do direito nas oitivas de vítimas e testemunhas. Ela não aceita procurações para realizar o trabalho de delegado, advogado, promotor e/ou magistrado: inquirir e apurar “verdade” dos fatos.

Por meio da resolução do CFP Nº 010/2010 (que instituía a regulamentação da escuta psicológica de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência, na rede de proteção), procurou-se justamente diferenciar inquirição judicial, diálogo informal e investigação policial, conforme já sinalizado em suas considerações iniciais. Porém, tal normativa foi suspensa com um argumento que não deixa de ser mais uma demonstração da pan-judicialização: o do vício formal. Em outros termos, o de que só uma lei poderia tratar da matéria.

“o ato normativo editado vem sendo questionado judicialmente em vários Estados, por supostamente haver um vício formal, ou seja, somente lei poderia prever tal limitação.

Assim, no Estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal bem como o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ajuizaram Ação Civil Pública nº 2012.51.01.008692-4, em tramitação na 28ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro em desfavor da regulamentação em debate. O juízo da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, e, portanto, a Resolução CFP nº 010/10 encontra-se suspensa em todo o território nacional

Noutro momento, no Estado do Ceará, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contrária ao Conselho Federal de Psicologia e ao Conselho Federal de Assistência Social a fim de suspender, respectivamente, a Resolução CFP nº 010/10 e a Resolução CFESS nº 554/2009 em todo território nacional. Razão pela qual, o juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, após manifestação e defesa do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal de Serviço Social acerca da validade dos atos normativos questionados, julgou procedente a ação civil pública e determinou a suspensão das resoluções em todo o território nacional, bem como a abstenção dos conselhos de fiscalização de aplicar penalidades éticas aos profissionais que atuam na escuta psicológica da criança e do adolescente

Significativamente interessante é o raciocínio de que, para tratar da prática profissional de determinada profissão (psicologia), representantes de uma outra (operadores do Direito) seriam os mais habilitados. Mais interessante o é relacionar tal fato à incapacidade alegada pelos mesmos operadores em executar a sua função: oitiva de vítimas, testemunhas e autores, independente da condição dos mesmos.

Em continuidade, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 33 (de 23 de novembro do mesmo ano), “recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento Especial” (grifo do original). Sobre o texto, algumas observações:

  • Uma confusão entre “direito” e “dever”, posto que em suas considerações iniciais fala-se dos direitos, mas o objetivo de tal normativa não inclui a preservação do direito da criança/adolescente não se manifestar perante o Sistema Judicial, bem como a possibilidade de por ele serem sequer ouvidos[2];
  • Uma confusão entre “escuta por equipe interprofissional” e ‘inquirição por equipe interprofissional”;
  • Uma expectativa de que uma inquirição, ainda que feita por profissional especializado, apreenda dinâmicas familiares, incluindo alienação parental;
  • Uma “auto-autorização” de dizer sobre a melhor fundamentação teórico-metodológica a ser usada por profissionais de outras áreas que executarão o “depoimento especial” (no caso, a entrevista cognitiva).

O texto é matreiro, posto não explicitar que tal “depoimento especial” seria tomado por um psicólogo. Porém, sabe-se que é a ele que via de regra se recorre, ao lado das assistentes sociais. Daí a pertinência de se apresentar argumentos provindos da psicologia para questionar a pertinência desta normativa, bem como apontar as funções nela ocultas.

Além disto, partindo do princípio de que o instrumental jurídico não pode entender psicologicamente a violência, e pressupondo que o psicólogo seja chamado do lugar de psicólogo[3], também se pode autorizar a dizer do estatuto do auxílio que a psicologia pode dar ao direito.

SCHAEFER, ROSSETTO e KRISTENSEN (2012, p.231), em uma obra que aborda especificamente do abuso sexual de crianças e adolescentes (via de regra de competência das Varas de Violência Doméstica), explicam: “o depoimento da criança em juízo (prova testemunhal) e a perícia psicológica (prova material/pericial)[4] não são procedimentos equivalentes, visto que possuem peculiaridades próprias e ocorrem em momentos distintos”.

