Seletividade penal e Auxílio Emergencial: uma análise do agravamento da exclusão penal na pandemia COVID-19      

24/07/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Inúmeráveis já são os problemas socioeconômicos agravados pela pandemia do COVID-19, diante do imprescindível isolamento e, após inúmeras discussões, finalmente houve a concessão do auxílio emergencial por parte do governo federal. O programa visa auxiliar nas necessidades básicas de indivíduos de baixa renda, permitindo que sobrevivam. Após alguns debates políticos no Congresso Nacional, o Ministério da Economia concedeu um programa temporário para o pagamento de renda no valor de 200 reais, estabelecido pelo Ministro Paulo Guedes. Não obstante, o Poder Legislativo ampliou esse valor para 600 reais mensais, através do Projeto de Lei 9236/17. Com efeito, há restrições ao recebimento do auxílio, que não encontram fundamento senão na seletividade penal. 

Dentre o excesso burocrático no acesso ao benefício é importante ilustrar a clara exclusão feita a partir dos impedimentos relacionados aos marginalizados, como os familiares de pessoas presas, impedidos do recebimento do auxílio por conta dessa posição[1].

Se a seletividade penal já é clara com a mera análise quantitativa, o sistema penal é apresentado falsamente como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas possíveis conduta incriminadas,” quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas'. (As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário”[2]). Isso porque vivencia-se um Direito Penal brasileiro em que contém, em sua população carcerária, 61,7 % de presos pretos ou pardos; vale lembrar que 53,63% da população brasileira contém essa característica[3]. Pode-se usar então de um discurso de que a maioria dos brasileiros são criminosos? Não, isso é apenas reflexo dessa seletividade penal. E essa, não se restringe apenas a questão racial; pretos, pobres, mulheres, deficientes, analfabetos, são todos alvos de um Direito Penal brasileiro excludente, seletivo e punitivo. Portanto, vê-se como consequência e exemplo dessa seletividade, as restrições ao recebimento do auxílio aos presidiários, estendendo também aos seus familiares[4]:

[…] Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes […] que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contacta com ele[5].

 Para concretizar esse conceito, basta analisarmos a retenção do auxílio emergencial aos familiares de preso, que nada tem a ver com seus crimes, mas ainda assim arcam com os desdobramentos do discurso Jurídico-Penal. Segundo o pronunciamento dado pelo Dataprev[6] “o Ministério da Cidadania estabeleceu, ainda que de forma não definitiva, a restrição da concessão do auxílio emergencial a requerente ou membro de grupo familiar”[7]. Em resposta ao parecer dado pelo Dataprev, o procurador do Ministério Público Federal, Júlio Araújo, denotou que: “embora o secretário executivo do Ministério da Cidadania tenha afirmado que não houve restrição a parentes de pessoas presas que preencham os requisitos do benefício, a resposta da Dataprev aponta informação em outro sentido”[8].

De acordo com o Decreto 10.316/2020, artigo 3°inciso III, não podem receber o benefício as famílias que já recebem algum outro subsídio do governo (salvo o bolsa família). No caso de alguns apenados, há o Auxílio Reclusão (Lei 8.213/1991) que, de acordo com dados do INSS, é recebido por menos de 5% das famílias (aproximadamente 31.700 recebem essa assistência)[9]. Assim, há claramente uma incoerência nesse cenário, onde há mais de 39.251 pedidos do Auxílio Emergencial ainda aguardando resposta[10], ou seja, pelo menos 7.551 requerimentos de auxílio emergencial estão estagnados sem motivo aparente.

O Auxílio Reclusão foi deferido a partir de Medida Provisória n° 871/2019, e posteriormente Lei 13.846/2019. Dentre seus requisitos, como por exemplo o art. 80, há, de forma ampla, a restrição de recebimento apenas para presos de regime fechado. Pode-se notar que essa burocracia seria, na verdade, uma forma de impedir o acesso do que realmente selecionar os que mais necessitam, visto que excluem a maioria das famílias, se mostrando uma forma de minimizar o Auxílio Reclusão. O discurso de exclusão ratificado com o impedimento ao auxílio é reflexo dessa seletividade penal. 

