Saúde e sistema socioeducativo: um panorama da normatização da PNAISARI no Brasil

19/12/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O último levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) conta com dados de 2017, publicados em 2019. À época, tratava-se de 26.109 adolescentes e jovens inseridos no sistema socioeducativo brasileiro, em regra, em medidas de internação (medida mais gravosa), sendo, em sua maioria, do sexo masculino, registrados como pardos e pretos, e tendo entre 16 e 17 anos (BRASIL, 2019).

A partir de 2018, a curva crescente do número total de adolescentes a quem se atribui ato infracional sofreu uma queda em praticamente todos os estados brasileiros, redução acentuada no período de pandemia por COVID-19, cujas hipóteses que a motivaram vem sendo levantadas e verificadas. Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), a série deste quantitativo de adolescentes internados em unidades socioeducativas é a seguinte: 25.084 adolescentes internados em 2018; 22.651 em 2019; 15.434 em 2020; e 13.684 em 2021.

A Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que institui o SINASE, estabelece, no Capítulo V, direcionamentos para atenção integral à saúde de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Em seu art. 60, destaco, na previsão de ações de promoção da saúde, a intenção de se estimular a “autonomia, a melhoria das relações interpessoais e o fortalecimento de redes de apoio aos adolescentes e suas famílias” e a “garantia de acesso a todos os níveis de atenção à saúde, por meio de referência e contrarreferência” (incisos I e V).

Em 2004, o Brasil formula uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI) para consideração destes como público do Sistema Único de Saúde (SUS). Isto deve se dar a partir do conjunto de ações de base territorial que caracterizam a atenção básica, com especial atenção para o matriciamento, a produção de saúde construída entre duas ou mais equipes de modo compartilhado.

A Portaria Interministerial n. 1.426, de 14 de julho de 2004, inaugura o percurso de regulamentação da PNAISARI, ao aprovar diretrizes para sua implantação e implementação. Este ato levou em consideração a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas só foi publicado quatorze anos após a vigência deste último, quando o cenário político foi direcionado de forma mais contundente para a regulamentação de políticas públicas de segmentos sociais cujos direitos são historicamente violados. A partir de 2004, o governo federal assume sua responsabilidade em garantir a atenção à saúde de adolescentes em conflito com a lei e estabelece que a condução do acompanhamento da política deve se dar através de uma comissão, cuja composição incluía o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

Em seguida, uma série de outras normativas foi publicada, com atualizações que tentaram refletir as demandas identificadas nas realidades das unidades socioeducativas das diversas regiões do país, com alterações como a atualização dos recursos destinados às ações de atenção integral à saúde dos adolescentes privados de liberdade e a inclusão de profissional do campo da saúde mental nas equipes de saúde de referência (PERMINIO et al., 2018). Neste ínterim, entra em vigência a Portaria SAS/MS n. 340/2004, que incluiu a Padronização Física do Estabelecimento de Saúde nas Unidades de Internação e Internação Provisória e, quatro anos depois, a Portaria SAS/MS n. 647/2008, publicada após a criação do SINASE através da Resolução CONANDA n. 119/2006:

Pretendia-se que isso se desdobrasse num modelo de atenção integral à saúde moderno, humano, dotado de organicidade e marcado por: a) Combate à violência em suas variadas formas ao reduzir problemas e agravos pela prevenção, promoção e assistência à saúde; b) Cumprimento do princípio da incompletude institucional, afirmando os preceitos da Reforma Psiquiátrica pela supressão das famigeradas ‘instituições totais’; c) Interdisciplinaridade dos atores envolvidos – entendidos como pessoas, secretarias, departamentos, coordenações e áreas técnicas federais, estaduais e municipais, assim como outras entidades, governamentais ou não; e d) Defesa do binômio educação e saúde. (2015, p. 123). 