A Psicologia prima pela alteridade e não pela especularidade. Daí pensar que auxiliar não é o mesmo que substituir, e muito menos que ser substituído (o que seria o caso de uma servidão, na qual o “Senhor Direito” apresentar-se-ia sedutoramente necessitado dos serviços da Psicologia, mas justamente para se apropriar de um saber que é dela ao seu bel-prazer).

A perícia psicológica parece ser a melhor forma da Psicologia auxiliar o Direito, de modo ético e técnico. Os mesmos autores acima referidos, na mesma obra, dizem por exemplo: “Apesar de não existirem instrumentos específicos e indicadores precisos para a constatação do abuso sexual, a perícia psicológica é uma das maneiras de acessar o histórico do examinando e sua sintomatologia, descartando outras ocorrências que possam ter desencadeado o quadro sintomático avaliado” (SCHAEFER; ROSSETTO; KRISTENSEN, 2012, p.231).

Sobre perícia psicológica, pode-se mencionar a resolução do CFP Nº 008/2010, que dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário, e a resolução do CFP nº 017/2012, que dispõe sobre a atuação do psicólogo como Perito nos diversos contextos. A partir dos documentos provindos do órgão de classe da psicologia, a primeira observação a ser pontuada é a respeito dos instrumentos utilizados, porque algumas avaliações psicológicas são desconsideradas pelos operadores do Direito simplesmente pela legitimidade que atribuem ou não aos instrumentos utilizados.

Muito comumente operadores do Direito alegam que os testes são necessários, porque supostamente seriam os únicos instrumentos científicos, e, indiretamente, porque o modelo de ciência moderna seria o melhor para as ciências humanas. Interessante é, mais uma vez, uma área de conhecimento julgar o que é legítimo ou não a outra área de conhecimento.

Evidentemente tal discussão sobre instrumentos válidos de avaliação psicológica poderia ser longa. Porém, nesta publicação que tem como público alvo os operadores do Direito, cabe apenas lembrar que no Art. 3º da última resolução é previsto que “Conforme a especificidade de cada situação, o trabalho pericial poderá contemplar observações, entrevistas, visitas domiciliares e institucionais, aplicação de testes psicológicos, utilização de recursos lúdicos e outros instrumentos, métodos e técnicas reconhecidas pela ciência psicológica, garantindo como princípio fundamental o bem-estar de todos os sujeitos envolvidos”. Talvez lhes seja o suficiente e o máximo que possam ler.

Ainda parece pertinente citar e especificar, como possíveis fontes de dados: análise documental dos autos, entrevistas semi-estruturadas com pessoas que aparentemente possuam informações significativas (familiares, vizinhos, amigos/colegas, profissionais – incluindo médicos peritos, professores - no caso de crianças e adolescentes, particularmente), pareceres/relatórios de profissionais (incluindo psicólogos, psiquiatras, médicos peritos e professores), relatórios de Conselhos Tutelares, observação lúdica, desenho livre, observação não-sistemática e também testes.

Outra observação que merece ser feita é de que o cliente no caso de uma perícia é quem a solicitou. No caso, o operador do Direito. Logicamente isto não implica desrespeito ao sujeito que está sendo avaliado e todos que, de alguma forma, são escutados pelo psicólogo. Apenas essa modalidade de relação exige que o próprio contrato com os sujeitos deixe claro o objetivo da avaliação, bem como quem terá acesso ao que será redigido e o tipo de informação que será divulgada.

A este respeito, conforme prevê o Art. 8º, “Em seu parecer, o psicólogo perito apresentará indicativos pertinentes à sua investigação que possam diretamente subsidiar a decisão da Administração Pública, de entidade de natureza privada ou de pessoa natural na solicitação realizada, reconhecendo os limites legais de sua atuação profissional”.

