“Se a cidade fosse nossa”: a luta por direitos humanos no Rio de Janeiro

27/10/2016

Por Enzo Bello – 27/10/2016

Há um ano e meio, o movimento “Se a cidade fosse nossa” vem realizando atividades com os mais diversos setores da sociedade carioca com o intuito de construir uma plataforma popular de governo para a cidade do Rio de Janeiro. Busca-se, assim, articular demandas e propostas oriundas de cidadãos, comunidades, universidades, escolas, sindicatos, movimentos sociais, coletivos, associações de moradores, trabalhadores informais, órgãos e profissionais técnicos, entre outros setores, com o objetivo de se inovar e democratizar decisões públicas, que, há muito, privilegiam uma concepção privada, empresarial e mercadológica de cidade.

Atualmente, esta plataforma está pública e oficialmente apresentada à população pela candidatura de Marcelo Freixo e Luciana Boiteux (PSOL), no segundo turno da disputa eleitoral pela prefeitura da segunda metrópole brasileira. Por estes e outros motivos adiante apresentados, considero a cidade do Rio de Janeiro como o mais frutífero laboratório vivo para a compreensão do cenário contemporâneo das lutas por direitos humanos.

Mesmo antes do contexto dos megaeventos esportivos internacionais (sobretudo, Copa do Mundo e Olimpíadas), a cidade do Rio de Janeiro catalisa com muita intensidade e peculiaridade um feixe de temas centrais no âmbito do chamado direito à cidade: moradia, mobilidade, saúde, educação, propriedade e posse, saneamento, alimentação, renda, cultura, comunicação, entre outros.

Embora reconhecido normativamente pela ONU, em 2006, como uma nova forma de promoção dos direitos humanos, a construção do direito à cidade é muito anterior à jurídica, pois articulada a partir da realidade social em diversas áreas do conhecimento. Sua principal característica é a multipli(cidade) como atriz e ambiente que (re)constitui subjetividades individuais e coletivas, práticas sociais e territórios.

Mostra que a questão territorial confere maior concretude às lutas por direitos humanos, tirando seus titulares de guetos sociais ou abstrações técnicas. A consideração das perspectivas geográfica e urbanista permite ao jurista colocar os pés no chão da realidade social. Assim, conhecendo onde e como têm lugar as disputas concretas envolvendo os cidadãos de carne e osso que, por eles, juristas, são homogeneizados e inviabilizados no manejo de normas genéricas e abstratas.

Tanto na perspectiva socioeconômica da luta de classes, quanto no prisma político-cultural da luta por reconhecimento, o direito à cidade permite uma interseção de demandas e sujeitos de direitos humanos, contemplando trabalho, renda, identidade, nacionalidade, etnia, gênero, sexualidade, acessibilidade.

Os direitos humanos só têm efetividade se concebidos em concreto, em disputa, além dos castelos judiciais e das operações de hermenêutica/argumentação. Nesses espaços e com essas práticas, julgadores leigos em termos de conhecimento presencial das situações em questão ponderam interesses jurídicos em tese e relativizam nos casos concretos dignidade, habitação, saúde, integridade física e mental, entre outros direitos.

Há muitos temas que permitem uma incursão no campo das disputas em torno do modelo de cidade, como, por exemplo, segurança pública, transportes, mobilidade, saneamento… Neste texto, escolhi dois: moradia e carnaval. Estes simbolizam a tensão entre o projeto de “cidade empresarial” que vem sendo implementado no Rio de Janeiro por um consórcio entre poder público e iniciativa privada, de um lado, e as ações de resistência cidadã protagonizadas por uma diversidade de sujeitos que lutam por direitos humanos, de outro.

Primeiramente, o tema da moradia. Em tese, espera-se de qualquer governo a efetivação, não a violação de direitos humanos. A primeira hipótese ocorre mediante políticas (que deveriam ser) públicas e construtivas. No caso da habitação, com uma finalidade popular, a partir de (i) expropriações/desapropriações de terrenos/edifícios sem função social da propriedade ou da cidade, (ii) financiamento (antes pelo BNH e SFH, hoje via Programa Minha Casa Minha Vida), ou mesmo (iii) construção direta. Todavia, no caso da cidade do Rio de Janeiro, a Prefeitura promove políticas públicas (?) destrutivas.

Ou seja, o poder público (Guarda Municipal, Defesa Civil etc.) literalmente destrói moradias através de um plano de remoções forçadas, que, desde 2009, já vitimou mais de 20 mil famílias, cerca de 67 mil pessoas[1]. A tônica é a de um estado de exceção normativo, no qual agentes públicos praticam ilegalidades supostamente em prol da legalidade, inclusive sem respaldo normativo ou contra decisões judiciais.

Há estigmatização de cidadãos mediante pixações realizadas em suas casas da sigla “SMH”, que corresponde à Secretaria Municipal de Habitação e sinaliza que serão demolidas. Finalidade: abertura de espaço para a construção de edifícios empresariais e residenciais de luxo em zonas estratégicas da cidade, inclusive em áreas de preservação ambiental, para atrair investimentos… privados, é claro.

Exatamente nesses termos, o caso mais simbólico de luta pelo direito à cidade é o da comunidade da Vila Autódromo[2], criada na década de 1970 por pescadores (maioria de retirantes nordestinos) e localizada na zona oeste da cidade, na interseção dos bairros da Barra da Tijuca, de Jacarepaguá e do Recreio, ao lado do terreno do extinto Autódromo Nelson Piquet e do atual Parque Olímpico.

A Prefeitura tentou reiteradamente remover toda a comunidade e destruir as suas casas para substituí-las por um estacionamento que atendesse o equipamento olímpico. Apesar da existência de autorizações estatais para o uso do terreno para fins de moradia[3], a Prefeitura desejava lhe conferir outra destinação e, para tanto, lançou mão de artifícios administrativos, judiciais, policiais e até de atos violência nos quais foram agredidas pessoas idosas e indefesas.

O caso ganhou visibilidade midiática, inclusive na comunidade internacional, a partir de denúncias de Raquel Rolnik, professora da FAU-USP, então relatora especial para o direito à moradia na ONU.

A resistência dos moradores (protagonizada pelas mulheres) e de uma rede de apoio à luta da Vila foi decisiva para evitar que todas as casas fossem a baixo e para que fosse mantido o sentimento coletivo numa comunidade plural. Isso, apesar das estratégias da Prefeitura de fracionar a comunidade para o esvaziamento das casas, de modos voluntário (“indenizações” pecuniárias) ou involuntário (cassetetes e tratores).

Poucos meses antes das Olimpíadas, já com a chegada da imprensa estrangeira à cidade, a Prefeitura desistiu da remoção integral e ofereceu unilateralmente um plano de urbanização, ao passo que foi popularmente elaborado o Plano Popular da Vila Autódromo[4], que ensejou a reconstrução de parte das ruas, casas e instalações para serviços sociais. A área atualmente ocupada pela comunidade abrange cerca de 10% da original. Ao seu lado foi construído um hotel de luxo de empresa multinacional.

Em segundo lugar, tem-se o tema da cultura do carnaval. Considerado a maior festa popular de rua do mundo, o carnaval na cidade do Rio de Janeiro é um dos mais tradicionais e atrai milhões de turistas anualmente. Além dos desfiles de escolas de samba no sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí, com acesso pago, nas últimas décadas foram retomados e ampliados com intensidade os blocos de rua nos bairros, de acesso gratuito.

Nesse cenário, sob o discurso de promover o carnaval e aumentar o turismo na cidade, a Prefeitura adotou uma postura de privatização do espaço público e de violações a direitos humanos. Adiante, dois exemplos.

(i) exigência de deferimento de autorização pelo poder público municipal para o desfile de blocos de carnaval em vias públicas, com locais e horários predeterminados. Camuflada sob um discurso de necessidade de cadastro para fins de “organização, limpeza etc.”, essa medida significa um controle arbitrário sobre valores constitucionais, tais como as formas de manifestações das culturas populares (art. 215, CF), a liberdade de expressão artística (art. 5, IX, CF) e a liberdade de reunião (art. 5, XVI, CF).

Como resistência, diversos artistas têm organizado blocos de carnaval “piratas”, que se recusam a pedir tal autorização e desfilam nas vias públicas, inclusive em locais e horários conhecidos do grande público. A Guarda Municipal costuma coibir esses desfiles e os ensaios prévios ao carnaval, desligando as luzes de postes e até agredindo músicos e foliões.

(ii) comercialização pela Prefeitura para uma conhecida empresa multinacional de um suposto “direito” de exclusividade de propaganda e venda de bebidas nas vias públicas. Elaborada pela sua Secretaria de Ordem Pública, a política do “choque de ordem” promove uma repressão ostensiva ao comércio popular, com atuação incisiva da Guarda Municipal na apreensão, especialmente durante o carnaval, de qualquer mercadoria vendida nas ruas que seja fabricada por outras empresas. Com isso, tem-se um monopólio que restringe o direito ao trabalho dos comerciantes ambulantes (art. 6, CF) e o direito de escolha dos cidadãos-foliões-consumidores (art. 170, IV, CF).

Na resistência, os camelôs são personagens imprescindíveis da história viva da identidade da cidade e da cultura da festa do carnaval de rua, protagonizando episódios que inspiraram músicas populares como “Miséria S/A”[5], da banda O Rappa, e “Camelô”[6], de Edson Gomes.

Apesar da tentativa de disciplina dessa atividade com a tramitação do PL 779/2010[7] na Câmara de Vereadores, a truculência do poder público municipal, intensificada em tempos de megaeventos esportivos internacionais, restringe o acesso dos trabalhadores informais a certas zonas da cidade e impede a sua atividade profissional. No cotidiano, o “rapa” da autoridades recolhe - geralmente sem registros em autos de apreensão - mercadorias que seriam vendidas para o sustento de muitas famílias.

Como resposta, há atuações individuais e organizações coletivas, como o Movimento Unido dos Camelôs (MUCA)[8], de resistência aos abusos das autoridades que caracterizam os camelôs como cidadãos ativos. Além das estratégias criativas de improvisos para a sobrevivência e a proteção das mercadorias (“corre”, “pulo”, “rolo”), os camelôs promovem atos políticos de protestos (“camelAto”) e apoiam (inclusive, ao trabalharem) passeatas e ocupas com pautas de direitos humanos.[9]

Nas atuais circunstâncias brasileiras de retrocessos temerários mediante violações de direitos humanos, como evidenciado pela experiência concreta da cidade do Rio de Janeiro, a luta por direitos é fundamental e sua tônica é a de resistir para revolucionar!


Notas e Referências:

[1] https://anistia.org.br/campanhas/basta-de-remocoes-forcadas/

[2] A foto da chamada deste texto - registrada por mim no dia 12/03/2016, antes das Olimpíadas, em um ato cultural em defesa da Vila Autódromo - ilustra o contraste entre os destroços de uma comunidade açoitada pelo poder público e novos prédios empresariais construídos com incentivos e financiamentos do mesmo poder público.

[3] Como relata a pesquisadora Marcela Münch de Oliveira e Silva: "Além de ter passado por um processo de regularização fundiária, com a concessão de diversos títulos de direito de uso para fins de moradia, parte da área da Vila Autódromo foi decretada, em 2005, como Área de Especial Interesse Social. Cf. Vila Autódromo, um território em disputa: a luta por direitos desde sujeitos fronteiriços e práticas insurgentes. Niterói. Dissertação de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Enzo Bello. PPGDC-UFF, 2016, p. 18.

[4] Autoria da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPVA), com assessoria e apoio técnico do NEPHU-UFF e do IPPUR-UFRJ. Cf. https://comitepopulario.files.wordpress.com/2012/08/planopopularvilaautodromo.pdf.

[5] “Senhoras e senhores estamos aqui Pedindo uma ajuda por necessidade Pois tenho irmão doente em casa Qualquer trocadinho é bem recebido Vou agradecendo antes de mais nada Aqueles que não puderem contribuir Deixamos também o nosso muito obrigado Pela boa vontade e atenção dispensada

Bom dia passageiros É o que lhes deseja A miséria S.A Que acabou de chegar

Bom dia passageiros É o que lhes deseja A miséria S.A Que acabou de falar

Lhes deseja, lhes deseja Lhes deseja, lhes deseja”

[6] "Sou camelô, sou de mercado informal Com minha guia sou, profissional Sou bom rapaz, só não tenho tradição Em contra partida sou, de boa família.

Olha doutor, podemos rever a situação Pare a polícia, ela não é a solução, não.

Não sou ninguém, nem tenho pra quem apelar Só tenho o meu bem que também não é ninguém

Quando a polícia cai em cima de mim Até parece que sou fera Quando a polícia cai em cima de mim Até parece que sou fera Até parece, até parece…"

[7] Cf. http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1316.nsf/f6d54a9bf09ac233032579de006bfef6/03257ad1004cc81c832577e300617250?OpenDocument

[8]  https://movimentounidodoscamelos.wordpress.com

[9] Sobre o tema, há pesquisa em andamento realizada pela minha orientanda Anna Cecília Faro Bonan para a sua dissertação de mestrado, a ser apresentada no Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional (PPGDC), da Universidade Federal Fluminense (UFF).


Enzo BelloEnzo Bello é Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


Imagem Ilustrativa do Post de Enzo Bello  // Sem alterações


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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