O ato de 2008 aprofunda o anterior e dispõe de quatro anexos, dentre os quais constam os Parâmetros para construção, ampliação ou reforma de Estabelecimento de Saúde em Unidades de Internação e Internação Provisória, o Plano Operativo Estadual e o Termo de Adesão à política. Como reflexo da reconfiguração da lógica da PNAISARI, no sentido de priorizar a garantia do direito à saúde na própria rede territorial, tais parâmetros foram suprimidos nas Portarias posteriores. Afirma-se que “Essa adequação é fundamental para a superação do desafio que a incompletude institucional impõe ao trabalho articulado com a rede da atenção à saúde local, com a comunidade socioeducativa e demais setores fundamentais para a atenção integral ao adolescente” (PERMINIO et al., 2018, p. 2.862).

Em seguida, as Portarias GM/MS n. 1.082 e n. 1.083, ambas de 23 de maio de 2014, trataram, respectivamente, da redefinição das diretrizes da PNAISARI e do incentivo financeiro para seu custeio. Quanto à Portaria n. 1.082/2014, ela informa a inclusão do cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e meio fechado. Estruturada em cinco capítulos, ela apresenta conceitos relevantes (como os de medida socioeducativa em meio aberto e privação de liberdade), princípios, objetivos, eixos de organização da atenção integral à saúde, critérios e fluxos para adesão e operacionalização da PNAISARI.

Como premissas, o referido ato normativo considera o arcabouço legal que regulamenta o SUS, além dos atos próprios da área, como o ECA e o SINASE. No tocante aos princípios elencados, destaco três deles: a incompletude institucional, a responsabilidade da gestão de saúde nos municípios com unidades socioeducativas em seu território e a permeabilidade dessas instituições à comunidade e ao controle social. No tocante aos objetivos, ressalto a intenção de ampliação das ações e serviços em saúde, o estímulo a ações intersetoriais e a articulação entre Projeto Terapêutico Singular (PTS) e Plano Individual de Atendimento (PIA), entre outros objetivos voltados para a garantia da atenção psicossocial.

A Portaria GM/MS n. 1.082/2014 implica a gestão municipal na implementação e acompanhamento da PNAISARI como reflexo do processo de descentralização incorporado à Política, delimitando como pontapé inicial a instituição de Grupo de Trabalho Intersetorial que conte com a participação da Secretaria Estadual de Saúde e da Secretaria que gerencia o sistema socioeducativo estadual (PERMINIO et al., 2018). Disto, se depreende que a prestação dos cuidados em saúde deve se dar, prioritariamente, nos territórios dos adolescentes, através da atuação das equipes de Atenção Primária à Saúde da respectiva localidade, ou seja, deve ocorrer fora da privação de liberdade, sendo excepcional a atuação do Poder Executivo estadual nessas ações. Isto requer articulação intersetorial entre gestões estadual e municipais, sendo este um desafio histórico para a adesão e o efetivo funcionamento desta política, somado à estigmatização e criminalização as quais tais adolescentes são submetidos.

Mais recentemente, foram republicados atos sobre a temática que reproduzem o conteúdo das Portarias anteriores, no exercício de consolidação de normativas do Ministério da Saúde. São elas a Portaria Consolidada/MS n. 2, Anexo XVII, e a Portaria Consolidada/MS n. 6, Seção V, Capítulo II, ambas de 3 de outubro de 2017. No tocante à primeira, ela concentra os procedimentos para habilitação do ente federativo para o recebimento do incentivo financeiro de custeio da PNAISARI, através da apresentação do Plano Operativo e Plano de Ação Anual, modelos já dispostos no regulamento anterior referente ao financiamento da Política. Ademais, ela também incorporou os artigos sobre o monitoramento e a avaliação, bem como as situações nas quais o repasse financeiro será suspenso, não refletindo, portanto, nenhuma novidade na temática.

