Por Elisabeth Bittencourt – 26/06/2016
Como sempre, antes de começar a escrever, aparece um preâmbulo. Desta vez, o que me chega quer lembrar o momento em que, combinando com Agostinho Ramalho Marques a discussão que teria na Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro sobre as questões que vêm me acossando - desde que reiniciei minha experiência de educadora popular, agora com profissionais e agentes comunitários de saúde do vasto interior do Pará -, fui convencida por ele de que o incesto não era um crime. Logo eu, que critico o saber jurídico de tudo querer criminalizar?
Atordoada com a ideia de que o incesto não era uma figura típica do Direito Penal, mais impactada fiquei quando me dei conta de que não era só eu que pensava que o incesto era um dos maiores crimes da humanidade. A maioria dos psicanalistas - com os quais discuti a questão - não só não sabia desse enquadramento, como tentava se convencer de que não era possível que o incesto não fosse considerado um crime.
Como se já não bastasse o espanto de ouvir em Altamira depoimentos como: “O pai faz e a mãe larga no mundo”, ou a recorrente frase diante da violação do incesto, de que: “Sempre foi assim... Fui eu que fiz, eu que criei, então vou ser o primeiro”, banalizando uma suposta culpa, pois se sempre foi assim, alguma coisa da ordem dos costumes, apesar da interdição, dá essa permissão. E ainda por cima, o incesto não é penalizado como crime?
Sempre gostei do deslocamento antropológico com que o Maranhão e o Pará me presenteavam. Transitando entre esses espaços geográficos e antropológicos, frequentemente tinha a sensação de que aquilo que seria considerado como contemporâneo no dito Sul maravilha - como famílias chefiadas por mulheres - nessas outras regiões do país fazia parte da ordem dos costumes, afinal por que no Maranhão as mulheres camponesas me diziam que: “Pai é palha e mãe basta nome?” Isso por si só já não anunciaria a crise contemporânea do lugar do pai?
Pai, aqui, não enquanto pessoa, mas enquanto função, no sentido daquele que merece consideração, que vale a pena ser ouvido, pois representa uma autoridade que não se confunde com o autoritarismo. Pai que representa uma função de referência com o saber. Afinal quem é que se arrisca a falar nos dias atuais uma frase bastante comum em meados do século XX: “eu sei o que é melhor para você”! Os possíveis equívocos desse dito eliminam os efeitos de referência que destas palavras emanam? Lembro de um personagem do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles: “Pai só fala merda”!
Pai no sentido daquele que coloca o não como possibilidade da lei, do isso-não-pode, pois se estou interditada para certas coisas, é sinal de que outras coisas me são permitidas fora desse campo, trazendo outras possibilidades. Na Psicanálise existe uma discussão sobre se esse Não do Pai, que daria acesso à cultura e à lei dos cidadãos, poderia ser sustentado também por uma figura feminina. Creio que sim, mas tal questão apresenta outras nuances que mereceriam um maior aprofundamento e que acredito também interessarem ao Direito. Deixo apenas uma inquietação: nas famílias de classe média, em que pai e mãe passam a ter as mesmas atribuições, isso dificultaria a identificação dos filhos com a figura masculina e com a feminina? E o que dizer do pai da guarda compartilhada?
Eu, que fiz parte da geração que lutou pela mudança dos costumes, não desejo que as coisas voltem a ser como antes, nos tempos em que, como me disse uma mulher camponesa do Maranhão: “Não carece da mulher falar; na fala dele já tem a fala dela”. Lutei pelo direito de existir! Agora, trata-se de seguir adiante, rejuvenescendo, no sentido de atravessar as questões que nos surpreendem no nosso dia a dia. Como disse em algum trabalho antigo: o espanto é a nossa esperança para o futuro!
Aturdida então com tais questões me dei conta de que o campo do incesto anuncia o horror e não o crime. Foi isso que se abateu sobre Édipo em Tebas. Ele não sabia, antes, que havia infringido a lei do incesto, não foi punido pela lei da cidade por causa disso, mas a maldição se abateu sobre a cidade e ele, horrorizado, furou os próprios olhos.
- SOBRE A FAMÍLIA
Desde o século IV que Santo Agostinho anuncia o caráter fundamental da família: “A família humana constitui o início e o elemento essencial da sociedade” (ANSCHEN, 1971, p. 15). Sem me adentrar pela antropologia que tenta delinear desde as famílias primitivas, apresso-me a chegar em Lacan e deste patamar vislumbrar a família nos tempos atuais. Não no seu sentido antropológico organizador de toda a vida cultural e social, e sim no seu princípio estrutural na formação do psíquico destes seres falantes que pelo ato da fala já trazem a inscrição, para me lembrar dos gregos, de um certo destino de, no mínimo, mancarmos, tropeçarmos diante de nossa condição. Como dizia Freud: a condição humana é sem cura!
