SE EU ESTIVER A SER SINCERO HOJE, QUE IMPORTA QUE TENHA DE ARREPENDER-ME AMANHÃ?

08/04/2020

Em tempos de pandemia e da miríade de dúvidas atraídas por qualquer tentativa de imaginar os próximos capítulos da História da Humanidade, a busca por conforto[1] nas artes e, especialmente, na literatura tem feito obras como A Peste, de Albert Camus e, Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, despontarem nas vendas[2]. Foi Saramago, aliás, quem perguntou – exatamente como antecipado no título deste opúsculo – “se eu estiver a ser sincero hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã?”

O talento literário do conhecido Nobel português antecipou, em alguma medida, parte das discussões havidas ao longo da última semana entremeio às sístoles e diástoles que puseram em movimento o Projeto de Lei 1.179/2020[3] e correlata tentativa de edificação de regras – excepcionais e com vigência temporária – voltadas ao balizamento de algumas das respostas que o Direito Privado deverá dar, quiçá, ao largo dos próximos meses e, eventualmente, para além do referido corte cronológico.

A ideia de um projeto de lei é deveras bem-vinda.

E o é tanto por buscar regrar importantíssimas questões que dizem respeito à vida das pessoas, à saúde pública, ao equilíbrio dos contratos e à proteção da economia – atualmente, todas elas, imersas em cenários de inconteste angústia e incerteza – como por apresentar-se ao mundo de forma democrática e republicana[4] desde a sua concepção, concordemos (ou não) com o seu conteúdo, mostrando estar bastante distante do autoritarismo habitualmente impregnado às Medidas Provisórias.

Para que leitores e leitoras possam decidir se irão em frente ou elegerão degustar textos que podem oscilar entre contos escritos por talentosos russos que viveram no século XIX e frugalidades publicadas nas páginas da Caras optamos por antecipar que este opúsculo se limitará a tecer algumas poucas linhas acerca da tentativa de modificação temporária do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor aventada no artigo 8º do Projeto de Lei supracitado.

Um texto formado por palavras encontradas em algum recanto situado entre a inspiradora lição de Saramago e a percepção do fato de que se aquela sinceridade a ser externada por alguém vier a se manifestar em um contrato de consumo celebrado fora do estabelecimento comercial entre março do corrente ano e – ao menos, por ora – o próximo 30 de outubro, talvez possa haver, sim, reflexos afetos ao arrependimento estimulado pelo próximo despertar do sol.

As notas espalhadas por esta(s) página(s) parecem ganhar relevância também quando se nota que de algum modo elas podem envolver todo o universo emoldurado por aquilo que convencionou-se denominar comercio eletrônico e, consequentemente, muitos dos contratos que nós, privilegiados pela Fortuna, certamente pactuaremos enquanto o isolamento social se impuser.

A ideia de escrever sobre o assunto surgiu no contato com aquilo que nos pareceu ser o texto originalmente gestado e consoante o qual “até 30 de outubro de 2020, fica[ria] suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de produto ou serviço adquirido por entrega domiciliar[5]”.

É preciso dividir com os leitores o imediato incômodo sentido no estômago quando nossos olhos sobrevoaram tais linhas. E também o fato de que isso nos trouxe à mente o teor do artigo 49 da lei consumerista: “o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”.

 Ainda que tenhamos de forma muito clara que o atual momento vivido exija medidas extremas – o que inclui restrições, temporárias, ao exercício de direitos fundamentais, notadamente, o caso do Direito do Consumidor –, a regra sugerida pelo Senador Anastasia nos pareceu despida de qualquer sentido, também porque, ela parece ter sido proposta no exato momento em que as pessoas mais precisam buscar a satisfação de necessidades de diversas ordens no comércio eletrônico.

Tentamos identificar que razões justificariam a privação da possibilidade de exercer o direito de arrependimento garantido no Código de Defesa do Consumidor naquelas situações nas quais os consumidores percebam, ao receber suas encomendas, que (a) o produto adquirido é maior ou menor, mais opaco ou fosco, claro ou escuro, leve ou pesado, frágil, delicado ou grosseiro et cetera que o imaginado no momento da conclusão do contrato ou, ainda, (b) não possua a funcionalidade antecipada, portanto, não sirva aos propósitos mais íntimos imaginados por seres que não são tão racionais como apregoam os clássicos[6].

E caso se busque encontrar alguma resposta para a provocação delineada no parágrafo anterior entremeio aos aspectos afetos à logística, nos parece bem mais razoável trabalhar a regra de excessão por meio da manutenção do registro do exercício do direito formativo extintivo de arrependimento no prazo legal de 7 dias, editando-se uma regra de excessão que legitime a dilação temporal para restituição (pelo consumidor) ou busca (pelo fornecedor) do produto não mais desejado, obviamente, um direito que seria obstado na hipótese de uso do bem em questão, afinal, nemo turpitudinem suam allegare potest. De outra banda, caso o intuito tenha sido reduzir a circulação de entregadores para fins que não sejam essenciais como o abastecimento de alimentos[7], induzindo-os a se ocuparem da entrega de bens essenciais, a solução antecipada igualmente não parece mais adequada, em especial, porque se de um lado esses trabalhadores seguirão nas ruas – e, portanto, talvez fosse melhor regrar o uso obrigatório de equipamentos que permitam a proteção dessas pessoas – de outro, alguns nichos de mercado parecem estar crescendo o que exige que essas mesmas pessoas sigam a sua sina.