E aqui um adendo: o fato do cliente ser um operador do Direito não implica que se contemplará, na perícia psicológica, questões que são de outra ordem que não a psicológica. “A avaliação psicológica é entendida como o processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que são resultantes da relação do indivíduo com a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estratégias psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos” (Resolução 007/2003, CFP) (grifos meus).

Importante também se faz demarcar que, para além de colaborar com quem requereu a perícia, o psicólogo deve não apenas recusar demandas que contrariem princípios éticos, mas inclusive intervir primordialmente sobre as mesmas quando estas existirem. Nesta direção, é que um dos princípios éticos estabelecidos pela Resolução do CFP N.º 007/2003, que institui o manual de elaboração de documentos escritos produzidos pelo psicólogo decorrentes de avaliação psicológica, é:

“Torna-se imperativo a recusa, sob toda e qualquer condição, do uso dos instrumentos, técnicas psicológicas e da experiência profissional da Psicologia na sustentação de modelos institucionais e ideológicos de perpetuação da segregação aos diferentes modos de subjetivação. Sempre que o trabalho exigir, sugere-se uma intervenção sobre a própria demanda e a construção de um projeto de trabalho que aponte para a reformulação dos condicionantes que provoquem o sofrimento psíquico, a violação dos direitos humanos e a manutenção das estruturas de poder que sustentam condições de dominação e segregação.

Deve-se realizar uma prestação de serviço responsável pela execução de um trabalho de qualidade cujos princípios éticos sustentam o compromisso social da Psicologia. Dessa forma, a demanda, tal como é formulada, deve ser compreendida como efeito de uma situação de grande complexidade”

Neste sentido, deduz-se que, em qualquer contexto em que realize qualquer modalidade de avaliação psicológica, o psicólogo deve não apenas se posicionar, mas também intervir, frente a pedidos anti-éticos. Um deles pode ser, no âmbito judicial, a realização de perícias sem escutar todos os envolvidos (o que talvez seja uma das formas mais maliciosas de se solicitar um documento intitulado “perícia”, mas dele se apropriar como se fosse uma tomada de declaração).

Daí é que, na normativa suspensa já referida (Resolução do CFP Nº 010/2010), dizia-se, no que tange aos marcos referenciais da escuta psicológica de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência, na rede de proteção, que “O psicólogo, ao realizar o estudo psicológico decorrente da Escuta de Crianças e Adolescentes, deverá necessariamente incluir todas as pessoas envolvidas na situação de violência, identificando as condições psicológicas, suas consequências, possíveis intervenções e encaminhamentos” e, mais ainda, que “Na impossibilidade de escuta de uma das partes envolvidas, o psicólogo incluirá em seu parecer os motivos do impedimento e suas possíveis implicações”.

AMENDOLA (2009) fala, neste sentido, da formação e manutenção da aura de suspeição sobre o acusado, bem como da presunção de dolo, camufladas de discurso que apregoa a garantia dos direitos da criança que, em uma denúncia, figura como vítima de crime sexual. A autora explica que uma das decorrências disto é o afastamento de pais e filhos fundamentados em laudos psicológicos que referem unicamente à fala da acusação e da suposta vítima. Laudos que estariam a serviço, acima de tudo, da valorização da presunção e preconceito.

Fundamental também é dizer que a perícia pode ser requisitada pela Autoridade Policial por ocasião do Inquérito, conforme LANDRY (1981), ainda que via de regra seja atribuída exclusivamente à autoridade judicial por ocasião do processo. E, ainda, lembrar que as “provas (que servem para demonstrar a existência dos fatos) são de várias espécies: de natureza oral, documental, pericial e até especial para o Juiz, que é a inspeção judicial” (PELACANI, 2003, p.26) (grifo meu) e que antes “mesmo da realização da perícia, o Juiz poderá dispensá-la, desde que juntados aos autos pareceres técnicos (grifo do autor) ou documentos que julgar suficientes ao entendimento da questão técnica” (PELACANI, 2003, p.48).

