Segurança hídrica

13/01/2019

Introdução.

Embora o tema segurança hídrica seja recorrente, as iniciativas e as práticas envolvendo a gestão dos recursos hídricos ainda está distante de superar as necessidades de equilíbrio entre o consumo humano/agroindustrial e a “produção de água”.

Dados da Organização das Nações Unidas dão conta de que a população mundial cresce exponencialmente, saindo de 2.6 bilhões de pessoas em 1950 para 7.6 bilhões de pessoas em 2017. O incremento populacional tem serias implicações em quase todos os aspectos da vida, notadamente nas questões relacionadas com a saúde, o envelhecimento, a migração em massa, a urbanização (habitação, saneamento básico, abastecimento de alimentos) e o acesso a água potável[1].

Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de um bilhão de pessoas carece de acesso a um abastecimento de água potável suficiente para suprimir as necessidades básicas e vitais e dois terços da população mundial vivem em áreas com escassez de água por período não inferior a um mês durante o ano[2].

A demanda por água, considerando o crescimento populacional, deve aumentar ainda mais em razão da crescente urbanização (com a organização dos sistemas municipais de abastecimento e saneamento), com o uso intensivo da água na agricultura (produção de alimentos), na indústria e, especialmente, na geração de energia.

Em sentido contrário está a gestão hídrica, que compreendendo a dimensão da crise hídrica do planeta não implementa ações planejadas para a “produção de água”; definida como sendo as ações públicas ou privadas tendentes a conservar olhos d’água, nascente de água, córregos, rios, lagoas, dentre outras formas de mantença dos recursos hídricos.

Mas a gestão hídrica não cinge apenas o equilíbrio entre consumo e capacidade de “produção de água”, havendo a necessidade de considerar outros problemas de ordem natural que impactam diretamente na quantidade de água e na qualidade da água. É o caso dos problemas que decorrem das mudanças de climáticas, responsável pela alteração do regime de chuvas ou pela superveniência abrupta de calor intenso ou de inundações, causando a ocorrência de eventos hidrológicos extremos.

A crise hídrica e o desenvolvimento socioeconômico.

De acordo com o PERCY SOARES NETO e VALMIR PEDROSA[3] a crise hídrica afeta o desenvolvimento econômico e social de quatro formas:

Seca e inundações afetam negativamente a qualidade de vida, causam mortes, provocam êxodos e destroem ativos das pessoas, da sociedade das empresas;

Sendo a água um vital valor de produção, sua falta reduz a quantidade de e serviços produzidos, podendo ocasionar queda do PIB regional ou mesmo nacional.

Secas e inundações causam doenças e subnutrição, prejudicam a qualidade da educação – especialmente das crianças -, desestruturam e inibem a atividade econômica e diminuem o capital humano;

Secas acirram os ânimos entre países, regiões e estados que dividem a mesma água, tornando a cooperação econômica e social mais complexa e difícil.

A água doce é um recurso frágil e finito, estando sob forte pressão crescente com o aumento da população, com a contaminação por esgoto doméstico, industrial ou oriundo de agrotóxico e, ainda pelo uso na agricultura e na indústria.

A correta utilização dos recursos hídricos e o incremento de políticas públicas e privadas na “produção de água” são essenciais em razão da água ser um fator, primeiro, de sobrevivência humana, atrelado à saúde e à nutrição; e segundo, ser um fator de produção, pois, com a restrição do suprimento de água pode haver a redução do crescimento econômico, gerando o fechamento de postos de trabalho e a diminuição da arrecadação de tributos – atingindo o erário público e indiretamente as políticas sociais.

Nesse sentido, veja-se o fenômeno da crise hídrica que assolou a região sudeste do Brasil. São Paulo, por exemplo, que não possuía registro de escassez hídrica, enfrentou em 2015 um período de extrema estiagem, com a redução do volume dos reservatórios para além dos limites da segurança hídrica, como foi o caso do sistema Cantareira.  

Estudos realizados na Universidade de São Paulo – USP[4], indicam a existência de indícios claros de que a crise hídrica que atingiu o município de São Paulo afetou direta e indiretamente a sociedade e a economia.

Foram publicadas diversas reportagens que relatam aspectos pontuais que a crise de abastecimento de água, nos anos 2014 e 2015, gerou, tratando das implicações de caráter social e econômico da crise da água, como aumento da procura por fontes alternativas, aumento de reclamações sobre o custo da água e a sua falta, entre outras questões.

Dentre os aspectos econômicos, existem relatos, desde o ano 2014, sobre o prejuízo para as indústrias e o comércio na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)  decorrentes da restrição de água para esses setores (Martins, 2015). Entretanto, ainda não existe um estudo sistematizado que estabeleça a relação entre a crise hídrica e as consequências socioeconômicas no município de São Paulo. Mas há muitas evidências de que esse processo ocorre de forma silenciosa e, ainda, sem a devida repercussão. Não é possível, porém, avaliar as consequências isoladas dessa ocorrência em razão de vivenciarmos uma forte crise econômica nacional desde 2014.

