Saúde mental: entre avanços e retrocessos

12/05/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky e Bárbara Bastos – 12/05/2016

"É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade".

Nise da Silveira

Embora consolidados institucionalmente na estrutura punitiva ocidental – com ampla aceitação das esferas informais de controle social -, cárceres e manicômios passarão a receber incisivos questionamentos a partir de meados do século XX”. [1]

No Brasil e em diversas partes do mundo, há uma tendência muito forte em acabar com os chamados “manicômios judiciários”, onde se tem verificado que o delinquente é, geralmente, abandonado à própria sorte e esquecido pela sua família. Conforme é sabido, desde o início do denominado Movimento Antimanicomial,[2] as diretrizes psiquiátricas deixaram de serem aquelas vinculadas ao tratamento por meio hospitalar e passaram a apregoar a prática terapêutica integrada à comunidade. Esta postura tem por escopo conceder o cuidado adequado aos portadores de sofrimento mental, a partir, não só dos preceitos advindos da medicina e da psicologia, mas, também, do princípio da dignidade da pessoa humana.

É manifesta que as novas diretrizes de tratamento do portador de sofrimento mental caminham para a inclusão do individuo na sociedade e não para a exclusão como se vê nas medidas de segurança. Inegável a relevância desta tendência, que tem ganhado cada vez mais força no cenário nacional e mundial, por parte dos profissionais da saúde mental. Todavia, sequer é necessário se enveredar para a psicologia/psiquiatria para verificar o quão paradoxal é a medida de segurança.

Nesse diapasão, o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), vinculado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desenvolve, há dezesseis anos, primoroso trabalho de acompanhamento sistemático de pessoas em sofrimento mental que cometeram crimes. O trabalho do PAI-PJ

consiste em promover a articulação de redes conjugando tratamento, responsabilidade e conexão social, tendo alcançado, desde sua criação, resultados exitosos na redução e prevenção da violência com índices de reincidência quase zero. Já passaram pelo PAI-PJ aproximadamente 6.000 casos que hoje se encontram devidamente acompanhados pela rede pública de cuidados”. [3]

Assim,

a ‘intervenção’ do PAI-PJ junto aos pacientes infratores é determinada por juízes das varas criminais, que, auxiliados por equipe multidisciplinar do programa, podem definir qual a melhor medida judicial a ser aplicada, com a intenção de conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social”. [4]

Diametralmente oposto ao modelo segregacional, segundo Virgilio de Mattos, que pretende incluir excluinto, é “a alternativa do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, PAI-PJ, desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sobre proposta da sua idealizadora a psicóloga Fernanda Otoni (...)”. [5]

O PAI-PJ, observa Virgilio de Mattos, incorpora três ângulos de ataques simultâneos: jurídico, social e clínico. Segundo o eminente professor,

A interlocução direta com judiciário, amparada pela credencial de se tratar de um programa de atenção do próprio Tribunal de Justiça, o compromisso militante dos trabalhadores e a alta capacidade técnica da coordenação emprestam ao programa de atenção integral uma saída possível, para o portador de sofrimento mental infrator, após a desconstrução do fantasma da periculosidade”.[6]

Não obstante, seu funcionamento sofreu um duro golpe. A recente demissão de 43% (quarenta e três por cento) dos recursos humanos do Programa, que exercem a função de articuladores de rede, no interior de Minas Gerais, ameaça todo um trabalho de acompanhamento até então realizado, bem como agrava o quadro de vulnerabilidade social dos pacientes.

Mais do que um reflexo de um microcosmo de estratificação social, em que há relação entre dominante e dominado, o ocorrido, em pleno mês de luta antimanicomial (18 de maio), é uma lembrança do quanto às minorias, em tempos de exceção como o que se vive atualmente, são imediatamente desprezadas.