Então, é explicitado que o Inquérito Policial pode conter perícias e pode, por isto, substituir a perícia que seria requisitada pelo juiz. Pode-se concluir, portanto, que a perícia psicológica pode não apenas ser realizada na fase policial, como pode contemplar as mesmas questões que seriam levantadas pelo juiz ao psicólogo por ele nomeado perito.

A perícia psicológica na fase policial precisaria ser feita já quando decidido pelo indiciamento, haja vista que, neste momento, não haveria a expectativa de que o psicólogo adivinhasse se e/ou quem mente, contribuísse para que alguém “falasse a verdade”, etc. Expectativas que não chegam a contrariar apenas princípios éticos, mas, antes disso, princípios técnicos [a grade curricular dos cursos de psicologia não possui as disciplinas de leitura de cartas de tarô, búzios, bola de cristal e/ou outros recursos utilizados para previsão de futuro, e os estudantes também não aprendem interrogatório, persuasão, tortura, ameaça ou qualquer modalidade que objetive confissões].

LANDRY (1981), que propõe que a individualização da pena só pode ser alcançada através de um estudo aprofundado e competente da personalidade do sujeito que atuou criminosamente, diz que o mesmo só poderia ser alcançado pelo exame médico-psicológico. É esta individualização da pena (pena fixada por meio de critérios outros que não apenas a proporção em relação à falta cometida), juntamente à responsabilização do “delinquente” (em seus termos), o que LANDRY (1981) entende como fatores imprescindíveis ao tratamento do mesmo.

A individualização da pena é uma das garantias expressa no Código Penal, e sobre tais garantias, em seu sentido geral, tem-se a dizer que no momento talvez mais dramático do conflito social (o da atuação criminosa) todos os agentes do saber jurídico devem ser essencialmente garantidores. No caso, em particular, da postura esperada das autoridades que presidem Inquéritos Policiais, deve-se levar em conta que a diferença entre o Inquérito e a Inquisição é precisamente o fato daquele pressupor a ampla defesa. Um meio de garantir os direitos do indiciado, bem como de permitir sua ampla defesa, parece ser avaliar todos os fatores envolvidos em seu ato; fatores estes, como já discutido, não restritos a questões jurídicas.

Porém, sobre a perícia, ainda cabe lembrar do risco de se “psicologizar” os sujeitos, descontextualizando os eventos avaliados. Sobre isto, dentre os princípios técnicos estabelecidos pela Resolução do CFP N.º 007/2003, que institui o manual de elaboração de documentos escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoga a Resolução CFP Nº 17/2002, encontra-se que: “O processo de avaliação psicológica deve considerar que os objetos deste procedimento (as questões de ordem psicológica) têm determinações históricas, sociais, econômicas e políticas, sendo as mesmas elementos constitutivos no processo de subjetivação”. Ou seja: diagnóstico não é necessariamente (e nunca é apenas) nominar sofrimentos. Não se reduz à listagem de transtornos. Daí também que projeto terapêutico (Varas da Infância e Juventude o pedem) não precisa incluir psicoterapia, porque a atenção ao sofrimento psíquico não se restringe a essa modalidade.

Portanto, o psicólogo não poder se eximir de apontar mecanismos históricos, sociais, econômicos e políticos envolvidos em concepções heterossexistas, racistas, classistas, sexistas e outros recortes preconceituosos (como faixa etária), que fazem, por exemplo, com que adolescentes que apresentam relações sexuais com quem não namoram e antes de casar, prostitutas, mulheres que apresentam relações extra-conjugais, sejam tidas como menos vítimas que outras vítimas. Ou, no outro lado da moeda, que homens adolescentes, não-brancos, desempregados, não-heterossexuais, de classe socioeconômica menos favorecida, sejam vistos como mais autores que outros.

