Coluna Espaço do Estudante
Há poucos dias terminei de ler “Se a Rua Beale falasse”, de James Baldwin, escritor estadunidense, negro, homossexual, filho de pai viciado em drogas consideradas ilícitas e enteando de um pastor evangélico. Com maestria, Baldwin conta a história de Fonny, homem negro, preso suspeito de ter estuprado uma mulher latina e negra. Tish, sua jovem esposa, e também negra, mesmo grávida tenta provar a inocência do homem que ama. Esse resumo não é capaz de expressar o quão essa obra é rica e angustiante. Para Baldwin, o negro, além da cor da pele, é um marcador social que segrega, oprime, rejeita. É um signo que, infelizmente, sujeita os indivíduos às mais deprimentes injustiças sociais.
Não tive como não ler este Baldwin sem fazer um paralelo com o livro “O Sol é para todos”, de Harper Lee, mulher, estadunidense, branca, filha de um advogado e de uma mulher que sofria de doenças mentais. Esta é uma das obras mais fantásticas que já li. O livro é narrado em primeira pessoa pela pequena Scout, de 8 anos. Ela mora na cidade de Maycomb, no sul dos EUA, juntamente com o pai, Atticus Finch, que é advogado, o irmão e uma babá. Dentre as diversas aventuras narradas, o eixo principal do livro é o julgamento de Tom Robinson, um jovem negro que é acusado de estuprar uma branca. Atticus, profissional ético, defende Tom, e Scout narra os dilemas e questões sociais durante esse processo de defesa. A história se passa na década de 1930. Tem-se que se lembrar que nesse período, em diversos estados do sul dos EUA estavam vigentes as conhecidas Leis de Kim Crow, que impunham a segregação racial.
“O Sol é para todos” é um livro que fala sobre Justiça. Fazer Justiça, na acepção mais pura do termo, numa realidade de injustiças e opressões, é um dos grandes desafios sociais. Justiça que Tish, personagem de Baldwin, tenta fazer com o marido no decorrer da narrativa. Os dois livros contam, de maneiras extraordinárias, histórias de busca por Justiças.
As duas obras foram lançadas no século passado, porém, os problemas sociais neles descritos ainda persistem. As questões raciais permanecem sendo alguns dos maiores entraves para o pleno desenvolvimento mundo afora. Os espaços “reservados” aos negros ainda não são tão agradáveis quanto aos ocupados pelos não-negros.
A cadeia é um desses locais. Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), sob responsabilidade do Ministério da Justiça, revelam que cerca de 67% da população carcerária brasileira é formada por pretos e pardos. Continuamos a rotular os criminosos. É frase desgastada, mas tem de ser dita: nosso sistema penal tem público-alvo preferencial. O cárcere sempre teve um destinatário certo. Angela Davis (2019), negra, ativista social e grande propagadora do abolicionismo penal (tenho uma certa resistência em relação à essa teoria criminológica, até mesmo por ser um cidadão imerso numa cultura punitivista), afirma que, nos Estados Unidos, pós-abolição da escravatura, criou-se leis que tinham como propósito restringir a liberdade dos negros.
No Brasil, adotou-se a mesma (i)lógica. O Código Penal de 1890, com vigência iniciada dois anos após a abolição formal da escravatura, tipificava, ou seja, criminalizava as condutas de vadiagem (art. 399), que tornava criminoso o indivíduo que deixasse de exercer uma profissão (parece irônico se não fosse perverso exigir que o negro liberto tivesse uma profissão num país que não tinha política pública para isso), e de capoeiragem (art. 402), prática cultural dos negros. Com isso, o Direito Penal se aparta da sua função “nobre” de conter o excesso de poder do Estado e se aproxima do controle social de indesejáveis (CASARA, 2017).
Essa superlotação das cadeias é um projeto de governo. As prisões estão repletas de pretos, pobres e favelados em sua grande maioria. O pior, muitos desses pretos, pobres e favelados estão presos “preventivamente” sem nunca terem sido, sequer, julgados. Temos um Estado-Juiz que não cumpre sua função a contento, que é julgar. Esperava-se que o artigo 316, do Código de Processo Penal, que tinha passado por uma nova redação com a Lei Anticrime (Lei 13.964/19), mitigasse esse problema. O dispositivo deu um prazo de 90 dias para que a prisão preventiva fosse revisada pelo órgão que emitiu a decisão. Porém, agora o dispositivo perdeu o efeito, foi esvaziado pelo STF pós-André do Rap.
O nosso distorcido e injusto combate às drogas, também importado dos Estados Unidos, é outro fator que contribui como grande esmagador de pretos, pobres e favelados nas nossas cadeias. Só para exemplificar, a linha que separa um traficante de um mero usuário de drogas é a linha da cor da pele que está intrinsecamente amarrada à linha da desigualdade social. Tenham certeza que se um branco, da zona azul brasileira, morador do asfalto, for pego com um cigarro de maconha não terá o mesmo tratamento que será dado ao preto, pobre e favelado que for flagrado com a mesma quantidade da mesma droga.
A segregação, a repressão e a injustiça têm seus marcadores étnicos, sociais e culturais. A seletividade penal distorce a realidade e incrimina sem provas. Esvaziando-se a cidadania, cria-se inimigos a serem combatidos. Só que esses inimigos têm cores e classes sociais definidas. E esses preconceitos, no sentido de se conceber um culpado antes do devido processo legal, lota o cárcere, destrói vidas e causa injustiças.