Lacan em seu texto “Os complexos familiares”, publicado em 1938, fala de uma família já bem distante dos dias atuais em que a velocidade é ditada pelo tempo da tecnologia que a humanidade sempre sonhou em construir. Sofremos hoje os efeitos danosos das famílias contemporâneas, da mesma forma que no século XX pagávamos o preço de seus desastres; no entanto, o sujeito psíquico parece precisar das mesmas condições para ir adiante. O bebê, pelo menos por enquanto, continua esculpido na própria imagem do desamparo: sem o outro, ele sucumbe.
O bebê nasce prematuro. Seu aparelho respiratório, digestivo, ainda não funciona a contento, além de que ele vive uma situação, para usar uma palavra meio chocante, parasitária. Isso tem consequências. Uma delas é que ele precisa mamar para sobreviver, ato que, realizando-se ou não pelo sugar do seio, será lembrado ou questionado pela futura criança. Sua vida depende então de um outro que cuida dele. É por isso que de vez em quando brinco dizendo que o amor vem da barriga.
Se esse início dá destaque à sua fusão com a mãe, essa dependência vai além dessa fase primordial, colocando já a questão que envolve os desafios que uma separação amorosa coloca para o resto da vida de nós todos. Lacan explicita essa situação no complexo do desmame, mas preciso ir adiante para colocar em relevo as outras funções “essenciais”, como diz Santo Agostinho, da família na formação destes seres moldados pela linguagem, que, em sua formação, se defrontam com um caldo pulsional paradoxal, em que estranhezas, como o sadismo, masoquismo, ou melhor, a própria sexualidade, escancara o lado sombrio e vertiginoso que nos habita. A sexualidade, se por um lado traz a possibilidade fundamental da reprodução da espécie, por outro apresenta forças cuja expressão mais radical e também longínqua é o cio cuja expressão espalha uma estupefação.
A sexualidade, com suas substâncias heterogêneas e humores estranhos, nos coloca na borda do transbordamento, dos excessos, colocando em cena uma violência primária que anima a festa dos excessos eróticos, tão comum aos nossos dias. Como diz Bataille, “A carne é esse excesso que se opõe à lei da decência” (BATAILLE, 1987, p. 86).
Por isso mesmo, desde o início, os humanos impuseram-se restrições, traçando assim uma cartografia de interditos que revelam a matéria humana. Interdições “sobre a atitude para com os mortos” e ainda, limites à sexualidade: “Ele escapou trabalhando, compreendendo que morria e passando da sexualidade livre à sexualidade envergonhada de onde nasceu o erotismo” (BATAILLE, 1987, p. 29).
Isso sem esquecer que a matéria prima dos limites e das interdições é a linguagem. A transmissão da língua materna é capaz de transformar, desculpem a expressão, um pedaço de carne em um rebento. A língua é uma tentativa precária de dar um contorno a esse ser que é atravessado por paixões violentas, por brutalidades precariamente contidas por interditos enunciados pelo sistema de sanções subjetivas e sociais. É um milagre que elas funcionem!
Convenhamos que, no meio de condições tão adversas – de um lado esse caldo pulsional que clama por realização, de outro, a necessidade suprema para a conservação da espécie de que os humanos convivam entre si com um mínimo de cordialidade -, o desafio é da ordem do impossível. Isso não é fácil de se transmitir e depende daqueles primeiros tatibitati que acontecem entre a mãe e todos aqueles que passam pela vida da criança, exercendo essa função materna. Esse percurso é cheio de percalços. Por mais que mães se esforcem ao máximo, haverá sempre equívocos, falhas, reações inesperadas, colocando em cena o inconsciente com todos os absurdos que ele comporta, fazendo da racionalidade um fator de conquista, de construção.
A linguagem é uma tentativa tímida – basta lembrar dos conflitos sociais que estão ocorrendo neste exato minuto na terra Brasilis – de construção de alguma ordem nesse caldo de excessos, e a família é a primeira instância responsável por essa tentativa de construção. Ela sempre falhou em sua missão hercúlea. Os desafios são da ordem do impossível e ela até hoje procura um formato que transmita um certo bem-estar, visto que o fantasma que assola a condição humana é o mal-estar, afinal, no final de tudo, a morte se apresenta como vertiginosa, fatal e enigmática, colocando em cena a face da violência.
