Por Charles M. Machado -29/08/2015
Todo dia nós acordamos com a crença de que iremos iniciar mais um capítulo do maravilhoso show da vida. Ela é, sem qualquer juízo de valor, o maior dos nossos bens. A sociedade edifica os seus valores, e procura mantê-los na concretude dos diplomas normativos, onde se espelha as preferências e os princípios que o nosso pacto social elege.
Na nossa Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana e a cidadania foram eleitas como princípios fundamentais previstas no artigo 1°, incisos II e III.
É evidente que existe sempre uma distância entre a intenção e o gesto, e não basta o legislador prever hipoteticamente um valor, se o conjunto estatal não faz das frias letras dos artigos, um escudo a proteger o cidadão, afinal as pessoas esperam do Estado, bem mais do que normas, mas o cumprimento delas, e que mais do que válidas, elas sejam eficazes, pois o que se assiste é a eficácia cada vez maior do crime. A violência toma parte nesse espetáculo, cada vez mais funesto, e cobre com o manto negro da insegurança o cotidiano de todas as pessoas, fazendo de toda a sociedade, vítima do mundo que criamos.
O país assistiu na quinta feira 13, número propositadamente macabro, a morte de 19 pessoas executadas e 07 foram gravemente feridas, nas cidades de Osasco e Barueri, em um lapso temporal de quase três horas.
As execuções foram feitas pelos pseudo justiceiros, em 11 locais distintos, eles entraram nos bares devidamente encapuzados perguntando que tinha antecedentes criminais, e quando a resposta era positiva a vítima era executada ali mesmo, antes porém as pessoas nos bares eram surradas por esse justiceiros (ou assassinos). A causa mais provável é de vingança em razão da morte de um guarda municipal em um posto de gasolina.
As ações foram feitas no estilo filme de bang bang, e é claro justiceiros agem pois tem absoluta convicção de sua impunidade não tendo medo algum do poder constituído, seja por sua ineficiência ou por sua complacência ou as duas coisas juntas.
Justiceiros não são denunciados, seja pelo fato que muitos da população os apoiam, ou deles tem medo?
É impressionante como o crime nos humilha, como a violência, nas mais diversas formas, nos torna prisioneiros do medo. Essa é a face mais nefasta desse ‘show’, um espetáculo que não termina, pois, afinal, o que podemos esperar dos frágeis braços do Estado que pouco protege?
Evidentemente que a violência, não é causa, e sim consequência, de um modelo econômico e social injusto, que responde a muitos com pouca ou nenhuma oportunidade e a tão poucos com os privilégios. A construção da cidadania, só se dá com a distribuição de condições justas e igualitárias para que todos participem do mundo do trabalho, pois sem a redução do desequilíbrio social, assistiremos ao aumento dos índices de violência e a diversificação dos meios de coação. A simples melhoria do aparato preventivo e repressor do Estado, ainda que necessária, pode funcionar como maquiagem das nossas desigualdades. O aumento das forças de segurança particulares, só revela a falência do Estado, que nada mais é do que a troca das obrigações de quem deve por quem pode. Decididamente, vive-se a possibilidade de mais um movimento a ser criado pela sociedade civil organizada, além dos ‘sem teto’, ‘sem terra’, quem sabe pode-se formar os ‘sem Estado’.
Na ausência das mudanças no modelo que alimenta a superestrutura social, assistiremos ao maior e vilipendioso crime, que atinge a todos indistintamente, o “sequestro da Cidadania”.
Não precisa ser James Bond para perceber a participação de policiais no ato, afinal não se comete tantos crimes em uma pequena área nesse período sem nenhuma intervenção policial.
É de se notar que a nossa Constituição Federal em seu preâmbulo coloca que “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar e o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”. Diante dos fatos e do Texto Constitucional onde está a garantia dos Direitos e a construção de uma sociedade justa e fraterna, onde o pêndulo é feito pela mão do atirador no uni-duni-te ?
O Preâmbulo de uma Constituição é a sua certidão de nascimento, e justiceiros executando e realizando penas de morte está muito longe do seu preâmbulo.
Na Magna Carta os fundamentos dela estão previstos no artigo 1°, II (cidadania), III (dignidade da pessoa humana), por certo não se constrói cidadania passando por todos os direitos fundamentais, e apenar por seu livre arbítrio, suspeitos com a pena de morte está muito longe de atender a dignidade humana.
A mesma Magna Carta elegeu os objetivos fundamentais da Constituição, e seu inc. IV, prevê “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Logo como um ente supremo aplicar a pena de morte discriminando as pessoas fera a Constituição.
De igual forma as relações internacionais da república Federativa do Brasil, são norteadas pelo Legislador Constituinte com os seguintes princípios:
Art. 4°, II, Prevalência dos Direitos Humanos; defesa da paz Cooperação com outros povos pelo progresso da humanidade.
Tais feitos são sempre um prato cheio para mídia internacional, que certamente pois país nenhum hoje em dia é uma ilha.
No capítulo dos Direitos e Garantias, art. 5°, III “é assegurado que: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.” Mais uma vez os justiceiros vilipendiaram a nossa Norma Fundante.
Diversos outros dispositivos Constitucionais foram violados nesse ato, art. 5°, XXXVII, XXXIX, XLIV, XLVI, XLVII e LVII. Todos dispositivos burlados pelos “justiceiros”, que ao seu livre arbítrio, prenderam, julgaram e apenaram, fazendo pelas próprias mãos a justiça na terra e a justiça divina.
Evidentemente o cidadão espera a justiça para o caso afinal a segurança é Direito Social previsto na Magna Carta, art. 6°.
Nesse momento identificar os justiceiros, e a eles aplicar a justiça dos homens é a única forma de provar que o Estado existe e que no estado de direito democrático, as normas mais do que previsão hipotéticas são feitas para serem cumpridas.
Do contrário estaremos diante de mais um caso onde a vida é banalizada, pela ação e não reação.
A capacidade de se indignar com as injustiças é a forma de mantermos acesa a chama do nosso Contrato Social. Se nada fizermos faremos parte dos que contam 19 mortes e não 19 vidas que se foram.
Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.
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