Em seus anexos, ao disporem sobre as atribuições das equipes de referência em saúde, reconhecem a produção de sofrimento decorrente da condição de privação de liberdade, aspecto que também corroborou a inclusão de profissional da saúde mental nas equipes:

Sabe-se que nos contextos de privação de liberdade é comum a existência de problemas que afetam a saúde mental em diversas ordens, inclusive com relação ao uso de álcool e outras drogas. É importante esclarecer que isso não implica necessariamente na ocorrência de transtornos mentais, mas de um sofrimento psíquico que pode ser mais ou menos intenso em virtude da própria privação de liberdade, do afastamento da família e do convívio social, da violência institucional, entre outros. (grifo meu)

Embora documentos oficiais reconheçam avanços na prestação da atenção à saúde a adolescentes em conflito com a lei, como pode ser visto no documento instrutivo para a implantação e implementação da PNAISARI publicado em 2021 pelo Ministério da Saúde, pesquisas retratam realidade de profunda fragilização na garantia desse direito. A prioridade da oferta de cuidados em saúde fora das unidades socioeducativas ainda encontra muitos desafios, como a negação do atendimento, tendo como pano de fundo a o racismo sofrido pelos adolescentes. Assim, salienta-se a necessidade de fomento à habilitação de novos entes federativos, bem como a qualificação das equipes em municípios já habilitados (PERMINIO et al., 2018).

Quanto à qualidade da oferta do atendimento em saúde nas unidades socioeducativas, ela é caracterizada como precária, sem disponibilidade do acesso aos serviços das Rede de Saúde, de modo que se limita aos muros das instituições de privação de liberdade, ou, como ressalta Costa (2021, p. 88), “de modo externo apenas em situações de urgência ou emergência”. Ainda, refletem Fernandes, Ribeiro e Moreira (2015, p. 125)

A lógica do SUS se choca com as características de instituição total que as unidades socioeducativas de internação e internação provisória ainda apresentam, pelos discursos e práticas usuais dos profissionais e gestores nelas observadas. Por seu turno, a lógica das legislações e normatizações encontra consideráveis dificuldades de ressonância e concretização no cotidiano das unidades socioeducativas.

Também se retrata o aprofundamento da condição de saúde mental, através do sofrimento que é próprio da privação de liberdade e que, na maioria das vezes, vai encontrar como única resposta a prescrição de medicamentos psicotrópicos, em contraponto a uma lógica de abstinência (ARRUDA, 2020; COSTA, 2021). Por fim, é possível confirmar tal cenário com os relatórios produzidos pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) datados a partir de 2018.

Fato é que quando falamos em conflitualidade legal, a garantia do direito à saúde de adolescentes toma contornos ainda mais desafiadores, tendo em vista que a própria privação de liberdade é produtora de sofrimento e que é desconsiderada uma perspectiva mais ampliada de saúde, que ultrapasse a ausência de sintomas. Ainda, a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento é atravessada por fatores históricos e socioculturais que nos convocam a tratarmos desde sua pluralidade: adolescências. Sobre estas, incidem as múltiplas opressões que estruturam a sociedade brasileira, e em particular as de raça, classe e gênero, num ciclo de produção de violências que repercutem em desigualdades no acesso a direitos básicos, incluída a atenção integral à saúde.

 

Notas e referências

ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A queda das internações de adolescentes a quem se atribui ato infracional. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/23-anuario-2022-a-queda-das-internacoes-de-adolescentes-a-quem-se-atribui-ato-infracional.pdf. Acesso em 04 de novembro de 2023. 

ARRUDA, J. S. de. “NOS VERSOS ME SEGURO”: uma etnografia documental da trajetória de meninas na medida socioeducativa de internação. 390 f. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2020.

BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Levantamento anual – SINASE 2017. Brasília – DF, 2019.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde da Família. Pnaisari: Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei: instrutivo para a implantação e implementação da Pnaisari [recurso eletrônico]. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.

COSTA, C. S. S. Contextos de desenvolvimento e projetos de vida de jovens nos programas de acompanhamento aos egressos de medida socioeducativa de internação. 333 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2021.

FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R. A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos na atuação institucional. Saúde em Debate, v. 39, p. 120-131, 2015.

PERMINIO, H. B.; SILVA, J. R. M.; SERRA, A. L. L.; OLIVEIRA, B. G.; MORAIS, C. M. A. de; SILVA, J. P. A. B. da; FRANCO NETO, T. de L. do. Política Nacional de Atenção Integral a Saúde de Adolescentes Privados de Liberdade: uma análise de sua implementação. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, p. 2859-2868, 2018.

 

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