No Brasil, os negros não são maioria apenas nas cadeias, mas também nas estatísticas relativas à violência letal. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), cerca de sete em cada dez vítimas de homicídios no país são negros (74,4%). Quando levadas em consideração as mortes ocasionadas por policiais, as vítimas negras são 79,1%, ou seja, oito de cada dez mortes. Os policiais negros também são maioria no índice de assassinados: 65,1%. Ainda em 2019, 66,6% das mulheres vítimas de violência doméstica e sexual eram negras. Ser negro é, infelizmente, ser reduzido a números que doem.
Saindo das masmorras racistas preconceituosas e segregacionistas da realidade e retornando à ficção. Em “Se a Rua Beale falasse”, Baldwin retrata a prisão como o local onde os brancos despejam os negros. Em diversas passagens ele relata o cuidado e o temor que a personagem Tish tinha que seu marido, Fonny, fosse preso. Quando resolveram morar juntos, o casal foi para uma casa no bairro Village, reduto boêmio frequentado por brancos de Nova Iorque. O autor retrata a perseguição constante de um policial, branco, ao casal. Na prisão, onde estava injustamente, Fonny tenta manter a humanidade, tenta não se desconectar do amor por Tish. Porém, a desesperança, quanto à liberdade, quanto à Justiça, é algo escancarado e que deixa o leitor angustiado.
Ainda no livro de Baldwin, vamos agora para a Rua Beale, que se destacou no título. A Beale Street não fica na Nova Iorque desenhada por Baldwin, fica na cidade de Memphis, no estado do Tennessee. Nenhum fato do livro se passa na Rua Beale. Quem lê o romance fica à procura da referência. Mas, não há uma citação direta. Antes de explicar o porquê é preciso dizer que a Rua Beale é considerada o berço do blues, gênero musical que surgiu das cantorias dos escravizados que eram forçados a trabalhar nas plantações de algodão.
O blues é um ritmo negro na sua origem. E é na Rua Beale que ele cria forma e toma o mundo. O único indício no romance de Baldwin que nos leva à Memphis é o fato de ele citar canções de diversos cantores, negros iguais a ele, que fizeram sucessos com o blues (e também com o jazz). Nas páginas vemos referências a B. B. King, Aretha Franklin, Ray Charles, Billie Holiday e Marvin Gaye.
O que Baldwin queria com a Beale, do Blues, no título era fazer com que os negros se sentissem originários do mesmo local. Do local onde surgiu um dos mais importantes gêneros musicais do mundo. No local, onde negros usaram a música para abafar a dor. O Brasil, com sua riqueza cultural, também tem suas ruas Beales, onde ecoavam os batuques, maxixes, jongos e lundus, como mostrou Martha Abreu (2017) no livro “Da Senzala aos Palcos: canções escravas e racismo nas américas 1870-1930”.
Os embalos das letras e das páginas das obras de Baldwin e Harper Lee, com suas histórias do século passado, nos mostram que as mazelas sociais se perpetuam e não veem fronteiras. A exclusão social, o racismo e as demais formas de preconceitos ainda persistem e permanecerão, infelizmente. Foucault (2019) nos dá esse banho de realidade quando afirma que “a humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela (a humanidade) instala cada uma de suas violências em um sistema de regras e prossegue assim de dominação em dominação” (p. 69). Por isso, que a luta e o combate às injustiças devem ser constantes.
É preciso que o Direito, mais ainda, que o Estado Democrático de Direito seja usado como forma de conter as barbáries sociais e jurídicas. Cabe destacar que a Justiça não está restrita aos tribunais, ela deve ocorrer nas filigranas das relações sociais, nas oportunidades que são democratizadas, no respeito que é compartilhado, na empatia. Como é próprio da literatura, Baldwin e Harper Lee também queriam isso nas suas obras, que nós nos colocássemos no lugar do outro. Sentíssemos as angústias do outro. Que nós nos colocássemos nos lugares de algozes e de vítimas e entender o porquê daquelas injustiças. Entender o porquê de o sol não nascer para todos.
Notas e Referências
ABREU, Martha. Da senzala ao palco: Canções escravas e racismo nas Américas 1870-1930. E-pub da Editora da Unicamp, 2017.
BALDWIN, James. Se a Rua Beale falasse. Tradução de Jorio Dauster. 1ªed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Portal da Legislação. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em: out. de 2020.
BRASIL. Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Portal da Legislação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.ht>. Acesso em: out. de 2020
BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Portal da Legislação. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: out. de 2020.
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). 2019. Disponível em:< https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN2ZlZWFmNzktNjRlZi00MjNiLWFhYmYtNjExNmMyNmYxMjRkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>. Acesso em: out. 2020.
CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2017.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas. Tradução de Marina Vargas. 3ªed., Rio de Janeiro: Editora Difel, 2019.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário brasileiro de segurança pública. Edição 2020. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf>. Acesso em: out. 2020.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. 10ª ed., Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019.
LEE, Harper. O Sol é para todos. Tradução de Beatriz Horta. 17ª ed., Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2017.
VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3ª ed., São Paulo: D’Plácido, 2020.
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