A morte é a constatação inexorável do domínio da violência: “(...) que nos arranca da obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que nós somos” (BATAILLE, 1987, p. 16). Este seria o protótipo do monstruoso que nos cerca e nos habita!
- A LEI DO DESEJO
"Morrer... dormir! Dormir! Talvez sonhar! Sim, eis aí a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! Porque, se não quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno, quando ele próprio pudesse encontrar quietude com um simples estilete?". (SHAKESPEARE. Hamlet.)
O que faz os seres humanos insistirem em viver? Se fôssemos atrás de motivos, razões não faltariam para morrermos, conforme Hamlet enuncia. A precariedade da nossa situação de ser vivo e falante se exibe como cruel. Está exposta aos olhos a condição humana, em que os bens parecem ter sido destituídos de sua prometida grandeza.
Esse é o preço a pagar! O preço dos sonhos é cair no inferno dos desejos, becos sem saída, inconciliáveis, que indicam o nosso destino de sermos vivos e falantes - os únicos, aliás. A vida só exige a fala de nós, seres terrestres que foram além-de-si, unicamente por estarem aquém, uma eterna dívida com o desejo, com a própria criação.
O desejo é um conceito fundante na teoria e na prática da Psicanálise. É ele que aponta o dia seguinte: o que faz levantarmos matinalmente de nossas camas, a não ser o imperativo de que a vida continua? Se a vida não tem um sentido certeiro a não ser o da morte; o desejo por conta de um a menos sonha com um a mais, nem que seja para regar a planta do dia.
Em nossos dias, a patologia que expressa os costumes é a depressão, que escancara aos nossos olhos que é possível parar de desejar – parar de regar a vida - e o que é mais assustador: Isso se alastra pelo mundo. O humano no século XXI sofreu uma espécie de mutação antropológica como alguns psicanalistas vêm perguntando?
As famílias não são mais as mesmas, os costumes mudaram, o mundo global gira rápido e nos defrontamos diariamente com uma espécie de ideário que coloca “o prazer à frente do saber e prioriza a estética em detrimento da ética” (MELMAN, http://terra.com.br/istoe/1824/1824 vermelhas 02.htm).
O desejo para a psicanálise não é a vontade; em seu caroço, ele expressa a lógica do inconsciente, que tem no sonho seu modelo de funcionamento. Originário de uma miragem de satisfação - a alucinação -, aquela que faz com que o bebê continue prolongando o mamar com os lábios, mesmo quando não há mais seio – o desejo se alimenta da falta, para poder ir adiante. Essa é sua Lei! É porque falta algo que sigo em frente. Se não há falta o desejo capenga e o futuro despenca...
A alucinação seria, então, a primeira estrutura de todos os desejos. Todos os outros que vieram depois advêm desse primeiro mítico. E o que o desejo busca e não encontra é o objeto ideal, fruto da nossa fantasia de que um dia vamos encontrar algo ou alguém que dê tanta satisfação e amparo, que a vida vai fazer sentido para sempre.
Objeto ideal, prazeres ideais, satisfação eterna, estes são os motes que insistem em nossa existência, exigindo realização, jogando-nos no campo do gozo, conceito que Lacan recortou do Direito e da obra de Freud, que pôde escutar de seus analisandos; do ganho secundário que eles usufruíam de suas desgraças. Ou conforme Lacan nomeou: o gozo do sintoma.
O que aparece, então, é o encontro fracassado com o objeto e uma busca de satisfação impossível que cria os fantasmas, suportes necessários à ilusão do encontro com aquela satisfação primeira. A relação do sujeito com o objeto do desejo, que já sabemos ser fracassada desde sempre, é que vai indicar sua estrutura clínica: neurose, psicose e perversão. As estruturas clínicas presentificariam assim estilos diferentes de lidar com a falta que está escavada no objeto do desejo.
- A PERVERSÃO
A perversão é a estrutura clínica regida pela operação da renegação, que faz com que o sujeito afirme e negue ao mesmo tempo a Lei: não pode, mas mesmo assim... Freud, corajosamente, no início do século XX, afirmou que os traços perversos são constitutivos na formação do psíquico; no entanto é preciso distinguir o que é da ordem de um traço psíquico e da estrutura clínica.
