Santos - Dumont, os irmãos Wright e a aviação militar

18/08/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 18/08/2015

A polêmica sobre a primazia do vôo Dois livros, duas versões

Duas novas biografias de Alberto Santos-Dumont foram lançadas em 2003, ano do centenário do vôo dos irmãos Wright, considerados os inventores do avião pelos americanos.

Nos Estados Unidos e no Canadá, o jornalista americano Paul Hoffman, editor da revista Discover, ex-presidente da Enciclopédia Britânica e membro da Academia Americana de Artes e Ciências, publicou Wings of madness: Alberto Santos-Dumont and the invention of flight, o que se traduziria por: "Asas da Loucura: Alberto Santos-Dumont e a invenção do vôo". Na edição brasileira, da Objetiva, lançada em 2004, o título "Asas da Loucura" foi mantido, porém o subtítulo alterado para "A extraordinária vida de Santos Dumont".

Esse subtítulo diferente deve-se talvez ao fato de que em 2003 o físico brasileiro Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, lançara "Santos-Dumont e a invenção do vôo", pela Jorge Zahar, seu terceiro livro sobre o inventor brasileiro, cuja vida e obra pesquisa há 20 anos.

A ótica americana

O título "Asas da Loucura" repercute no texto de Hoffman em dois pequenos trechos referentes à enfermidade que vitimou Santos-Dumont. Desprezando a hipótese geralmente aceita de que o aviador teria sido acometido por esclerose múltipla (um distúrbio neurológico), Hoffman lhe atribui "problemas psíquicos" e "doença mental".  Como o tema não é analisado, sendo apenas insinuado, cabe conjeturar se o autor buscava apenas um título apelativo de marketing para seu livro ou se teria inconscientes intenções de obscurecer a memória de Santos-Dumont. De qualquer maneira, não cabe a expressão "Asas da Loucura" porque quando Santos-Dumont adoeceu, em 1910, aos 36 anos, sua carreira de aeronauta encerrou-se. Seus vôos foram anteriores à enfermidade e fruto de outras asas. Asas de paixão, genialidade, trabalho, perseverança e coragem.

Mesmo reconhecendo a grandeza, genialidade e generosidade do inventor brasileiro e dando-lhe crédito por todos os seus feitos, Hoffman não admite o pioneirismo do vôo do 14-Bis, em 1906. Defende a primazia do vôo dos irmãos Orville e Wilbur Wright, com o Flyer, em 1903, sem apresentar novos argumentos, afirmando que hoje isto se trata de fato bem estabelecido. Sua principal "prova" é documental: uma reportagem publicada pela Scientific American em 1907 – a posteriori, portanto –, validando os vôos dos irmãos Wright, secretos até então.

A perspectiva brasileira 

Lins de Barros menciona apenas o adoecimento de Santos-Dumont, sem aludir a diagnósticos em seu livro. Ao defender a primazia do vôo de Santos-Dumont em relação ao dos irmãos Wright, desenvolve argumentação em perspectiva histórica, apresentando os critérios que se utilizavam à época para homologação de experimentos com as máquinas de voar, fossem balões, dirigíveis ou aviões.

Esses experimentos eram realizados na forma de provas ou prêmios, com regras previamente estabelecidas. Os vôos deviam ser realizados na presença do público, da imprensa e de juízes qualificados e marcados com antecedência, o que visava a impedir que o piloto escolhesse apenas as condições de vento que lhe conviessem. Dentre os critérios decisivos para a validação dos vôos de aviões encontravam-se: a distinção entre o que se constituía em um "salto" na pista que não chegasse a caracterizar uma real decolagem e a perfeita demonstração de que a decolagem se dera de forma autônoma, pela impulsão do próprio motor.

Assim foram as conquistas de Santos-Dumont. Públicas e oficialmente homologadas por juízes. Publicamente provou a dirigibilidade das máquinas de voar, contornando a Torre Eiffel com seu dirigível, em 1901. Publicamente demonstrou a viabilidade de vôo dos "mais pesados que o ar" com o 14-Bis, em 1906.

O inventor brasileiro jamais pleiteou patentes de seus projetos aeronáuticos, distribuindo aos pobres os prêmios em dinheiro que conquistou. Franqueava cópias de seus cálculos e desenhos, incentivando novos inventores e pilotos amadores e mesmo industriais, a quem permitiu alguns anos depois a livre fabricação, sem cobrança de royalties, de seu modelo Demoiselle, considerado o primeiro avião esportivo do mundo, um equivalente dos ultra-leves, com estrutura de bambu e cordas de piano como cabos.