As consequências das crises hídricas estão diretamente relacionadas à redução na produção de alimentos e, consequentemente, de segurança alimentar, da restrição da produção industrial, e na diminuição da atividade econômica, principalmente na redução no abastecimento público de água, afetando o bem-estar da população. Como existe uma demanda crescente de água nos centros urbanos, uma crise hídrica leva a um aumento das consequências negativas das atividades socioeconômicas associadas a ela (Rijsberman, 2006).  

(...)

Os impactos socioeconômicos da crise hídrica

As consequências das crises hídricas estão diretamente relacionadas à redução na produção de alimentos e, consequentemente, de segurança alimentar, da restrição da produção industrial, e na diminuição da atividade econômica, principalmente na redução no abastecimento público de água, afetando o bem-estar da população. Como existe uma demanda crescente de água nos centros urbanos, uma crise hídrica leva a um aumento das consequências negativas das atividades socioeconômicas associadas a ela (Rijsberman, 2006).         

Um estudo realizado em 2015 (Veldkamp, 2015) associando variações hidroclimáticas e condições socioeconômicas mundiais, durante o período de 1960 a 2000, mostrou alguns aspectos importantes: há uma clara interação entre as variações hidroclimáticas e as condições socioeconômicas. Entretanto, essa interação somente é percebida depois de alguns anos, dependendo das condições locais de variações hidroclimáticas como armazenamento ou estresse hídrico. Nesse sentido, mesmo que existam indícios das consequências socioeconômicas em São Paulo, em decorrência da crise hídrica, de acordo com esse estudo, ainda há um lapso de tempo para que se percebam essas alterações. Mas essas evidências ficam mascaradas por um crise econômica em nível nacional que alterou a dinâmica econômica nesse período.        

É importante destacar que, na escala nacional, por exemplo, a crise hídrica afetou negativamente inflacionando os preços dos alimentos, o uso de termoeletricidade (mais cara que a hidrelétrica) e contribuindo para o aumento crítico da inflação, sobretudo entre 2014 e 2015. Em 2016, no contexto de crise econômica, o Brasil sofreu redução de 3,6% de seu Produto Interno Bruto (PIB); todavia, a redução apenas no setor agropecuário foi de 6,6%, ou seja, influenciando na redução do PIB nacional nesse período (Saraiva; Salles, 2017).        

De fato, algumas reportagens já mostram que a crise da água proporcionou aumento nos custos das atividades econômicas, principalmente do setor de serviços no município de São Paulo. Donos de restaurantes que sofreram com a falta de água mudaram de hábito para poder contornar a crise. Os estabelecimentos têm procurado aumentar a capacidade de armazenamento de água com baldes ou caixas sobressalentes para superar os cortes no fornecimento de água, ou mesmo substituindo as louças por descartáveis. Esses custos convencionalmente são repassados aos consumidores (Rede Brasil, 2015). Com uma inflação relativamente alta no Brasil entre 2014 e 2016 (IPCA/IBGE – 2016 - 6,29% a.a.; 2015 - 10,67% a.a., 2014 – 6,41% a.a.), fica difícil perceber se os aumentos de preços em estabelecimentos do município de São Paulo estão diretamente associados à crise hídrica.

Outra estratégia dos empresários/proprietários foi buscar novas formas de abastecimento para os seus estabelecimentos ou residências. Há informação de que houve um aumento significativo de solicitações de outorga de poços artesianos ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE),2 e que os preços para a perfuração estão bastante inflacionados (o valor médio do metro linear atingia, em março de 2015, R$ 400 a R$ 700). Há dois anos, os valores eram de 20% a 40% menores (Santiago, 2015; G1, 2015a).

Por outro lado, houve uma política de incentivo à redução de consumo de água pela população em geral. Utilizando mecanismos de mercado, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) atuou no sentido de reduzir a demanda de água da população com incentivos para a redução de consumo e penalização para quem aumentava o seu uso.  

A Sabesp iniciou, em fevereiro de 2014, um programa de desconto financeiro de 30% para aqueles que reduzissem seu consumo de água em pelo menos 20% em relação à média antes do início da crise hídrica (fevereiro de 2013 a janeiro de 2014). Esse programa foi iniciado primeiramente no município de São Paulo, depois passou a vigorar em 31 municípios da Região Metropolitana de São Paulo e em municípios da Região Metropolitana de Campinas e região de Bragança Paulista. Em dezembro de 2014 foi ampliado o desconto oferecido pela Sabesp para os consumidores domésticos que economizassem 10% a 15% de água (com 10% de desconto financeiro) e 15% a 20% de água (com 20% de desconto financeiro) (Alessi, 2015). No entanto, entre dezembro de 2014 e junho de 2015, foi autorizada pela agência reguladora do setor (Arsesp) que a Sabesp realizasse dois aumentos de tarifa: em dezembro de 2014 o aumento foi de 6,49%; em junho de 2015 houve aumento de tarifa de 15,24%, o que resultou em aumento na conta de água de 22,68% a partir de dezembro de 2014 para todos os usuários. Esses reajustes geraram um aumento no número de reclamações recebidas pela Sabesp (Arcoverde, 2015a).