Parece, então, que o órgão regulamentador e fiscalizador da categoria dos psicólogos, bem como pesquisadores psicólogos, compreendem que sua colaboração com o sistema judicial em casos de suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes é técnica e eticamente adequada quando realiza uma perícia, na fase policial ou processual, incluindo ou não aplicação de testes, respondendo a aspectos de ordem estritamente psicológica (evidentemente tangenciadas por questões sociais, políticas, econômicas, etc.) e para a qual escutaria todos os envolvidos, incluindo o suposto autor.

Alguns legisladores[5] e alguns operadores do Direito entendem o contrário. Daí haver sido suspensa a normativa que se posicionava contrariamente à atuação do psicólogo em modalidades de inquirição, e a proposição pelo Conselho Nacional de Justiça da resolução já citada.

Indagamo-nos se legisladores e operadores do Direito sentir-se-iam à vontade para questionar e recusar alguma intervenção médica (por exemplo, um procedimento de anestesia em uma cirurgia a que fossem submetidos) alegando que entendem melhor que o médico anestesista a este respeito. Logo, que não concordam com aquela medicação, aquela dosagem, etc. Ou até opinar junto ao cirurgião sobre o instrumento de corte, o tamanho e a localização da incisão, etc.

Não se pode desconsiderar neste momento alguma consideração sobre o uso que o saber do Direito faz da infância, de modo a exercer seu poder.

“olhar para a sexualidade da criança, para a pedagogização do sexo das crianças, dispositivo específico de saber e poder que transformou a criança em objeto privilegiado da vontade de saber, constituindo a infância em objeto de intervenção higiênica e disciplinar.

O adulto ainda exercita a violência de um poderoso olhar diante do desejo erótico da criança – do qual não pode se apropriar –, mas tenta normatizar o que ela fala e sobre o que deve silenciar, o que mostrar e o que esconder. Dessa forma, a criança é apropriada sem enigma algum, objeto da vontade de dominação do adulto. O contrário exigiria renúncia da vontade de saber e poder; de toda vontade de domínio: um encontro com o enigma que se constitui a criança, o qual não pode ser apropriado nem decifrado. Constitui-se o segredo das crianças – um saber oculto que pode gerar poder sobre o adulto. E as crianças experimentam a vida driblando o poder do adulto” (RIBEIRO, 2011, p.607)

A psicologia, nesta direção, está preocupada em preservar o discurso da criança/adolescente, garantindo-lhe o direito de se expressar como e quando puder. E, inclusive, de se expressar com seu silêncio e em outros espaços que não o sistema judicial. Também pretende garantir o direito de não se haver sofrido danos (psicólogos não caçam, e muito menos criam, danos – como fazem alguns promotores -), bem como de expressar suas condutas que, analisadas moral e fenomenologicamente, são tidas como impuras ou, no mínimo, não angelicais. Condutas que, suspendendo a divisão maniqueísta da violência doméstica, os operadores do Direito não suportam escutar ou as escutam de modo a inverter os papéis de vítima e autor no procedimento.

Condutas que, não analisadas por um psicólogo, podem não ter sua função simbólica percebida, e ficar a mercê da contaminação pelo imaginário dos operadores do Direito. Um exemplo comum é quando operadores do Direito analisam vídeos e fotos que homens postam de adolescentes com quem se relacionaram, e interpretam que, se ela não foi visivelmente (a expressão é exatamente essa!) coagida a posar ou ser filmada, ela é culpada pelo que ocorreu. Total ou parcialmente. Daí as falas do tipo: “precisa cuidar com quem anda!”.

A prisão ao imaginário é relacionada a esta preocupação em encontrar vítimas e culpados. Assim, se o comportamento da vítima não sinaliza uma angelicalidade, ela pode ser julgada (e condenada!). O simbólico ensina-nos que não, não somos anjos! Portanto, nossas filhas não são anjos. Não, não somos demônios. Portanto, nossas filhas não são demônios. Ah, também não somos deuses! No entanto, para perceber isso, precisa-se escutar. Escutando, saber-se-á que alguém pode ser coagido e coagir de muitas outras formas, para além do que está ao alcance dos nossos olhos (e dos próprios!).

