Ser mau não é pra quem quer. É pra quem Pode: Considerações sobre tratamento jurídico despendido à violência sexual contra crianças e adolescentes

14/03/2015

Por Maíra Marchi - 14/03/2015

A lei 11.340 abrange vários casos de violência sexual, posto que a maioria das notificações de crimes sexuais refere-se a vítimas do gênero feminino e ocorrências no âmbito intrafamiliar. Por este motivo, já parece justificável uma discussão específica a seu respeito. Além disto, no que diz respeito à contribuição da psicologia à justiça, parece que o tema da violência contra crianças e adolescentes tem sido o mais debatido.

Talvez por entender, conforme prevê o ECA, que a eles deve-se atribuir prioridade absoluta. Talvez também porque se dirige primordialmente a eles nossas representações de vítima, e, então, de quem deve ser tutelado. Independente disto, o fato é que a violência contra crianças e adolescentes, especialmente a violência sexual, toca em alguns tabus de nossa sociedade ocidental. E, então, o tratamento jurídico a estes casos despendidos pode ser ícone das relações entre psicologia e direito.

A análise de NOGUEIRA NETO (2009), ainda que tendo como foco o tema específico da exploração sexual, em vários aspectos transcende o tipo jurídico dos fatos. Não apenas por isto, mas será aqui lembrado também porque, quando aborda a sexualidade, o que deixa em primeiro plano é que a resposta jurídica a atos de conotação sexual contra crianças e adolescentes é um ícone de algumas representações e da ineficácia do sistema judicial.

Em sua proposta de que a criminalização é apenas uma das possibilidades de respostas do Estado à violação dos direitos sexuais, NOGUEIRA NETO (2009) vai fundamentar que há um discurso marcadamente vigente que entende por sinônimos “responsabilização” e “criminalização-penalização”. Tal equívoco, segundo ele, mobilizaria o que ele denomina de “volúpia punitiva”. E ele lembra, especificamente no caso do agressor sexual, que esta criminalização-penalização não deveria ser necessariamente a única resposta estatal a tal agressão.

Constata-se ainda, na média da opinião pública, uma forte defesa monocórdica da criminalização-penalização dos agressores sexuais e o repúdio passional a sua impunidade. E esse entendimento média parte da idéia de que o sistema penal, em si mesmo, é “legítimo e eficaz” e de que a impunidade ocorrente é disfuncional, a ser combatida com leis penais mais draconianas e uma justiça mais efetiva em produzir condenações. E que, portanto, a impunidade nasce apenas de fatores conjunturais, em nossos países, isto é, ou da insuficiência da regulação legal ou do mau funcionamento das agências judiciais ou de ambas (NOGUEIRA NETO, 2009, p.36). No texto em questão, o autor ainda propõe, ao discutir esta falácia do direito penal orientado por um discurso jurídico-penal tradicional retributivista a crimes sexuais, que há uma seletividade do sistema judicial. Tal seletividade dar-se-ia por vários vieses (classista, racista, machista e de faixa etária). Melhor dizendo, o autor fala que alguns sujeitos são mais visíveis ao direito penal (mais facilmente passariam, poderíamos pensar, de suspeito a autor) e, além disto, que são alvos preferenciais deste furor pela vingança. Em seus termos: o poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos preferenciais à criminalização [...] e desencadeia o processo de sua criminalização, submete-os a esse processo sob direção e controle da agência judicial que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalização já desencadeada pelo sistema de segurança pública e, por fim, a privação da liberdade de tal “selecionado” pelo sistema penal. A seleção é feita em função da pessoa, o candidato é escolhido a partir de um estereótipo – pobres, negros, indígenas, jovens, desempregados, por exemplo (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).

A propósito, o autor elenca como características estruturais, e não conjunturais, do exercício de poder em todos os sistemas penais:

1 - A sua seletividade perversa e ideológica,

2 - A reprodução interna no próprio sistema penal repressor da violência praticada pelo criminoso contra ele próprio,

3 - A criação de novas e melhores condições para a reincidência,

4 - A corrupção intrínseca e institucionalizada do próprio sistema penal-penitenciário e

5 - A destruição das relações comunitárias, por exemplo (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).