Atualmente, 75% dos encarcerados segundo o Depen, possuem somente o ensino fundamental completo e não possuíam salário ou atividade laboral formal antes da prisão. Consideremos então uma população carcerária de quase 812 mil presos, na qual 609 mil possuem até o fundamental completo, ou seja, são de baixa renda e em sua maioria sobrevivem de subemprego. Ora, essas informações por si só justificam a imprescindibilidade na obtenção desse auxílio[11].

Dessa forma, é notória a controvérsia do discurso jurídico-penal, no qual tem em si institucionalizado a seletividade e o preconceito, sendo prova disso, o conflito ocorrido entre o auxílio emergencial e reclusão. Os órgãos governamentais, legitimadores do discurso penal pregam a ressocialização como propósito; em contrapartida, a prática vai de desencontro ao ponto definido, uma vez que tange à realidade a ilusória teoria discursiva. Com relação ao auxílio reclusão, vemos uma tentativa gradativa de abranger menos famílias -deixando a mercê diversas que realmente carecem -, numa tentativa de quase encerramento, do que realmente selecionar os que necessitam. No tocante ao auxílio emergencial, temos, na prática, uma defasagem econômica- social, na qual milhões de brasileiros fragilizados pela crise, necessitam do auxílio para sua subsistência, e mesmo assim não adquirem. Portanto, todo esse cenário é apenas reflexo de um Direito Penal cada vez mais distante do seu intuito, numa constante luta contra si mesmo

 

Notas e Referências

[1] Revista Época Negócios, São Paulo, 14 de mai de 2020. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2020/05/epoca-negocios-governo-nega-auxilio-emergencial-para-parentes-de presos.html#:~:text=No%20texto%20enviado%20ao%20Minist%C3%A9rio,Sistema%20Penitenci%C3%A1rio%20(Depen)%2C%20do>. Acesso em: 23 de jun. de 2020.

[2] RODRIGUES, Douglas; LARA, Mahila Ames de. Governo dificulta acesso ao auxílio-reclusão e total de benefícios cai 20%. Poder 360, 2019. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/governo/governo-dificulta-acesso-ao-auxilio-reclusao-e-total-de-beneficiarios-cai-20/>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

[3] De acordo com pesquisa em 2018 feita pelo Infopen, um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, desenvolvido pelo Ministério da Justiça.

[4] BATISTA, Nilo; Introdução crítica ao direito penal. 11ª edição. Rio de Janeiro; Ed. Revan, 2007.

[5] ZAFFARONI, R. E., En busca de las penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001;

[6] TONDO, Stephanie. Governo restringe acesso de familiares de presos ao auxílio emergencial de R$ 600. Extra, Rio de Janeiro, 14 de maio de 2020. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/economia/governo-restringe-acesso-de-familiares-de-presos-ao-auxilio-emergencial-de-600-24426784.html>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

[7] MONTEIRO, Felipe Mattos; CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/espen/Aseletividadedosistemaprisionalbrasileiro.pdf>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

[8] BRASIL. Ofício nº 222/GM/ACS. Ministério Público Federal, Belo Horizonte, 11 de maio de 2020. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/2020/acp_auxilio-emergencial_covid-19.pdf>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

[9] SISTEMA carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão. Câmara dos Deputados: Comissão de Direitos Humanos, 2018. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>. Acesso em: 25 de jun. de 2020.

[10] AUXÍLIO-reclusão: desmistifique boatos e entenda quem realmente tem direito. INSS, 2018. Disponível em: < https://www.inss.gov.br/auxilio-reclusao-desmistifique-boatos-e-entenda-quem-realmente-tem-direito/>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

[11] GASPARIN, Gabriela. Apesar de leis, ex-presos enfrentam resistência no mercado de trabalho. G1, São Paulo, 17 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2010/12/apesar-de-leis-ex-presos-enfrentam-resistencia-no-mercado-de-trabalho.html>. Acesso em: 18 de jun. de 2020.

 

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