Além de considerações que o psicólogo julgar pertinentes a respeito do “comportamento da vítima”, conforme previsto pelo Art. 59 do Código Penal, entende-se como possíveis dois únicos quesitos:

  1. “Houve prejuízos ao desenvolvimento psicossocial da(s) vítima(s) que puderam ser apurados em razão da violência? Em resposta afirmativa, quais seriam?”
  2. “Que medidas poderiam ser tomadas por parte do poder público, dos responsáveis diretos pela vítima (em caso de menores de 18 anos) para contribuir para a elaboração da violência sofrida?”

Como se percebe, parte-se, no primeiro quesito, do princípio de que o ato sofrido pode não trazer prejuízos ao desenvolvimento psicossocial da vítima[6], e, no segundo, de que a forma de restaurar aqueles eventualmente existentes não é pela criminalização do autor, mas por garantia de direitos às vítimas (por exemplo: encaminhamento a serviços de saúde e assistência social, bem como, no caso de crianças e adolescentes, encaminhamento de seus responsáveis aos mesmos serviços).

Salienta-se, além do mais, que a esfera psi não é de competência de operadores do direito. Portanto, que suas alegações quanto a eventual dano psicológico não pode se fundamentar em sua interpretação do que escutou da vítima. Não há razão, neste sentido, para que perguntem à vítima qual o motivo que ela imagina que levou o autor a cometer o ato, se ela gostou do que ocorreu, se ela acredita ter mudado após o ocorrido, etc. No caso dos psicólogos, pode até haver razão para que realizem perguntas desta ordem, mas operadores do Direito não.

Questionamentos que, na melhor das hipóteses, possuem como único fundamento a curiosidade do operador do Direito (devido a suas questões subjetivas), porque tecnicamente não poderia atribuir alguma compreensão psicológica do evento. Questionamentos que, na pior das hipóteses, caçam qualquer elemento que sirva para fundamentar maior punição ao autor.

Uma sugestão aos operadores do Direito que sejam pelo menos conscientemente bem-intencionados seria a de não articular o “mundo dos autos” e outros mundos de acordo com seu interesse. A sugestão seria assumir a realidade em que escolheu viver (a processual), e lá permanecer. O Pequeno Príncipe ensina-nos a, ainda que visitarmos outros mundos, não esquecermos que sempre julgamo-los a partir de nossa preferência pelo mundo em que moramos. E para o qual sempre retornamos. Talvez os Príncipes maquiavélicos pudessem aprender com ele.

Fundamental destacar neste momento os quesitos que o psicólogo, até onde compreendemos, não possui condições de responder. São as mesmas perguntas que entendemos dever nortear a oitiva policial/judicial de todos os envolvidos (na coleta das diferentes realidades subjetivas que se intercruzaram num determinado instante); logo, a entrevista realizada pelo operador do Direito.

  1. A perícia psicológica pôde constatar, por meio de testes ou de entrevistas com a(s) vítima(s), a submissão desta(s) à violência de qualquer espécie por autoria da indiciada/denunciada?
  2. Em caso afirmativo ao quesito anterior, quais os atos violentos realizados com a(s) vítima(s) e de que forma foram submetidos?
  3. Pôde ser constatado o uso de violência física ou grave ameaça contra a(s) vítima(s) como forma de coação para a realização dos atos violentos? Em caso negativo, de que forma a(s) mesma(s) foi (foram) forçada(s) ou seduzida(s) à realização dos atos?
  4. Constatou-se o uso de ameaças, chantagens diversas ou promessas variadas para a obtenção do segredo da(s) vítima(s) em relação à violência sofrida?
  5. A perícia psicológica pôde apurar, ainda que de forma aproximada, quando tiveram início os atos violentos e por quanto tempo foram realizados?
  6. Por meio da perícia realizada e do corpo acumulado de estudos sobre a violência em questão, pode-se inferir que os prejuízos psicológicos à(s) vítima(s) são reversíveis? Ou, ao contrário, tenderão a manter-se por médio ou longo prazo? 7. É possível que a(a) vítima(s) desenvolva(m) ainda outros distúrbios psicossociais a longo prazo, até mesmo em idade adulta, em virtude dos atos sofridos?