Os vôos secretos dos irmãos Wright

Enquanto Santos-Dumont atuava publicamente em Paris, capital do mundo na virada do século 19 para o século 20, os irmãos Wright iniciaram suas experiências numa longínqua praia no estado de Carolina do Norte. Ao saber das provas em curso na Europa, para homologação do vôo, enviaram notícias lacônicas, breves telegramas, declarando vôos bem sucedidos.

Apenas em 1908 os americanos resolveram ir a Paris para se apresentar publicamente, surpreendendo os europeus ao realizar vôos de dezenas de quilômetros e apresentando aparelhos com eficazes controles de dirigibilidade.

Hoffman argumenta que os inventores americanos haviam guardado segredo de sua invenção porque desejavam patenteá-la e vendê-la para fins militares. Frustraram-se em ambos objetivos. Nenhum país comprou a invenção – embora todos a seguir passassem a usar o avião para fins militares – e os irmãos Wright acabaram envolvidos numa pendenga de 30 anos com o Instituto Smithsonian, que disputava a patente por conta das experimentações do Professor Langley, cientista-inventor importante na descoberta do vôo, que havia dirigido a instituição e desenvolvido protótipos.

Lins de Barros defende a hipótese de que os irmãos Wright mantiveram suas experiências em segredo porque não haviam resolvido o problema da decolagem autônoma. Suas decolagens em 1903 dependeriam dos ventos favoráveis da praia de Kill Devil Hills e, além disto, de trilhos em que o aparelho deslizava para alçar vôo. Hoffman rebate, mas indica que eles utilizaram também um guincho para suspender o avião até o ponto em que o vento os sustentava, facilitando a decolagem.

O vôo não foi inventado por uma única pessoa

Henrique Lins de Barros resume a polêmica, desfazendo-a, com a seguinte conclusão: "A história da aviação ainda está para ser escrita. Nela um grande número de criadores estará presente, e a influência de cada um deles sobre os demais será sem dúvida o ponto central, pois o vôo não foi inventado por uma única pessoa".

Não se espera que americanos e brasileiros concordem a respeito de quem inventou o avião. Mas uma coisa é certa: como pessoa, herói e mito, a grandeza e generosidade de Santos-Dumont é inigualável, o que o confirma como legítimo Pai da Aviação, tenha o 14-Bis voado antes do Flyer ou não.

Os aviões e as guerras

O avião na 1ª Guerra Mundial  

Quando, durante a 1ª Guerra, o piloto francês Roland Garros, que aprendera a voar num Demoiselle de Santos-Dumont, instalou uma metralhadora em seu avião, adaptando a hélice com defletores de aço para que as balas não a destruíssem, nasceu o avião de caça, que viria a se tornar o personagem central das batalhas aéreas.

Mas a supremacia da França não durou. O piloto foi abatido e obrigado a pousar atrás das linhas inimigas. A Alemanha descobriu a invenção e aprimorou-a, desenvolvendo o sistema de sincronização de tiro, valendo-se para isto do talento do inventor holandês Anthony Fokker, que se iniciara na aviação construindo monoplanos inspirados também no Demoiselle de Santos-Dumont.

Os jovens pilotos de guerra lutavam pelo prazer do duelo, conservando costumes dos antigos cavaleiros e nobres, a despeito do poder mortal devastador que os aviões adquiriam. O famoso Barão von Richthofen, o Barão Vermelho, ás da aviação alemã que abateu 80 inimigos e inspirava medo a todos, quando morreu, abatido pelo capitão canadense Roy Brown, recebeu de seus inimigos as maiores honrarias militares.

Os esforços de guerra transformaram a aviação. E a aviação transformou a guerra, substituindo o papel da cavalaria nos exércitos.

A aviação adquiriu dimensões insuspeitadas. Lins de Barros indica que durante a guerra a França fabricou mais de 50 mil aeronaves, a Inglaterra 49 mil e a Alemanha 38 mil. Descontado o comportamento aventuresco dos pilotos, tratados como elite nas armas, nada havia de belo nas batalhas aéreas: 5.600 pilotos franceses, 7.500 ingleses e 11.400 alemães morreram no ar.

A primeira guerra selou o destino militar da aviação e, em decorrência do esforço industrial levado a cabo e do grande número de pilotos que foram treinados, aparentemente também foi a grande responsável pelo ritmo em que a aviação civil se desenvolveu nas décadas seguintes.

Os inventores e o uso militar dos aviões 

Alberto Santos-Dumont, além de herói nacional, é um mito. Uma das características marcantes da figura mítica que ele representa relaciona-se ao ideal pacifista. O mito reza que Santos-Dumont suicidou-se pelo desgosto de ter testemunhado o uso militar dos aviões.