Antes mesmo de colocar em questão se necessariamente a pedofilia é ou não é uma perversão, algumas considerações precisam ser feitas. A primeira delas, dada a repercussão que essa questão tem provocado, é perguntar o que é pedofilia. Quem são os pedófilos? Quem são as vítimas da pedofilia? A faixa de idade entre os supostos pedófilos e suas presas influenciaria no diagnóstico de sua estrutura clínica? Ou seja, as nuances dos casos precisariam ser levadas em conta?
A impressão que tenho é que todos já sabem quem é o pedófilo. A pedofilia causa tanto horror que o desejo de punição brande antes de qualquer interrogação. O terreno é minado e me vejo pisando em ovos, mas apesar dos escorregões, sigo adiante.
De pronto, surge uma imagem de um filme de rara beleza e profundidade: “Lavoura Arcaica” de Luis Fernando Carvalho, baseado na obra de Raduan Nassar. A cena em que a mãe inocentemente protegida da maldade do mundo – Só as mães são felizes! – afaga o seu filho pré-púbere entre os seios. Sabemos pelas palavras que o autor colocou na boca deste filho desta belíssima obra da literatura que Isso terá consequências...Teria esta mãe uma estrutura perversa? A mim, parece que não! Fantasio que se ela soubesse das consequências de seu ato, reprimiria tais impulsos. Será? Sigo adiante...
Se considerarmos a pedofilia enquanto uma perversão, nomeação que muitos psicanalistas sustentam, tal constatação precisará ser aferida no caso a caso. Nem todos os pedófilos são perversos! O perverso mantém uma relação com o objeto do desejo como se este não fosse faltoso e sim idêntico à sua fantasia, como se não houvesse interdições e leis. Ainda que ele vacile diante da constatação de que o objeto não é o que ele imagina, ele é empurrado por uma força pulsional, cujo imperativo do gozo o arrasta para o desejo de gozar com um objeto que ele próprio constrói, à revelia da pessoa que está em sua frente. A pessoa não importa! Ela não passa de um mero objeto destituído de qualquer autonomia: o outro é aquilo que ele quer que seja.
Para alguns psicanalistas estudiosos do assunto, o ato pedófilo não é considerado, ao contrário da significação corrente, necessariamente da ordem da violência sexual. Serge André considera a pedofilia como um amor em seu sentido mais paradoxal e amplo, desde o “registro platônico até o ato sexual mais cru” (ANDRÉ apud DIAS, 2009). A criança, nesse caso, representaria um amor ideal, como um jovem que não chegou à puberdade. Essa consideração parece ter uma inspiração grega nos tempos em que a sedução impúbere servia como ingrediente para a pedagogia. E nos tempos atuais? O que dizer?
Para Mauro Mendes Dias (2009), a pedofilia encontrar-se-ia no registro da atração sexual, distinta do “registro do crime sexual”. Trata-se de estabelecer, segundo ele, uma “diferença entre o registro da perversão sádica, aquela na qual o ato implica a destruição da vítima, e a perversão pedófila, aquela na qual a dita violência procura se estabelecer a partir de uma abordagem amorosa da criança”. Daí alguns relatos em que as crianças ficam encantadas com o suposto pedófilo.
No entanto, se por um lado, a pedofilia estaria desvinculada do campo do crime sexual, Isso não abranda as consequências do ato pedófilo. Há consequências, e elas são graves, nos levando a ter de levar em conta as sanções, mesmo desvinculadas do crime sexual. A pedofilia, enquanto ato que rompe com um pacto que organiza a vida social, como o direito das crianças, causa danos psíquicos, às vezes irreversíveis.
Estamos reinaugurando esse patamar de interrogações inaugurado por Freud quando, diante dos relatos de abuso sexual familiar, construiu o conceito de realidade psíquica. Do ponto de vista da Psicanálise, que não legisla, mas sobre o Direito exerce uma influência, se não uma psicanalista não seria convidada para falar em eventos como este que, diga-se de passagem, espalham-se pelo país, o momento é cheio de interrogações. A única via possível é se deixar tomar pelas interrogações e debater, conversar, perguntar por essas questões que lembram das origens da Psicanálise quando o velho Freud escutou de seus pacientes cenas de sedução infantil.
- SEMPRE FOI ASSIM...
Este foi o primeiro título que pensei em dar para este trabalho. No entanto, desisti da idéia por achá-lo muito estranho, mas no final das contas, não consegui renunciar a tal desejo. Encerro com essas palavras que, confesso, exigiram de mim que a antropóloga meio trôpega que me habita viesse à cena.