Por fim, as ideias deste autor parecem muito pertinentes ao presente texto também em outro aspecto, até agora referido rapidamente: seu entendimento de que a resposta penal não é a única, nem a salvífica, nem a mais legítima. Ele vai discorrer, no questionamento do que poderíamos traduzir por um “direito penal messiânico”, que a possibilidade desse tipo de resposta penal e de sistema penal serem substituídos por um Direito Penal de Garantia, um Direito Penal Mínimo e uma Justiça com resultados restaurativos pode ser no momento uma estratégia, um caminho que leve a garantir uma mais eficiente e legítima resposta estatal ao fenômeno dos delitos (no caso nosso aqui, dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes)  - uma resposta estatal que neutralize (ou mascare pelo menos...), ao máximo, essas características essenciais da resposta penal retributivista. Se atuarmos na perspectiva dos Direitos Humanos – ao mesmo tempo em que se pune o delinqüente, também se o reconhece como pessoa humana, com direitos fundamentais, com respeito mínimo a sua dignidade. A demonização do delinqüente sexual só serve ao modelo de sociedade e de Estado firmado na vingança, na “volúpia punitiva” alienadora da população e na reprodução da violência em um ciclo macabro e incacabável (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).

No caso particular dos crimes sexuais, o autor denuncia a ação controladora higienista deste discurso jurídico penal falseante, ideológico e deslegitimado (porque mais preocupado em ser legalizado, poderíamos concluir) falando de como a reposta jurídica frente a tais atos baseou-se em critérios pseudocientíficos, ou perfis inconsistentes de natureza psicológica ou psiquiátrica, que buscam ver em todos os criminosos sexuais contra crianças e adolescentes, por tudo, “pedófilos”, de maneira generalizadora e alienadora, ignorando de má-fé ou por ignorância, o sentido mórbido-compulsivo e perverso dessa parafilia (NOGUEIRA NETO, 2009, p.37).

Percebe-se que o autor pouco detalha o que entende por pedofilia, compreendida aqui como uma parafilia. Apenas refere-se aos seus sentidos “mórbido-compulsivo” e “perverso”. No entanto, desde já é possível deduzir que o autor fala, acima de tudo, da impertinência de se entender como patológicas todas as situações de crimes sexuais contra crianças e adolescentes.

É importante pensar que, assim como nem sempre os crimes sexuais sinalizam uma patologia (no sentido que interessa ao direito: perda ou redução do conhecimento da ilicitude da ação), elas também não resultam de um livre-arbítrio, o que facilmente leva as representações de que são imorais, “monstros”.

De fato, procurando entender crimes sexuais como sempre orientados pela consciência/vontade, recai-se basicamente em duas explicações para os mesmos: 1) em todas as ações desta natureza haveria um desconhecimento da ilicitude do ato (psicose); 2) o autor destas ações seria aquele que opta por desconsiderar valores tão estruturantes de nossa cultura como o tabu do sexo e da infância (o que não é o caso nem na neurose[1], sequer da perversão, posto que o sujeito, neste caso, ainda que não possa ser inimputável, não pode se dirigir de acordo com o conhecimento da ilicitude da ação devido a questões inconscientes).

A psicanálise compreende que o humano é movido essencialmente pelo inconsciente, o que não acarreta, e isto é importante ressaltar, que o Direito não possa realizar sua análise a propósito da responsabilidade do autor (que recai, basicamente, na noção de consciência). O discurso jurídico, quando atravessado pelo psicanalítico, apenas possibilita que a análise da responsabilidade por crimes não precise se orientar pelas noções de “loucura” ou “monstruosidade”. A primeira, atravessada pelo discurso médico-higienista. A segunda, pelo moral.

Porém, CARVALHO (2008, p.125), até pelo foco de seu trabalho, ao alertar para os limites de diálogo entre a criminologia e a psicanálise, refere-se justamente ao tema da responsabilidade/culpa. Em seus termos: em face de a teoria do delito trabalhar como fundamento da responsabilidade da conduta humana consciente – mesmo no crime culposo (culpa consciente ou inconsciente) ou nas hipóteses de erro, há pelo sujeito definição finalística, embora não necessariamente delitiva, do seu agir –, a inclusão da idéia de inconsciente desestabiliza qualquer legitimidade de intervenção penal.