Evidentemente o psicólogo pode vir a escutar informações que digam respeito à versão dos envolvidos sobre estes aspectos. No entanto, a decisão por citá-las ou não no relatório/laudo é dela, e se subordinará a outro objetivo, conforme já mencionado, que não a procura de informações que interessam aos operadores do Direito, em sua caça à verdade.

Evidentemente também é que consideramos que cada público, cada modalidade de violência e o estado emocional daquela que é ouvida por um operador do Direito exige condutas diferenciadas. Porém, desenvolver habilidade em entrevista exige justamente conhecimento e prática da multiplicidade de variações. Se alguém decide ser delegado, advogado, promotor, magistrado, precisa executar sua função[7].

Precisamos nos responsabilizar por nossa assinatura. A escolha profissional, não sendo livre, não é sem custos. Um dos ônus de se ser delegado, promotor e magistrado é precisar diariamente estabelecer a verdade, e se deparar também diariamente com o fato de que ela não existe e de que é ele quem, apesar disto, terá que pronunciá-la. Nem o psicólogo poderá salvar o operador do Direito! Nem a lei...

Finalmente, uma última observação refere-se à necessidade das varas criminais terem, em seu quadro, equipe interdisciplinar, não apenas porque alguns casos de violência contra a mulher são de sua competência, mas também porque as vítimas homens também mereceriam ter o direito de seu caso ser analisado em seu aspecto psicológico.

Ademais, isto também colaboraria para que o Ministério Público e Poder Judiciário não requeressem os psicólogos que atuam na polícia judiciária para elaborarem as perícias psicológicas. Soa um pouco incestuosa essa relação na qual a defensoria é excluída... só não quando a atividade do psicólogo é entendida como atividade de operador do Direito. Daí é possível se fazer coisas como baixar o inquérito à delegacia pedindo que o psicólogo faça uma avaliação psicológica respondendo a quesitos que, em verdade, referem-se ao esclarecimento do fato e nada falam de questões psicológicas.

A existência de psicólogos nas varas criminais também poderia fazer com que fossem periciadas os réus, quando poderia, além de quesitos específicos, tecer considerações que entendesse pertinentes sobre vários dos itens previstos no Art. 59 do Código Penal. Infelizmente a Psicologia ainda é requerida apenas para falar em nome daquela que figura como vítima nos procedimentos judiciais. Daí sua existência basicamente em varas de violência doméstica, família e infância e juventude, e seu trabalho nestes espaços, bem como nas delegacias, e a demanda aos profissionais ter como intenção, velada ou não, encontrar elementos para condenar e, se possível, qualificar a ação. Ou seja: condenar melhor ainda!

Talvez por isto é que não sejam respeitados os princípios éticos e técnicos previstos pelo órgão fiscalizador da profissão que permitiram um melhor atendimento à vítima: o foco é o suposto autor e não a vítima, e o objetivo é reprimir, e não garantir.

Espera-se que o presente texto sirva pelo menos para que as vovozinhas/psicólogos não se deixem engolir por lobos/operadores do Direito, ainda que se saiba difícil resistir ao sedutor argumento de que vovozinhas são o objeto por elas desejado. Nem sempre quem nos visita quer nosso bem! Principalmente quando tem uma boca e mão muito grandes, e ouvido demasiado pequeno...

Talvez não seja possível esperar do lobo/operador do Direito que tenha a hombridade de se mostrar a Chapeuzinho Vermelho/vítima como ela é de fato, dando-lhe o direito de escolher falar com ele ou não. O lobo, para se saciar, esconde-se atrás de árvores e até se passa por vovozinha! Talvez só nos reste esperar uma história em que a Chapeuzinho Vermelho não encontre caçadores travestidos de lobos.