Desde que escutei pelos lugares por onde andei neste vasto interior do Pará, que fazia parte dos costumes ouvir do pai que ele, por ter feito, criado as filhas, tinha merecimento para ser o primeiro homem na vida delas, embaralhando o lugar do pai com o lugar do homem, desorganizando mais ainda o caos pulsional que nos constitui, fiquei pasma.
A partir daí fiz uma espécie de pesquisa independente, perguntando às mais diversas pessoas sobre esse dito que tanto me espantou. As respostas, em sua grande maioria, confirmavam esse dito popular que vinha acompanhado de um outro comentário: sempre foi assim... Lembro da resposta de uma psicóloga que trabalha na Ilha de Marajó à minha pergunta sobre a veracidade de uma matéria que saiu no Fantástico em que uma mãe vende sua filha por 400 reais. Assim ela me respondeu: sempre foi assim...
Se uma lei não encontra reconhecimento em sua cultura, ela não existe no cotidiano das pessoas. Para mim ficam muitas perguntas. Um certo mal-estar permeia essa infração? Uma interdição que não faz laço com o social diminui o índice de culpabilidade e isso interfere na posição daquele sujeito diante do desejo? Diante destas questões, o que poderia afirmar a respeito da estrutura clínica desses supostos pais?
O fato de o incesto não ser tipificado como crime pelo Direito Penal, não isenta os denunciados de sofrerem alguma sanção. As consequências psíquicas desse ato são graves, e na maioria das vezes, marcam o sujeito psíquico para sempre. Mesmo nos casos em que o sempre foi assim é uma regra familiar?
A riqueza de uma questão antropológica está na possibilidade de dissolver a temporalidade e nos colocar em estado de interrogação sobre a condição humana e seus costumes. Desde os gregos, agora já sei, a desobediência à lei do incesto, não encarna uma figura típica do Direito Penal, mas o fato de ter encontrado entre os mais diversos campos de saber pessoas que se espantaram pelo fato de o incesto não ser crime, me levou a perguntar de que se trata essa lei. Por que existe a crença de que o incesto seria um crime?
Diante desta pergunta, me apareceu de pronto que a lei do incesto está entre as Leis não escritas, aquelas a que Antígona, filha de Édipo, ao desobedecer a lei do Estado que a proibia de enterrar seu irmão Polinices, seguiu, sem vacilar, pagando com a própria vida.
Na belíssima tragédia de Sófocles, Antígona afirma que a ela só interessa cumprir as leis sagradas que não estão escritas em lugar nenhum. Sua irmã Ismênia ainda argumenta: “Queres realmente sepultá-lo embora isso tenha sido vedado a toda cidade?” (SÓFOCLES, s/d, p. 76) Antígona responde que não importa a vida ou a morte: “Meu sofrimento nunca há de ser tão grande quanto gloriosa será minha morte”. (SÓFOCLES, s/d, p. 78).
Termino este trabalho com muitas questões e muito poucas certezas. Mas não é assim que um campo de trabalho interdisciplinar – direito e psicanálise - é inaugurado?
Enfim... Como um resultado de muitas discussões, chego ao final deste trabalho com um comentário de minha amiga, a psicanalista Monica Visco: “Sempre foi assim está em todos os lugares...”. Ou seja: conforme o lugar se escancara ou se censura a questão, mas a questão está ali a nos espreitar...
Notas e Referências:
ANSCHEN, Ruth Nanda. A família: sua função e destino. Coordenação de Ruth Nanda Auschen. Lisboa: Ed. Meridiano, maio/1971.
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
______________ O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
DIAS, Mauro Mendes. Por uma Outra significação da Pedofilia. Palestra proferida na Escola de Psicanálise de Campinas (SP), 2009.
LACAN, J. Outros Escritos. Os complexos familiares na formação do Indivíduo (p.29-90). Tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Jorge Zahar, Campo Freudiano no Brasil, 2003.
MELMAN, Charles. Entrevista à repórter Celina Côrtes, Revista Isto é. Disponível em http://terra.com.br/istoe/1824/1824 vermelhas 02.htm.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SÓFOCLES & ÉSQUILO. Rei Édipo. Antígone. Prometeu acorrentado. Tradução J. B. Mello e Souza. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
SÓFOCLES.Três Tragédias gregas. Antígone. Prometeu prisioneiro. Tradução Guilherme de Almeida, Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 1997.
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Elisabeth Bittencourt é Psicanalista e Escritora. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
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