[...] Assim, a teoria do delito, sustentada pela filosofia da consciência e presa aos domínios da razão, é desestruturada pela construção psicanalítica do crime como produção inconsciente do sentimento de culpa[2].

A questão colocada demonstra a dificuldade de diálogo, sobretudo entre direito penal e psicanálise, apontada desde o início por Jacinto Coutinho. Com isso não se está a afirmar sua impossibilidade, apenas o imenso cuidado que se deve ter em sua aproximação. Sobretudo porque a simples transposição de conceitos poderia, como visto, determinar a exclusão de uma das disciplinas, resultado incompatível com a ética transdisciplinar. Por outro lado, os problemas apontados parecem demonstrar a maior facilidade de diálogo da psicanálise com a criminologia.

Compreensível, portanto, a cautela da dogmática jurídico-penal e a predisposição da criminologia nas aberturas à transdisciplinaridade, em face de o diálogo com saberes alienígenas desestabilizar a primeira e reforçar a segunda (grifo do autor).

Pensando em contribuir com a criminologia (crítica), até porque com o direito penal parece difícil, talvez a psicanálise possa ser uma saída para o alerta que nos faz NOGUEIRA NETO (2009, p.36):

é preciso construir outros parâmetros na forma desta sociedade reagir, superando a égide pura e simples da justiça penal, punitiva e coercitiva, acrescentando a perspectiva multidisciplinar para garantir a proteção integral. Existe ainda a necessidade de requalificar a noção de vítima, recuperando as dimensões de sujeito e de sua integralidade.

Sabe-se que a psicanálise não lê as relações pela lente maniqueísta da polarização vítima-algoz, posto entender todos os envolvidos como sempre se encontrando na posição de sujeitos, e não de objetos. Inclusive do direito, cujo discurso tende a tomar como objetos não apenas aqueles que contrariam a norma, mas também os próprios operadores do direito.

Talvez o discurso psicanalítico contribua para que a ação do sistema judicial não se paute unicamente em “ecos afetivos” que seu ato mobiliza nos agentes do direito. Principalmente, que tal ação não se paute em um anseio pela vingança e punição. Em outros termos, que tal decisão vise outro bem que não apenas o daqueles que se pretendem bons.


Notas e Referências:

CARVALHO, Salo de. Freud criminólogo: a contribuição da psicanálise na crítica aos valores fundacionais das ciências criminais. Rev. Dir. Psic., Curitiba, v.1, n.1, p.107-137, jul./dez. 2008.

NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Não-criminalização & impunidade. Sistema de garantias de Direitos Humanos. In: Direitos Humanos não têm idade. Rio de Janeiro: Instituto São Martinho, 2009. P.34-40.

[1] Que, para a psicanálise, é a estrutura de personalidade que mais se aproxima do que se compreender por “normalidade”.

[2] Este autor, após referenciar-se nos textos do pai da Psicanálise que tratam da criminalidade como motivada por um sentimento de culpa anterior ao ato, alerta que “Freud nega a universalização do sentimento de culpa como a causa dos delitos ao reconhecer que existem pessoas que efetivamente praticam crimes sem sentimento de culpa ou que atuam crendo justificado seu ato” (CARVALHO, 2008, p.123). No entanto, posteriormente, refletir-se-á que Freud, quando se refere a sujeitos que cometem crimes não mobilizados por sentimento de culpa e/ou crendo justificado seu ato, está falando de perversos. Mas que, em uma linguagem winnicottiana, não há diferenças subjetivas significativas na prática delinquencial entre o neurótico e o perverso.


Sem título-4   Maira Marchi é doutoranda em Psicologia, Mestre em Antropologia Social, e especialista em: Panorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente; Psicologia Jurídica; Direito Penal e Criminologia; Dependência Química; Saúde Mental, Psicopatologia e Psicanálise. Psicóloga da Polícia Civil de SC.


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