O Brasil vivencia, desde o início de sua historiografia, a exclusão, ou melhor, o aniquilamento, o extermínio e a negação da alteridade. Procedeu-se dessa forma em relação aos nativos genocidados, aos negros escravizados e às mulheres silenciadas pelo patriarcado atemporal. Entendimento e lógica perversa diversa não foi conferida aos portadores de sofrimento mental, pessoas criminalizadas e subjugadas pelo fato de não se enquadrarem no ideário coletivo de normalidade.

Assim, surgido o pretexto para o desmantelamento de parte de um Programa que é referência mundial, não se cogita as consequências que tal ato pode ocasionar. Não são raras as vezes que sob o manto da escassez de recursos financeiros, as instituições tentam, em vão, se escusar e simplesmente suprimem-se direitos daqueles que são socialmente considerados abjetos, asquerosos e perigosos, sem perceber que qualquer violação no âmbito da saúde mental representa violação, sobretudo, aos direitos humanos.

Tal medida fulmina conquistas oriundas após décadas de lutas intensas contra a internação e institucionalização daqueles submetidos à medida de segurança. Práticas extremamente punitivistas e não terapêuticas culminam no reforço da tendência à intolerância.

Não se pode esquecer que Minas Gerais vivenciou seu próprio holocausto, nos manicômios de Barbacena. Esse cenário pouco a pouco se avizinha, e atinge, inclusive, aqueles que não estão em conflito com o sistema penal. Conforme bem ilustrou Daniela Arbex, em seu livro “Holocausto Brasileiro”,

Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sintoma. Assim como ela, a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou-se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos indesejados, inclusive os chamados insanos”. [7]

Nota-se que como instituição total, tanto a prisão como o manicômio são fenômenos idênticos, cujas funções manifestas não correspondem às que verdadeiramente são exercidas. Ambas as instituições servem para impor limites aos “desvios humanos” e, tanto a prisão quanto o manicômio, marginalizam o que já está excluído da sociedade.

No que diz respeito ao efeito estigmatizado da internação manicomial, o criminólogo Salo de Carvalho, na esteira da Aniyar de Castro, observa que o isolamento propugnado pela psiquiatria tradicional cria um distanciamento entre o médico psiquiatra e o doente, que impede uma relação autêntica entre ambos.[8]

Por tudo, é fundamental que haja por parte do Estado apoio irrestrito em relação aos programas alternativos e antimanicomial, que como o PAI-PJ se contrapõe aos tradicionais e desumanos programas das instituições correcionalistas que ao longo de décadas demonstraram não serem capazes de preservar os direitos humanos e, em especial, das pessoas portadoras de sofrimento mental.

Assim, enquanto houver um manicômio ou qualquer movimento contrário à articulação de novas formas de lidar com questões atinentes à saúde mental, a sociedade arcará com o preço da sua indiferença e por ignorar os direitos humanos. Sendo certo que, enquanto houver humanidade, haverá o que se convencionou chamar de loucura. Como asseverou David Cooper[9], “a loucura não se encontra ‘numa pessoa’, porém num sistema de relacionamento em que o ‘paciente’ rotulado participa”.

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Belo Horizonte, 11 de maio de 2016.


Notas e Referências:

[1] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[2] Em termos normativos, a Luta Antimanicomial ganhou força especialmente após a Lei 10.216/01 (Lei Paulo Delgado), a qual determinou a extinção progressiva dos manicômios, estabeleceu um rol de direitos do portador de sofrimento mental e novas diretrizes de tratamento.

[3] http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR90638

[4] http://ftp.tjmg.jus.br/presidencia/programanovosrumos/pai_pj/

[5] MATTOS, Virgilio de. Crime e psiquiatria: uma saída. Preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

[6] MATTOS, Virgilio de. Crime e psiquiatria: uma saída... ob. cit.

[7] ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

[8] Carvalho, Salo. Antimanual de criminologia... ob. cit.

[9] Apud Salo de Carvalho, ob. cit.


Sem título-1

. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .


Bárbara Bastos

. . Bárbara Bastos é Estagiária e Acadêmica de Direito da PUC-Minas. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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