Diante da figura de seus rivais americanos, Orville e Wilbur Wright, que trabalhavam em segredo com o objetivo de vender a patente dos aviões para uso militar, a figura mítica de Santos-Dumont adquire ainda maior grandeza, porque eles entram em cena como antagonistas para ressaltar as virtudes do herói.  É comum que os mitos sejam repositórios dessas crenças maniqueístas.

Não há ressalva a fazer quanto à figura dos irmãos Wright, afinal lucro e beligerância fazem parte do ideário americano e lhes cai bem como real motivação de seu invento. Mas se estivermos interessados na pessoa de Santos-Dumont e não no mito em que ele se transformou, é necessário estar atento à sua biografia e reinterpretar as razões de seu suicídio, revisitando também suas idéias a respeito do uso militar dos aviões.

Balões já haviam sido utilizados no século 19 para observação de movimentação de tropas, inclusive pelo Duque de Caxias (na época marquês) durante a Guerra do Paraguai. O uso militar de balões e aviões constituía-se em uma possibilidade tão evidente que seria impossível que o inventor brasileiro não cogitasse dela. Seria menosprezar sua inteligência, atribuindo-lhe descabida ingenuidade.

Na verdade, tanto como foi capaz de antever todos os desenvolvimentos futuros da aviação civil, Santos-Dumont sempre considerou que a aviação seria útil aos esforços militares. Talvez imaginasse uma função militar mais defensiva do que de ataque para a aviação e ainda é possível considerar que talvez não pudesse vislumbrar a intensidade destrutiva que a aviação militar rapidamente atingiu. Mas não se pode dizer que tenha sido surpreendido com o uso bélico dos aviões.

Em uma palestra no Chile em 1916, durante a guerra na Europa, por exemplo, ele afirmou: "Quando há doze anos disse que as máquinas aéreas seriam importantíssimas para o desenvolvimento das guerras futuras (...) os militares contradiziam-me, considerando o aeroplano como joguete, e resistiram ao meu propósito de discutir seriamente o assunto. Considera-se agora, pelos acontecimentos posteriores, a inapreciável utilidade que o aeroplano alcançou nos exércitos."

A despedida do herói 

O suicídio de Santos-Dumont, entendido a partir das informações de seus biógrafos, é mais complexo do que se explica no mito.

Ele morreu em 1932, aos 59 anos. Aparentava muito mais idade, devido aos efeitos da enfermidade de que sofria, provavelmente esclerose múltipla. Por duas vezes havia considerado terminada sua missão na vida: quando demonstrou a dirigibilidade dos balões, em 1901, e quando demonstrou a viabilidade de vôo dos "mais pesados que o ar", em 1906.

Em 1910, aos 36 anos, quando adoeceu, foi obrigado a parar de voar e sua vida nunca mais readquiriu sentido. Além de dores físicas e outros incômodos, entrou em sucessivos processos depressivos, que o levaram a internar-se em diversas clínicas de repouso ao longo dos últimos anos de vida.

Sua mãe também houvera se suicidado.

Diversas tragédias na aviação, em guerras e também em uso civil, o deixavam amargurado. Muitos fatores, enfim, contribuem para a explicação de sua morte, que não pode, entretanto, ser linearmente atribuída ao uso militar dos aviões. Até porque a carnificina da aviação já se demonstrara na guerra de 1914-18 e Santos-Dumont suicidou-se em 1932. O uso de aviões na revolução de 1932 no Brasil não seria motivo suficiente, não estivesse Santos-Dumont profundamente adoecido.

Quando morreu, no Guarujá, relata Paul Hoffman, estabeleceu-se uma trégua de três dias na revolução de 1932. "O funeral foi adiado por seis meses até que o conflito acabasse e seu corpo pudesse ser transportado para o Rio de Janeiro em segurança. No momento exato em que foi baixado à sepultura, milhares de pilotos ao redor do mundo inclinaram as asas de seus aviões num gesto final de respeito."


Resenha de:

Santos-Dumont e a invenção do vôo. Henrique Luiz de Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003. 189 págs. Amplamente ilustrado por fotos e esboços de todos os projetos do inventor.

Asas da Loucura – A extraordinária vida de Santos-Dumont. Paul Hoffman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. 342 págs. Contém 16 páginas de fotos.

Originalmente publicado no Diário do Comércio. São Paulo, 2004.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


Imagem Ilustrativa do Post: + Bis // Foto de: Fernando Mafra // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/f_mafra/5018944921

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura