SEGREGAÇÃO URBANA, REURBANIZAÇÃO, DIREITO À MORADIA E A LEI 13.465/17: CONFLITOS E ANÁLISES A PARTIR DA TEORIA LEFEBRVIANA DA CIDADE.  

13/06/2020

Coluna Espaço do Estudante 

O processo de urbanização Brasileiro ascendeu tardiamente se relacionado à outros países, em virtude de uma série de fatores. Um deles, a economia essencialmente agrária. Se nos reportarmos à história, já nos primeiros anos de dominação como colônia de exploração, inexistiu qualquer tipo de prescrição ou regulamentação de normas de urbanização/planejamento por parte da Coroa Portuguesa. Os efeitos da omissão foram sentidos não muito tempo depois, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, que presenciou diversos problemas sociais, como epidemias e um crescimento desordenado, tanto em termos de espaço, quanto de moradia. Em virtude disso, no final do século XIX, houve a massiva demolição de habitações populares e cortiços, bem como a desocupação compulsória de populações vulneráveis que já habitavam lugares remotos, o que culminou na formulação de Planos de Melhoramento e Embelezamento que marcaram o período.

Destaque-se o plano de “modernização” levado a cabo por Pereira Passos no início do século XX, sob a influência da Escola Francesa de Urbanismo, a pretexto de organizar a cidade aos moldes Europeus, representou na prática, uma vez mais, o agravamento do processo de degradação das classes sociais, através de um discurso sanitarista que segundo Giovana Bonilha Milano, subsidiava as práticas segregacionistas, associando os cortiços e as moradias populares a espaços de desordem moral, estética, arquitetônica e higiênica. Os planos de higienização tiveram efeito diverso daquele pretendido pelo Poder Público, pois a impossibilidade de viver nos cortiços, seja por demolição ou a elevação do preço dos alugueres, fez com que a população passasse a ver como solução, a ocupação de morros lindeiros e a construção de barracos, de onde se pode inferir o surgimento das favelas.

É somente a partir da década de 70 em diante, que o Brasil estabeleceu um conjunto de políticas urbanas fortes, como resposta à situação de crise que foi deixado após o golpe de 1964.  Foram empreendidos esforços significativos na criação de um Banco Nacional da Habitação – BNH, o Sistema Federal de Habitação, e as respectivas Companhias de Habitacionais (Cohabs).

Superado esse contexto, o direito à moradia passou a ser objeto de pactos e tratados internacionais, que firmam direitos e obrigações. No Brasil, a partir da nova ordem ideológica progressista assumida na Constituinte de 1988, a habitação foi introduzida no ordenamento como um direito social, (artigo 6°), juntamente com legislações ordinárias e decretos que surgem posteriormente para complementar esse arcabouço jurídico. Assim, regulamentou-se não só o direito à moradia, a despeito do Programa Minha Casa Minha Vida – Lei 11.977/09, mas também a estruturação da cidade, e com ela as questões de reurbanização e regularização fundiária, como por exemplo a Lei 10.252/02 (Estatuto da Cidade), Lei 6.766/79 (Parcelamento do Solo Urbano) e recentemente, a Lei 13.465/17 (Regularização Fundiária Rural e Urbana).

A Lei 13.465/17 foi projetada com o objetivo precípuo de estabelecer um conjunto de políticas urbanas de regularização fundiária e reformulação de políticas urbanas, e assim, uma tentativa de reurbanização. Trata-se de estabelecer uma série de diretrizes e instrumentos jurídicos legais que possam ser empreendidos na legitimação da moradia. Contudo, esse importante instrumento jurídico optou por revogar quase a totalidade dos artigos que anteriormente previam as chamadas ZEIS – Zonas Espaciais de Interesse Social. O plano diretor do município de São Paulo, datado de 2014 por exemplo, determinou que 60% do que for construído na ZEIS-3, deve ser destinado à quem recebe menos de 3 (três) salários mínimos, concedendo o direito dos atuais moradores de permanecer na área. Agora, as ZEIS são uma política urbana facultativa de competência dos Municípios, que sem o incentivo do governo federal, tendem a perder força. Com esse exemplo, pode-se afirmar com segurança que o direito à moradia e o acesso à cidade restam prejudicados.

O direito à moradia perpassa e integra o conceito de direito à cidade que sob a ótica Lefbreviana, deve ser compreendido como modo de vida não restrito aos limites da cidades.  Ao contrário: [...] “a construção do direito a cidade depende fundamentalmente, da ação política da sociedade civil organizada e de estudos que possibilitem construir uma teoria geral dos tempos-espaços urbanos.”O direito à cidade então, não se perfectibiliza sem o acesso à uma conjuntura de ações políticas da sociedade civil organizada. O direito à cidade se perfaz através de narrativas antagônicas, de conflitos de interesses. Se faz com acesso à estrutura e à moradia que a cidade pode oferecer aos seus habitantes.

É certo que existem inúmeros remédios que prometem dar conta do problema social em comento. Cite-se por exemplo, a desapropriação por interesse social de propriedades improdutivas, concessão especial para fins de moradia, usucapião coletiva, consórcio imobiliário, zoneamento especial de zonas de interesse social, etc.). Por certo. A Constituição nos traz como objetivo da política de desenvolvimento urbano, “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade” A Lei 10.252/02 faz menção à, direito à cidades sustentáveis, terra urbana, à moradia, infra-estrutura urbana. Mas o que acontece é que uma série de outros fatores e personagens acabam minando essas políticas públicas de ação, as discussões, e o enfrentamento ao problema social. Segundo Raquel Rolnik, o direito à cidade e o direito à moradia são/estão constantemente ameaçados, o que torna esses instrumentos de reurbanização e regularização fundiária, por vezes fracos, ineficazes e/ou insuficientes.

A modernidade possibilitou a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro, com a consequente financeirização dos direitos, incluindo a habitação, que por consequência afeta o processo de produção do espaço. Deste modo, tem-se uma produção capitalista do espaço, e este torna-se mercadoria que se realiza como extensão da propriedade privada do solo urbano e da terra. Nesse sentido, o Estado quando estabelece financiamentos habitacionais com as instituições financeiras, acaba mantendo uma relação de simbiose com estas, sendo conivente com as altas taxas de juros praticadas, bem como com os inúmeros requisitos burocráticos – principalmente o quadro socioeconômico da família - que dificultam/inviabilizam o acesso ao crédito. O Estado é um personagem de alto gabarito, ele contribuiu no espraiamento da própria arquitetura simbólica da moradia como mercadoria e ativo financeiro.

Além disso, o entendimento atual que se possui de direito à cidade e à moradia se limita à uma concepção estritamente legalista de padrões estéticos, e adequação das construções ao planejamento urbano (nos municípios com mais de 20 mil habitantes). Essa frágil política urbana e habitacional dá lugar à especulação fundiária e imobiliária que através de expertise e know-how, possibilita dois momentos de acumulação, segundo Ana Fani Alessandra Carlos: quando o setor financeiro se apropria do espaço como lugar possível de realização do investimento produtivo, e quando o setor imobiliário reproduz (aliado à indústria da construção civil), constantemente o espaço enquanto mercadoria consumível. Outra consequência dessa financeirização da cidade é a gentrificação, braço da segregação social. Trata-se de um fenômeno que resulta na substituição da população mais pobre que ocupa um espaço renegado da cidade, por grandes empreendimentos imobiliários que prometem a revitalização da área, para que a classe média/alta possa habitá-las. Neil Smith que segue a concepção recortada por David Harvey, afirma que esse fenômeno repete a higienização social.

Nessa esteira, o Estado também através do Poder Judiciário, integra os elementos de reforço à segregação socio espacial nas cidades brasileiras, pois concebe, os assentamentos irregulares (tanto os coletivos quanto os individuais) como formas de transgressão à ordem jurídica e à ordem urbanística, à despeito da lei civilista atual, que é calcada num modelo de propriedade francês exclusivista e incompatível com a Constituição de 1988. O Poder Judiciário ao julgar conflitos fundiários geralmente coletivos e envolvendo movimentos sociais que demandam terra e moradia, aplica a lei civilista à revelia dos princípios constitucionais. Isso porque há evidente antinomia entre a ordem constitucional que fala em função social da propriedade, e o Código Civil que parece favorecer um modelo de propriedade inflexível. Não se veem críticas ao poder normativo infraconstitucional, bajulando-se o proprietário individual que possui o título justo de sua propriedade, por vezes, improdutiva, o que acaba garantindo a perpetuação desse modelo da propriedade ultrapassado. O instituto civilista atual não responde mais às novas transformações sociais que estamos vivenciando, que afetam principalmente bens móveis e imóveis. É incompatível. Os modelos atuais de propriedade são os de economia compartilhada, por exemplo, aplicativos como Airbnb, locação de imóveis simplificada com sites como o QuintoAndar, Uber, Grinn entre outros.

Pensar o direto à cidade e o direito à moradia na era das financeirizações é complexo. Na vida cotidiana, a segregação urbana vai revelando as suas estratégias pérfidas: uma delas, recentemente orquestrada em São Paulo, no canteiro do Viaduto da Estação Carandiru, onde foram colocados “obstáculos” no local onde cerca de 450 moradores dormiam. Essa estratégia de higienização social e segregação se repete na história, e uma vez mais o Estado, como um agente à serviço do capital e das classes dominantes, materializa o desejo de descarte e retaliação da sociedade moderna. Não há resposta pronta para retirar a angústia causada pelos problemas habitacionais/urbanos.

É preciso dar força aos instrumentos legais reconhecedores dos diferentes tipos de ocupação do solo, nas áreas urbanas e rurais. Simplificar o processo. É a chamada premissa da segurança jurídica da posse, uma importante diretriz jurídica, ditada por organismos e pactos Internacionais os quais o Brasil ratificou (ONU, PIDESC, Decl. Univ. de Dir. Humanos e outros) que preserva o direito de permanência e repudia remoções forçadas.

O caminho é orquestrar alternativas para a mitigação das consequências da gentrificação habitacional, fomentar ações políticas de reforma ou construção de grandes conjuntos habitacionais em propriedades improdutivas. Incentivar o reaproveitamento de propriedades urbanas improdutivas e inutilizadas. Pensar uma habitação que transcenda a especulação imobiliária e contenha os efeitos mortíferos do capital. Lutar pelo fortalecimento, aprimoramento e resistência dos Planos Diretores[1] que fortifiquem a reurbanização humana e barrem demolições. Redesenhar a cidade. A metageografia (FFLCH-USP) como categoria de análise teórica, que entende a produção do espaço como construção social, e representação de nossas relações sociais têm muito a nos ensinar.

 

Notas e Referências

CARLOS, Alessandri Fani Ana. Crise Urbana. 1. ed., reimpr., São Paulo: Contexto, 2018.

HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. 1. ed., São Paulo: Editora Annablume, 2005.

HARVEY, David. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas. In: Revista Espaço e Debates. São Paulo, Cortez, nº 6, jun./set., 1982 apud MARICATO, Erminia. Habitação e Cidade. São Paulo: Editora Atual, 1997.

LEFEBVRE, Henri. Direito à Cidade. 1. ed., São Paulo: Editora Moraes, 1991.

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: Alternativas para a crise urbana. 6. ed. São Paulo: Editora Vozes, 2011.

MARICATO, Hermínia. Habitação e Cidade. Wanderley Loconte (coord.) São Paulo: Atual, 1997.

MILANO, Giovanna Bonilha. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016, 248 fl. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/44636.

NADER, Laura. 1994. Harmonia Coerciva: A Economia Política dos Modelos Jurídicos. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. n. 26: 18-29.

ROLNILK, Raquel. Guerra dos Lugares. A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2015.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 5. ed., São Paulo: EDUSP, 2013.

SANTOS, Milton. A Urbanização Desigual: A Especificidade do Fenômeno Urbano em Países Subdesenvolvidos. 3. ed. 2. reimpr., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

SMITH, Neil. A gentrificação generalizada. In: BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine. Introdução. De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.

VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DEAK, Csaba e SCHIFFER, Sueli Ramos. (orgs.) O Processo de Urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2015.

[1] A Universidade de São Paulo – USP, através da FAU, e do Observatório de Remoções realiza esse trabalho de monitoramento, e orientação jurídica desde 2015, especialmente à Comunidade do Campos Elíseos, no distrito de Santa Cecília. Na ocupação vivem pessoas que esperam há anos pela construção de conjuntos habitacionais, reformas, ou mesmo a regularização da propriedade através do justo título. Destaque-se de igual maneira grupo de pesquisa LabCHIS – Laboratório de Cidades Humanas, Inteligentes e Sustentáveis vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, o Observatório de Direito Urbanístico da UFSC vinculado ao Programa de Pós Graduação em Direito - PPGD, bem como a elaboração e viabilização do PLAMUS259 - Plano de Mobilidade Urbana Sustentável da Grande Florianópolis, principal projeto piloto do LabCHIS

 

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