Ser e crescer menina livre de opressão sexista: contribuições a partir do feminismo marxista

08/12/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

(Conceição Evaristo, Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).

Durante os mais de 10 anos de funcionamento do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV)[1], os nossos áridos temas de pesquisa – violações de direitos de crianças, adolescentes e jovens -, trouxeram-nos  a emergência de considerar a imbricação – o nó indissociável, como diz a Heleieth Saffioti (1992) - entre sexo[2], raça e classe. Nesse sentido, compreendemos também como fundamental considerar o recorte geracional, já que nossas pesquisas a ações falam de/para e com crianças, adolescentes e jovens que não são abstrações, mas filhos e filhas da classe trabalhadora, moradores das periferias, com recortes de sexo, raça/etnia.

Nas nossas pesquisas e nos espaços que ocupamos na rede de garantia de direitos, deparamo-nos com diversas situações de violência contra mulheres e meninas, além de questões sobre a sua precarização da vida – sobrecarga, desemprego, empobrecimento, etc. -, como vem sendo observado, por exemplo, nas pesquisas com meninas e mulheres em privação de liberdade. Dessa forma, a partir do que temos levantado em estudos como esses, vem surgindo uma série de questões sobre as implicações do nó sexo-raça-classe e a necessidade de buscar na teoria feminista, chaves analíticas que contribuíssem para a compreensão dessa realidade.

Uma situação emblemática sobre a importância dessa aproximação com o feminismo, tem se desenrolado atualmente, durante o período de pandemia da COVID-19. Nesse sentido, temos observado que essas manifestações da precarização da vida têm se intensificado para grupos sociais específicos, recaindo de maneira mais aguda sobre as mulheres. Considerando a imbricação já citada, é possível constatar que, em especial, são as mulheres negras e periféricas as que têm sido impactadas mais fortemente pela crise. [3]

Como ilustração dessa falta de proteção para mulheres - mesmo estando em suas casas e junto a suas famílias - basta lembrar que foi durante o período de pandemia que uma menina de apenas nove anos de idade, após sofrer, pelo próprio tio, uma terrível violência, como o estupro, foi hostilizada e chamada de assassina, quando se submeteu à interrupção legal da gravidez[4].

A violência é uma presença cotidiana na vida das mulheres de todas as idades, indo desde o assédio moral e sexual, até o feminicídio. Mesmo com alguns avanços no campo legislativo e cultural, por ser estrutural, a escalada de violência contra mulheres continua e tende a crescer.

Quais respostas teórico-politicas temos dado para essas questões? Estamos olhando para a violência contra as mulheres e meninas a partir das estruturas que as produzem? Até quando iremos suportar viver numa sociedade que mata mulheres e não permite que meninas cresçam de forma segura, livre de opressões, explorações e violências?  Dessa forma, acredita-se que é urgente pensar estratégias possíveis de enfrentamento, a partir do acúmulo da teoria feminista e da luta das mulheres, para que ser e crescer menina, no nosso país, não seja sinônimo de ausência de liberdade e medo.

O acúmulo da luta feminista tem demonstrado o quanto o machismo estrutura relações de poder em nossas vidas privadas, em espaços familiares e de sociabilidade. Nesse sentido, como disse bell hooks (2019a), o feminismo, como luta libertadora, é imprescindível para erradicar a dominação em todas as suas formas - seja simbólica, física ou econômica -, juntamente com a luta antirracista e anticapitalista.

O feminismo deve mesmo ser para todo mundo. Mas, de qual feminismo estamos falando aqui? No campo teórico e prático das diversas perspectivas feministas, é possível encontrar, no feminismo marxista, elementos importantes para compreender a imbricação dialética entre sexo, raça e classe, que são construções sociais estruturais, como dissemos, ao modelo de sociabilidade capitalista.

 

Machismo e racismo estruturais numa sociedade de classes

Em virtude desse nó fundamental, a classe, como relação social, não é homogênea, mas sim constituída por relações étnico-raciais e de sexo, as quais marcam diferenças que são transformadas em desigualdades dentro da dinâmica de exploração e opressão sobre determinados segmentos sociais no capitalismo. Podemos dizer que, da mesma forma, quando isolamos as categorias de raça e sexo, estamos ocultando a materialidade das relações, tendo em vista que estão inseridas numa sociedade dividida em classes. Assim, é imprescindível correlacionar de forma dialética essas três relações sociais[5].