Percebam que sequer cogitamos o fato de o produto adquirido estar quebrado, estragado, partido, espatifado, fragmentado, estilhaçado, esfacelado, despedaçado, fraturado, rompido, enguiçado, danificado, avariado, rachado, fendido ou trincado ou, ainda, o fato desse mesmo produto distanciar-se das indicações constantes no recipiente, na embalagem, na rotulagem, nas condições delineadas na oferta ou mesmo na mensagem publicitária divulgada por qualquer meio, pois, nesse caso, a questão diria respeito a um vício do produto.

E como podem intuir nossos leitores e leitoras, caso eventualmente viesse a ser aprovado o texto de lei tal qual concebido, todos teríamos problemas quanto à possibilidade de nos arrependermos da aquisição de quaisquer bens adquiridos via comércio eletrônico, pouco importando se o ato de comércio tenha derivado de nossos desejos mais sinceros e profundos ou dos muitos impulsos aos quais somos sujeitados pela Sociedade de Consumo.

No mais, como permitiu escapar a intertextualidade de alguns dos parágrafos anteriores, no momento em que escrevemos essas notas, a maior parte do mundo está resguardada ou resignada em suas casas, com a imensa parte do comércio de rua, à exceção dos serviços essenciais, fechada. É essa a diretriz em grande parte dos Estados, bem como, dos estados que compõe o nosso Estado e, ante à ausência de vacina ou medicamentos que possam prevenir e tratar a doença, o isolamento segue sendo a conduta mais adequada.

Nesse cenário, que muito lembra os cenários roteirizados em filmes distópicos, a tecnologia e as suas plataformas têm sido uma das principais responsáveis por permitir algum contato entre as pessoas, as famílias e a economia. Hodiernamente, segue sendo possível, como antes, adquirir um sem número de bens e serviços – por meio do comercio eletrônico – sem sair de casa e, tal hipótese é, ao menos para aqueles que podem estar em suas casas e apartamentos, a socialmente mais segura. E não é difícil perceber que muitas sociedades empresárias que atuam no meio eletrônico poderão ver aumentar suas vendas e a demanda por seus serviços de entrega, lucrando com isso, fato que, ainda que não seja um problema, não pode passar despercebido quando se quer atribui ao consumidor o ônus atado a escolhas consideradas ruins ou, simplesmente, desnecessárias.

Daí que os argumentos apresentados – ao menos, assim nos parece – legitimam a crítica a redação original do Projeto de Lei 1179/2020 que aniquilaria, ainda que por apenas algum espaço de tempo, uma conquista histórica de consumidores que (a) não podendo ter contato físico com o produto ou serviço que adquiriram ou contrataram ou, ainda, simplesmente, que (b) foram sido impulsionados pelo cativante canto de sereias escravizadas pelo Mercado, têm garantida a possibilidade, no prazo legal de 7 dias a contar do recebimento da mercadoria, de desistir do negócio sem nenhuma justificativa.

E é assim, como antecipado, porque o querer nem sempre será, como gostaria Saramago, sincero. Longe disso, muitas vezes ele será equivocado, outras, guiado por algoritmos[8] espalhados através do Big Data e que conduzem as pessoas a comprarem bens que não correspondem, exatamente, ao imaginado a partir do contato dos olhos com signos criados para encantar.

A manutenção do sistema protetor do consumidor não parece onerar sobremaneira os serviços de entrega. Com ela, mais que isso, seria mantido absoluto respeito à Constituição, algo que não pode ser esquecido, embora seja fácil, quando o clima é de emergência.

No pior dos cenários, um alento.

O teor do artigo 8º aprovado na última sexta feira é bastante mais restritivo que o original. Ao dispor que “até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (direito de arrependimento) na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos”, reduz a margem de possibilidades de lesão aos consumidores. Resta, enfim, caso aprovada a retrocitada regra pela Câmara dos Deputados, a tarefa de fazermos alguns acordos hermenêuticos acerca do que sejam (a) produtos perecíveis, (b) de consumo imediato e (c) medicamentos ...

 

Notas e Referências

[1] Ou, para os bem-afortunados, escape do tédio do confinamento.

[2] BBC. G1, Rio de Janeiro, 12 mar. 2020. Disponível em <<https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/03/12/a-peste-de-albert-camus-vira-best-seller-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus.ghtml>>. Acesso em 07 abr. 2020.

[3] Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).

[4] O que inclui a participação ativa de juristas notáveis como o professor Rodrigo Xavier Leonardo, da Faculdade de Direito Universidade Federal do Paraná que tem na generosidade, lealdade, inteligência e conhecimento do direito privado algumas de suas características mais destacadas.

[5] Senado da República. Disponível em <<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1585934129559&disposition=inline>>. Acesso em 07 abr. 2020.

[6] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

[7] SCHREIBER, Anderson. MANSUR, Rafael. O projeto de lei de regime jurídico emergencial e transitório do Covid-19: importância da lei e dez sugestões de alteração. Disponível em <<https://andersonschreiber.jusbrasil.com.br/artigos/827105547/o-projeto-de-lei-de-regime-juridico-emergencial-e-transitorio-do-covid-19>>. Acesso em 02 abril 2020.

[8] SUMPTER, David. Dominados pelos números: do Facebook e Google às fake news – os algoritmos que controlam nossa vida. São Paulo: Bertrand Brasil, 2019.

 

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