Cabe observar que a justificativa para a solicitação do aumento foi o “desequilíbrio financeiro” relacionado à crise hídrica, conforme Alessi (2015):  

Segundo a empresa, um dos maiores vilões que provocaram a queda das receitas da estatal foi o Programa de Incentivo à Redução do Consumo, adotado no ano passado. Cwom descontos de até 30% na conta de quem usasse até 10% menos água, a medida fez com que a Sabesp deixasse de arrecadar 376,4 milhões de reais, segundo o balanço financeiro apresentado na semana passada. O consumo diário de água per capita na região metropolitana caiu de 163 litros por habitante para 126 litros.

Desse modo, é interessante avaliar como uma medida econômica adotada para diminuir o uso de água, que obteve resultado positivo sobre a redução do consumo de água pela população, resultou em perdas financeiras para a empresa concessionária de abastecimento de água. Entretanto, há uma redistribuição dessas perdas, por meio da concessão de aumentos importantes no valor do metro cúbico consumido.

Há um outro aspecto a ser destacado: a Sabesp possui contratos de demanda firme com alguns grandes consumidores de água, o que lhes garante uma tarifa diferenciada,3  que estimula o consumo caso ultrapassem o estabelecido em contrato. Esse incentivo perverso aumenta o consumo irracional de água pelas empresas (Martins et al., 2015).     

Em resumo, os impactos socioeconômicos da crise hídrica no município de São Paulo foram pouco sistematizados e isolados do contexto geral, mas foram sentidos diretamente no aumento de itens específicos, como preços da água mineral, apresentados a seguir. Entretanto, podem-se verificar aumento de custos na busca de opções de suprimento no comércio e serviços, incentivos de redução de consumo atrelados ao aumento de tarifas e aumento de reclamações por falta de água em diversos pontos da cidade.

Assim, ainda que a sistematização e a comprovação científica dos impactos da crise hídrica para a sociedade e para a economia sejam de difícil comprovação, é certo que a redução na oferta de água afeta a oferta a sociedade pelo aumento no custo da água ou pela questão sanitária e, na econômica, pelo aumento dos custos na produção ou pela redução no ritmo de processamento de bens industrializados, com fechamento de postos de trabalho ou, até mesmo, com a suspensão de investimentos (seja investimento para expansão do negócio ou para implantação de novas industrias).

Segurança hídrica.

O conceito de segurança hídrica, segundo a Organização das Nações Unidas e o Plano Nacional de Recursos Hídricos afigura-se como sendo a capacidade de a população ter acesso à água em quantidade e qualidade adequada para manutenção da vida e do bem-estar humano. A água se encontra no centro do debate da agenda da Organização das Nações Unidas para 2030, cujo objetivo é erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir a paz e a prosperidade.

Para   PERCY SOARES NETO e VALMIR PEDROSA (2018, p. 85), o enfretamento dos impactos da baixa segurança hídrica exige ações que podem ser agrupadas em três eixos:

Reduzir a exposição aos riscos decorrentes dos extremos hidrológicos que tornarão as chuvas mais incertas e variáveis com a adoção da gestão de risco ao invés da gestão de crise;

Otimizar o uso da água através de planejamento e incentivo, implementando mecanismos negociado de alocação de água com foro em setores de maior valor agregado e maior influência no uso da água;

Expandir o investimento em saneamento, universalizando o atendimento de água e o tratamento de esgoto e melhorando a eficiência na prestação do serviço.

A ideia, portanto, é cambiar a gestão de crise, vigente no Brasil, por uma gestão de risco que seja capaz de planejar as cidades do Brasil para o futuro e não para o proveito político imediato.

Conclusão.

Conclui-se, pelo exposto, que a segurança hídrica é elementar para a humanidade, pois, os impactos de uma crise hídrica podem ultrapassar a mera percepção de “falta de água”, alcançando aspectos sociais, econômicos e ambientais que comprometem a existência no/do planeta.

Dentre as estratégias para alcançar a segurança hídrica, verifica-se que a gestão de risco, através do planejamento e do monitoramento dos diversos fatores que permeiam e fazem interface com a crise hídrica, pode ser um primeiro instrumento a ser adotado como política pública.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em https://nacoesunidas.org/acao/populacao-mundial/. Acesso em 10 de jan. 2019.

Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/População_mundial. Acesso em 10 de jan. 2019.

[2] Disponível em https://nacoesunidas.org/acao/agua/. Acesso em 10 de jan. 2019.

[3] NETO, Percy Soares, PEDROSA, Valmir. Construindo a segurança hídrica. Vitória: GSA gráfica e editora, 2018.

[4] Disponível em http://www.iea.usp.br/publicacoes/ebooks/livro-branco-da-agua. Acesso em 10 de jan. 2019.

 

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