O marxismo, enriquecido pela epistemologia feminista e pelo feminismo negro[6], oferece-nos a base fundamental para chegarmos à imbricação entre mulheres, raça e classe. Ora, o que funda o ser social, o que nos transforma e possibilita nos constituirmos como sujeitos e sujeitas sociais é o trabalho - a categoria primária para a constituição do ser social, diz o marxismo. Grosso modo, a divisão do trabalho é a raiz para entendermos o processo de exploração: quando a classe trabalhadora só tem a sua força de trabalho para sobreviver, ela perde o controle dos meios de produção, estabelecendo-se uma relação de poder, de desigualdade, de dependência e controle, de antagonismo e contradição, que é insuperável e ineliminável nos limites da sociedade burguesa, já que esta se funda a partir dessa contradição.

Partindo do trabalho como categoria central, no seio da sua divisão, estão imbricadas: a divisão sexual e racial do trabalho. Relembrando a necessidade de não se olhar isoladamente para as relações sociais, destacamos que a própria classe está permeada por essa divisão. Ressaltamos ainda que, apesar de serem essas três relações sociais estruturantes entre si, elas não esgotam a diversidade das relações humanas, mas estruturam as expressões das desigualdades no modo de produção capitalista.

Nesse sentido, o feminismo negro trouxe uma contribuição importantíssima para o feminismo marxista, considerando que a sociedade em que vivemos é classista, cisheteropatriarcal e racista.  Lélia Gonzalez, por exemplo, em Racismo e Sexismo na cultura brasileira (1983) e Mulher negra (2008), já chamava a atenção para tal imbricação, a partir da compreensão da divisão do trabalho hieraquizada, demonstrando que a força de trabalho negra e feminina, no nosso país, tem sido a mais precarizada, e que há trabalhos considerados de negros, de mulheres e de brancos.

Dessa forma, o chamado feminismo negro, representado muito bem por Lelia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Angela Davis, Patrícia Hill Collins, bell hooks, Audre Lord, dentre tantas outras, trazem um fato incontornável ao feminismo e ao marxismo: é preciso considerar que o trabalho é racializado. Diversas outras questões importantíssimas são trazidas à tona pelo feminismo negro. Audre Lord, em A irmã Outsider, afirma (2019):

“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescer se juntem ao patriarcado e testemunhem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem os nossos filhos de um carro e disparem contra eles a queima-roupa, no meio da rua, enquanto vocês dão as costas para as razões pelas quais eles estão morrendo”.

Enfim, é importante lembrar que, evidentemente, o racismo e o cisheteropatriarcado tem uma base econômica, que não se esgotam aí, mas que são estruturais, atendendo às questões de superexploração do trabalho, intensificadas no modelo de capitalismo dependente brasileiro.

 

Teoria em movimento: contribuições do feminismo para a transformação radical da realidade

Mais uma vez, alude-se ao papel histórico da luta das mulheres e da teoria feminista como instrumentos para compreender a realidade e transformá-la. Capturando esse sentimento dos movimentos de mulheres em todo o mundo, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya, Heci Regina Candiani, Nancy Fraser escrevem o manifesto feminismo para os 99%, que nega o feminismo liberal:

Diz o manifesto: “o tempo de ficar em cima do muro passou, e as feministas devem assumir uma posição: continuaremos a buscar “oportunidades iguais de dominação” enquanto o planeta queima? Ou vamos voltar a imaginar a justiça de gênero em um modelo anticapitalista – aquele que conduz para além da crise atual, para uma nova sociedade?” E mais:

“Este não é um feminismo corporativo, que se mostrou tão desastroso para as mulheres da classe trabalhadora e agora sofre uma hemorragia de credibilidade, nem é o “feminismo de microcrédito”, que alega “empoderar” mulheres do Sul global ao emprestar-lhes montantes irrisórios de dinheiro. Em vez disso, o que nos traz esperança são as greves feministas feitas por mulheres em 2017 e 2018. São essas greves e os movimentos cada vez mais coordenados que estão se desenvolvendo em torno delas que inspiraram inicialmente – e agora corporificam – um feminismo para os 99%.”

Há luta feminista pulsando por todo o mundo – e uma luta que se se reivindica anticapitalista e antirracista. Para além da dita “primavera feminista” ou “nova onda feminista”, os coletivos de mulheres e as organizações feministas têm se constituído como um dos principais sujeitos de mobilização social e política. Há que considerar, também, que muitos desses movimentos, questionadores da ordem vigente, tem sido impulsionados por mulheres muito jovens, que tem se empoderado no coletivo e para o avanço coletivo.

Há um longo caminho para ser e crescer menina livre de opressões e violências no nosso país, e não avançaremos sem olhar para o acúmulo teórico e prático da luta feminista. Como muito bem pontua bell hooks (2019b):

“O movimento feminista deveria ter uma importância capital e primária para todos os grupos e indivíduos que desejassem dar um fim à opressão. Muitas mulheres que gostariam de participar plenamente de um luta de libertação (de combater o imperialismo, o racismo e o classismo) têm as suas energias drenadas porque estão continuamente às voltas com a discriminação, a exploração e a opressão sexista. No interesse da luta, da solidariedade e do empenho sincero pela erradicação de todas as formas de dominação, a opressão sexista não pode continuar a ser ignorada e posta de lado pelas ativistas políticas radicais. Um importante estágio no desenvolvimento da consciência política é alcançado quando os indivíduos reconhecem a necessidade de lutar contra todas as formas de opressão. A luta contra a opressão sexista é de grande significado político – e não apenas para mulheres. O movimento feminista é vital tanto por seu poder de nos libertar das terríveis garras da opressão sexista quanto por seu potencial para radicalizar e renovar outras lutas de libertação”. (p. 77).

Até aqui, muitos dos avanços tem se dado por meio de reformas, importantes para o avanço da igualdade de gênero, mas não suficientes para a diminuição da opressão sexista. Valores conservadores que naturalizam a opressão seixista e a violência continuam intactos, assim como o trabalho feminino continua invisibilizado e precarizado. Além disso, um antifeminismo tem ganhado força em todo o mundo, inclusive no Brasil, colocando em risco conquistas arduamente conquistadas. Para mudanças efetivas é preciso voltar a acreditar em uma outro mundo possível, superando as estruturas que engendram as opressões. Mais uma vez, recorremos a bell hooks (2019b):

“A formação de uma visão de mundo alternativa é fundamental para a luta feminista. Isso significa que o mundo no qual nos sentimos seguros (ainda que esse sentimento esteja baseado em uma grande ilusão), precisa ser radicalmente transformado. Talvez a percepção de que todos precisam mudar, não apenas aqueles que rotulamos de inimigos e opressores, que até agora têm servido para avaliar a autenticidade do nosso impulso revolucionário. Para que o movimento feminista contra a opressão existente possa progredir, para que possamos transformar nossa realidade atual, esses impulsos revolucionários precisam moldar de forma espontânea e livre nossa teoria e nossa prática”. (p. 237)

A luta feminista, que também é antirracista e anticapitalista, é a luta pela emancipação de todas as pessoas. Uma educação feminista também precisa, desde já, alcançar a todes.

 

Notas e Referências

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luis Augusto. ANPOCS, 1983. (ciências sociais hoje, nº 2).

________________. Mulher Negra. In: Guerreiras de Natureza: Mulher negra, religiosidade e ambiente. Nascimento (0rg). São Paulo: Selo Negro, (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 3), 2008.

HIRATA, Helena. Gênero, Patriarcado, Trabalho e Classe. Revista Trabalho Necessário, 16(29), 14-27, 2018.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019a.

__________. Teoria Feminista - da Margem Ao Centro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019b.

Lord, Audre. A irmã Outsider. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2019.

SAFFIOTI, Heleieth. (1992). Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. de O. BRUSCHINI, C. (orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, pp. 183-215.

 

[1] O Observatório da População infantojuvenil em Contextos de Violência é um projeto de ensino, pesquisa e extensão, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

[2] Sexo é aqui compreendido para além do determinismo biológico, como apontado desde os textos de Simone de Beauvoir, tendo em vista que somos seres sociais, e os papéis sexuais são construções sócio-históricas. Assim, quando falarmos em mulheres, entendemos que a categoria vai além do sexo biológico e da cisgeneridade, incluindo as mulheres trans* que se afirmam como mulheres. É importante assinalar que se prefere o termo “sexo” a gênero, neste ensaio, por esse último ser demasiadamente amplo e não explicitar a hierarquia e antagonismos materiais existentes entre os sexos. Ver Cisne (2014)

[3] Para acessar dados sobre isso, ver: http://www.onumulheres.org.br/covid-19/

[4] Para ver mais: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html

[5] Para entender de forma mais aprofundada essa questão Ver Hirata (2018)

[6] Ver Angela Davis (2016) e Lelia Gonzalez (1983)

 

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