Notas e Referências:

[1] “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Art.5) (grifo meu).

[2] No Art.12 da Convenção Internacional de Direitos da Criança (1989), prevê-se a possibilidade de crianças e adolescentes não serem ouvidos no sistema judicial:

“Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.

Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional”

Vê-se, portanto, que é um direito, mas não uma obrigação, a oitiva da criança/adolescente nos procedimentos em que figuram como vítima. E, além disto, que tal oitiva pode ser indireta; qual seja: por meio da oitiva de representantes.

Nesta direção, cabe também lembrar que esta condição também pode ser aplicada aos casos em que adolescentes e crianças figuram como testemunhas em procedimentos policiais/judiciais. Existem condições nas quais qualquer sujeito pode eximir-se da obrigação de depor, segundo o Código de Processo Penal. Uma delas quando a testemunha é ascendente ou descendente do acusado (o que é o mais comum quando se trata de crimes cometidos contra crianças e adolescentes), “salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias” (art. 206). Além disto, os menores de 14 anos não assumem o compromisso de falar a verdade (Código de Processo Penal, Art. 208).

[3] Uma das melhores demonstrações de que @ psicólog@ não é chamad@, ao realizar tal atividade, do lugar de psicólog@ é justamente ser indiferente a formação de quem realizará o “depoimento especial”. O que se espera são entrevistador@s que atendam ao que espera do Sistema Judicial; o que seja: atendam o que se esperaria de delegad@s, promotor@s, magistrad@s e defensor@s.

[4] No Código de Processo Penal não há previsão de perícia psicológica; logo, ela é considerada prova documental nos autos. Este aspecto poderia ser discutido intensamente, atendo-se aos possíveis argumentos para que seja entendida como de outra ordem que não aquela de perícias de engenharia, médica, química, etc. Talvez porque a psicologia, por conta da complexidade com que aborda os fenômenos humanos, recuse-se a responder simploriamente (“sim” ou “não”) aos questionamentos a ela dirigidos. Talvez porque, então, explicite que não é ela a detentora de alguma certeira verdade do tipo verdadeira. De qualquer modo, para o que se propõe agora, tal aprofundamento parece desnecessário/impertinente.

[5] A metodologia do “Depoimento sem dano”, implementada na 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, chegou a gerar o projeto de lei 7.524/2006, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT/RS), para que tivesse abrangência nacional. Sua ementa: “Acrescenta o Capítulo IV-A ao Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, dispondo sobre o processo e julgamento dos delitos tipificados no Título VI, Capítulo I, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente”. Propunha-se a estabelecer “a redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais crianças e adolescentes são vítimas ou testemunhas, especialmente nos Crimes contra a Liberdade Sexual”.

[6] Para esta discussão, considerar que psicologia não prevê futuro, até porque a etiologia do trauma apresenta um componente imprevisível (FREUD)

[7] Explicita-se aqui nossa solidariedade as/aos estagiári@s, que muitas vezes têm seu trabalho sonegado por operador@s do direito.

AMENDOLA, Márcia Ferreira. Analisando e (des) construindo conceitos: pensando as falsas denúncias de abuso sexual. Estudos e pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, ano 9, n.1, p.199-208, 1 sem.2009.

LANDRY, Michel. O psiquiatra no tribunal: o processo da perícia psiquiátrica em justiça penal. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1981. 112 p.

PELACANI, Walmir Luiz. O perito judicial e o assistente técnico. Curitiba: JM, 2003. 112 p.

RIBEIRO, Cláudia Maria. Crianças, gênero e sexualidade: realidade e fantasia possibilitando problematizações. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis,  v. 19,  n. 02, ago.  2011.

SCHAEFER, Luiziana Souto; ROSSETTO, Silvana; KRISTENSEN, Christian Haag. Perícia psicológica no abuso sexual de crianças e adolescentes. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília,  v. 28, n. 2, Jun. 2012.


  Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)    


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