Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino – 09/03/2017
Dentre as tarefas mais difíceis para qualquer ser humano, em especial a todos os Professionais do Direito, é identificar o espírito do momento presente. Essa investigação sobre o existir e a existência não apenas demanda conhecimento do passado, mas, ainda, experimentar as virtudes e vícios de nosso cotidiano. Humanizar-se é isso: transitar entre as brisas dos portões celestes e descer às galerias subterrâneas do inferno. Humanizar-se requer uma pedagogia da ambiguidade[1], como já lembrava Bachelard.
Aliás, veja-se as palavras do mesmo autor: “[...] tudo o que está oculto é profundo, tudo o que é profundo é vital, vivo; o espírito formador é subterrâneo”[2]. Nenhum Profissional do Direito, principalmente aquele que se dedica aos estudos da Política Jurídica[3], vive na ilha da neutralidade axiológica e cultural. É necessário viver o momento presente, ser capaz de encontrar as suas angústias, medos, desejos, devires e utopias. A partir desses cenários, e junto ao pensamento de Bachelard, se consegue desenvolver, de modo permanente, a estetização da convivência, cujo único espaço de manifestação é o cotidiano e o seu tempo é o presente. Esse é o âmbito de atuação da Política Jurídica, seja no seu significado epistemológico, ideológico e/ou operacional.
Por que se insiste, novamente, no tema da Humanização junto à Política do Direito? A resposta parece bem simples, embora sua práxis[4] seja nebulosa: Quando se produz, interpreta e aplica o Direito nem sempre essa dimensão se manifesta como luminosa para tornar os princípios e regras jurídicas adequados conforme o momento presente. Não significa, em hipótese alguma, afirmar que o Direito concorde com o seu próprio tempo presente. Ao contrário, deve buscar elementos suficientes para contribuir à crítica de um tempo e espaço que privilegia o caráter instrumental dos procedimentos jurídicos ante a vida, a violência contra os mais vulneráveis em detrimento à sua segurança e acolhimento, a eliminação do estrangeiro (ou o estranho) quando esse procura lugares mais estáveis a fim de desenvolver junto aos Outro o seu existir.
Todos esses motivos se tornam preocupações fundamentais da Política Jurídica na medida em que o Direito - seja na sua dimensão cultural e/ou normativa – se torna incapaz de prover e ampliar a dignidade quando houver abusos, omissões ou violações à sua matriz de significalidade. Essa imersão em favor do existir e da existência demanda uma autocrítica e autoanálise[5] as quais sinalizam as possibilidades e limites da atividade desenvolvida pelos Profissionais do Direito e conduzida pela Política Jurídica.
Para se realizar esse objetivo, uma das principais categorias estudadas na Política Jurídica é a Consciência Jurídica[6]. Aqui se tem um retrato fiel das aspirações humanas para se desenvolver relações mais harmoniosas. É a Consciência Jurídica a raiz da Opinião Pública, pois é a partir da manifestação livre de todos que se identifica esse espírito do tempo. No entanto, vale a ressalva: a Opinião Pública deve pensar por si o que deseja. Não pode, nem deve, expressar outros interesses que não sejam próprios dessa condição relacional entre as pessoas na vida de todos os dias.
Para se compreender, no entanto, a importância da Consciência Jurídica, é necessário entender as suas bases constitutivas. Em alguns trabalhos acadêmicos[7], elaborou-se a categoria Sensibilidade Jurídica, a qual pode ser entendida pelo seguinte Conceito Operacional[8]: ato de sentir algo junto à pluralidade de seres, lugares, momentos e linguagens e que constitui bases indispensáveis para a convivência esclarecidas pela doutrina, criadas pela legislação e aplicadas pela jurisprudência.
Junto à Sensibilidade Jurídica, Pasold, em artigo intitulado Alexis de Tocqueville: percepção política e jurídica da Revolução Francesa[9], trouxe outra Categoria indispensável ao estudo da Consciência Jurídica: Percepção Política e Jurídica. Segundo o autor, essa é “[...] o registro de (1) elementos do direito positivado e/ou de jurisprudência e/ou de doutrina; e (2) circunstâncias e fatos das relações humanas coletivas sob a égide do exercício do poder, quanto a um determinado fenômeno histórico ou contemporâneo, sendo o registro seguido ou imediatamente conectado com a emissão de juízo de valor, ou seja, de análise que culmina com opinião tanto sobre elemento jurídico, circunstância ou fato político quanto sobre o fenômeno como um todo”[10].
Sensibilidade Jurídica e Percepção Política e Jurídica são as bases constitutivas da Consciência Jurídica. Tratam-se de momentos anteriores àquilo que se torna visível pela Consciência Jurídica e, após, se manifesta pela Opinião Pública. Ao se retomar a expressão de Bachelard, ambas categorias se desenvolvem nas galerias subterrâneas, naquilo que está oculto, principalmente por aquelas atitudes mais anódinas, banais, simples e que não possuem importância significativa para a maioria das pessoas.
É a partir dessa tríade – Sensibilidade Jurídica, Percepção Política e Jurídica, Consciência Jurídica – que se consegue identificar o espírito de nosso tempo presente. Esse é o lugar no qual se verifica em que grau de maturidade ou imaturidade se encontra a nossa permanente humanização, expressa, no nosso caso, pela doutrina, pela jurisprudência, pela legislação. A convergência de todos esses fatores faz com que o ideal Estética da Convivência não seja apenas uma situação transcendente[11], da qual falava Mannheim, capaz de culminar, ainda, numa mentalidade hipócrita[12], mas seja genuína utopia[13], a contra atitude que altera, transforma realidades insustentáveis, insuportáveis em outras mais desejáveis.
A Sensibilidade Jurídica e a Percepção Política e Jurídica denotam um saber ecosófico[14], uma pluralidade de caminhos os quais sintetizam não apenas os deveres, mas, especialmente os devires jurídicos. Nesse caso, parece claro que função protetiva das Constituições, especialmente quando precisam se adequar na medida em que seus intérpretes[15] elaboram quais regras – inclusive morais – se destinam a permitir uma convivência sadia entre todos, todos os dias.
No entanto, ressalte-se: a Constituição é técnica, é instrumento que assegura direitos e deveres. Suscita a defesa intransigente de prerrogativas nas quais oportunizam viabilidade da Dignidade, bem como a reivindicações quando se constatar abusos, omissões ou violações de suas prescrições. O mosaico das relações humanas não se exaure nos limites constitucionais postos, nem se torna o único caminho de humanização.
Não é demais insistir que a Constituição é base indispensável para se tornar estável qualquer sociedade humana. O que se deseja enfatizar, contudo, é a necessária capacidade crítica de se identificar quando o apego à Norma Constitucional se torna fonte de cegueira institucional e ignora outros cenários, outras atitudes que auxiliam ao desenvolvimento relacional humano e nem sempre são albergados pela Norma Jurídica.
A sua tarefa primordial da Constituição é nos rememorar sobre o que acontece quando se despreza essas regras básicas de convivência. Ambas – a Constituição, de um lado, e os Costumes, de outro – são fenômenos complementares e jamais excludentes. É nesse tênue caminho que quando a Política Jurídica prescreve respostas ao direito vigente (direito que é) para que haja sua adequação ao espírito do tempo presente, essa o faz pela tríade Sensibilidade Jurídica, Percepção Política e Jurídica, Consciência Jurídica.
A experiência de tantos caminhos, alternativas de humanização permite a avaliação daquilo que se torna indispensável, num primeiro momento, para se conviver de modo justo, ético e harmonioso. Se essa condição é pressuposto de desenvolvimento civilizacional, ou seja, sem ela não se observa qualquer forma de avanço quanto ao acesso, viabilidade e disseminação da Dignidade, torna-se necessário o seu registro pela lei.
Nesse caso, o sentido dialogal deste pluriverso favorece uma vida cujo imperativo de seu tempo não seja sobreviver, violentar, ignorar o Outro, mas, dentro das galerias subterrâneas do existir e da existência, ouvir todas as melodias como se cada um pudesse sentir e entender o Outrem na sua totalidade sensorial e ontológica. Esse é o desafio da Política Jurídica para se elaborar a arquitetura da humanização do século XXI.
Notas e Referências:
[1] BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 21.
[2] BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 7. tir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007, p. 220.
[3] Recomendo ao leitor e leitora os seguintes escritos sobre o tema: http://emporiododireito.com.br/sobre-a-desnecessidade-da-lei-primeiros-fundamentos-de-politica-juridica-por-cesar-luiz-pasold-e-sergio-ricardo-fernandes-de-aquino/?doing_wp_cron=1488972191.6170620918273925781250; http://emporiododireito.com.br/legalidade-e-legitimidade/; http://emporiododireito.com.br/dualidade-da-seguranca-juridica/
[4] “A práxis apresenta o sentimento de urgência, o desejo de mudança, a inconformidade com a dominação. Associam-se, então, os ideários da ética e da justiça com a atitude de indignação face ao que não é ético e não é justo. É por esta razão que a práxis se distancia de uma prática utilitária e positivista, que trata, por exemplo, o problema da pobreza como um mal necessário com o qual se deve conviver, conformadamente”. PIRES, Cecília. Leituras filosóficas passadas a limpo: temas e argumentos. Passo Fundo, (RS): IFIBE, 2016, p. 32.
[5] “A autocrítica surge como os limites identificados pela auto-análise. Na ausência da primeira postura citada, observa-se a correnteza forte e livre do Ego no cotidiano sem qualquer preocupação ou apreço pelo Outro. O que se observa na vida de todos os dias é o choque das autojustificações. Quando, por exemplo, a violência se destaca de modo acentuado, aparecerão aqueles autoclassificados (e justificados) como “bons” sempre prontos a expurgarem o mau, o feio, o ineficaz, o marginalizado. [...] A auto-análise viabiliza o insight dos territórios desconhecido do Ego. Consegue-se, aos poucos, esclarecer cada local desse espaço cuja totalidade será sempre desconhecida por todos. Entretanto, na medida em que se torna possível enxergar as carências e limitações da Natureza Humana, pode-se avançar na tentativa de ser sempre mais humano, não obstante todas as suas dificuldades, especialmente naquelas que nutrem a religação da trindade indivíduo-sociedade-espécie”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Por uma cidadania sul-americana: fundamentos para sua viabilidade na UNASUL por meio da ética, fraternidade, sustentabilidade e política jurídica. Säarbrucken: Novas Edições Acadêmicas, 2014, p. 203.
[6] “Aspecto da Consciência Coletiva [...] que se apresenta como produto cultural de um amplo processo de experiências sociais e de influência de discursos éticos, religiosos, etc., assimilados e compartilhados. Manifesta-se através de Representações Jurídicas e de Juízos de Valor”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis: Editora da OAB/SC, 2000, p. 22. Grifos originais da obra em estudo.
[7] Recomenda-se leitura de: STAFFEN, Márcio Ricardo; DE AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes. A (in)viabilidade de uma cidadania ecológica global na américa do sul: reflexões a partir da ecosofia e da sensibilidade jurídica. Novos Estudos Jurídicos, v. 21, n. 3, p. 1084-1118, nov. 2016. Disponível em: <http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/9692>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[8] “[...] definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal definição seja aceita para os efeitos da ideia exposta”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 13. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 205.
[9] PASOLD, Cesar Luiz. Alexis de Tocqueville: percepção jurídica e política da Revolução Francesa. Novos Estudos Jurídicos, v. 15, n. 1, p. 27-45, jul. 2010. Disponível em: <http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2299>. Acesso em: 08 mar. 2017.
[10] PASOLD, Cesar Luiz. Alexis de Tocqueville: Percepção Jurídica e Política da Revolução Francesa. Novos Estudos Jurídicos. p. 28.
[11] MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 218.
[12] Essa mentalidade, conforme o autor “[...] se caracteriza pelo fato de que, historicamente, tenha a possibilidade de desvendar a incongruência entre suas ideias e suas condutas, mas, ao invés de o fazer, oculta estas percepções, em atenção a determinados interesses vitais e emocionais”. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. p. 219.
[13] "A utopia é valiosa e desejável justamente por seu contraste com o real, cujo valor repele e, por conseguinte, considera detestável. Toda utopia traz no seu bojo, em consequência, uma crítica do existente. E somente por se achar relacionada com uma realidade que é criticada por ser detestável, é que se faz necessária". SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Entre a realidade e a utopia: ensaios sobre política, moral e socialismo. Tradução de Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 316.
[14] A proposição da Ecosofia em Guattari é essa articulação ético-política entre três registros ecológicos: o ambiental, o das relações humanas e o da subjetividade humana. Segundo o mencionado autor, somente nessa interação - conflituosa, trágica - entre o "Eu" interior (subjetividade) e o mundo exterior "[...] - seja ela social, animal, vegetal, cósmica - que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infatilização regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza”. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, (SP): Papirus, 1990, p. 8.
[15] “[...] é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico”. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos interpretes – contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 14/15.
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Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.
E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.
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