Santa Sé e Homossexualidade: a perversão do respeito

06/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 06/04/2015

A veces, esperar lo mejor de los demás es arrogancia."

Fragmento del poema trans «el ansia, una muerte vertical» de Javier Martín

Recapitulemos: em outubro de 2014, durante o último sínodo extraordinário sobre a família (considerado o momento mais importante do pontificado do Sr. Bergoglio até o momento), o Vaticano sinalizou que a Igreja renunciaria a sua homofobia, garantindo “um espaço de fraternidade em sua comunidade” aos homossexuais. Imediatamente louvada como «revolucionária», a suposta metamorfose, contudo, feneceu antes de que a comunidade gay tivesse a oportunidade de dizer “Surpresa!”.

Na mensagem final da Assembleia Geral Extraordinária do referido sínodo, a Igreja, sempre tão mansa como uma paloma mas prudentíssima como uma serpente, ignorou aos homossexuais. De fato, o único remotamente «revolucionário» foi o discurso de alguns clérigos que consideram que os «homossexuais têm grandes dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã», e o desejo de receber bem aos gays na Igreja, pondo de relevo a necessidade de «aceitação» e «aproximação». Mas não tão depressa: toda essa demonstração de infinita caridade deve ocorrer com a «prudência adequada» para não criar «a impressão de uma valoração positiva» dessa orientação (das relações entre pessoas do mesmo sexo) por parte da Igreja.

Parece este é o «modus operandi» da era Francisco: anunciar alguma postura que sugira que a Igreja se está pondo ao dia com os valores do século XXI, e logo dar marcha atrás para satisfazer aos fanáticos e intolerantes. Um Papa de uma única e infalível palavra: «talvez». Com este último episódio as autoridades da Igreja Católica deixaram absolutamente claro que redobrarão sua aposta pela intolerância e a obsessão por castigar o sexo não reprodutivo. Malditos, degenerados e pérfidos sacerdotes aqueles para quem a “dignidade humana” parece ter o mesmo significado que para um cego representa a beleza de um crepúsculo: um conto, uma metáfora, nada mais.

Me refiro aqueles que anunciam que falam em nome de Deus, aqueles que com o dom da palavra detêm o singular e misterioso poder de converter um biscoito e vinho – literalmente – no corpo e o sangue de um carpinteiro palestino cuja execução representou a redenção da humanidade, aqueles que por acreditarem na inescrutabilidade dos caminhos do Vastíssimo “han hecho y siguen haciendo mucho daño al mundo, por más que reivindiquen que la bondad es su patrimonio” (A. C. Grayling). Uma perigosa matriz religiosa que continua a impregnar os cérebros teologicamente condicionados de suas ovelhas por meio de uma rapsódia de discursos disparatados e preconceitos infundados, ameaçando sistematicamente as normas da moral a que chamamos civilizada. Quero dizer, os valores e princípios éticos de respeito mútuo e tolerância em uma sociedade decente, cujas instituições não devem humilhar às pessoas e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros; uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações, discriminações e com dignidade (A. Margalit).

Quanto sofrimento renovado e inecessário às inúmeras famílias cristãs que desfrutam do e com o amor de amigos e familiares homossexuais. Posso entender que alguns devotos bem intencionados estejam convencidos de que o homossexualismo (ou o matrimônio homoafetivo) é um pecado gravíssimo, uma imoralidade espantosa ou uma tremenda agressão ao «projeto sexual do Criador» (para usar as palavras ditas em 1986 pelo então Cardeal Ratzinger). Mas nem sequer aqueles que crêem na existência de um Deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós (ou daqueles que ao menos rezam para Ele), são capazes de afiançar que os poderes mais altos da Igreja podem perambular pelo mundo com posturas e ideias que, depois de tudo, desafiam a inteligência de uma criança de dez anos ou menos. Afinal, dado que se Deus tudo sabe e decide, por que não considerar que os seres humanos que elegem a homossexualidade como forma de vida o fazem por Sua decisão.

Continuamos a marginalizar, porque constituem uma ameaça, nossos familiares e amigos homossexuais? São "heteros" os direitos humanos e divinos?  Como conciliar o dever de obediência dogmática à Igreja com o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo”? É superior a moral de uma sociedade que mantenha aos homossexuais no armário e lhes castigue se intentam sair? Quem, em seu sano juízo, se limita a amar um familiar ou um amigo homossexual com a «prudência adequada» para não criar «a impressão de uma valoração positiva» de sua orientação sexual? Que espécies de líderes espirituais continuam a impregnar com deliberada maldade o fato de que o que verdadeiramente dá sentido a nossas vidas é o amor, e que, tanto ou mais que a razão e independentemente de nossas preferências sexuais, a amorosa preocupação e cuidado que dedicamos aos seres que amamos é o que nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos? Quanto de infalível é a visão do mundo de um primata humano que facilita a discriminação, fomenta a desigualdade e o rechaço social, maneja um computador de última geração e “que, aun en el trono más elevado del mundo, está  sentado sobre su culo” (Montaigne)? Que tipo de primatas humanos são esses que engendram delírios tão venenosos e atrozes, e impõem a seus seguidores que se submetam a eles sem nenhuma resistência e com cego acatamento? Devemos permanecer em silêncio sobre isso também? Entre papas, deputados, pastores e sacerdotes, por que são tão seletivos em seus protestos os apologistas dos direitos humanos? Há que tolerar aos intolerantes ou somente aqueles que falam em nome de um Deus determinado?

Não somente não merece qualquer bendição ou distinção a «prudente» necessidade de «homoaceitação» e «homoaproximação» proposta pela Igreja, senão que tratar aos homossexuais como diminuídos morais, incapazes de assumir a «Verdade», não é a melhor forma de mostrar-lhes respeito nem trato digno. Talvez a Igreja não entenda a palavra «dignidade» que está implícita no e emerge do «humano». Ou talvez a entenda demasiado bem porque a plena compreensão do que significa «direitos humanos» exigiria um câmbio realmente drástico em seu anacrônico modelo de mundo; ou, tal como A. MacIntyre, entenda que os direitos humanos não existem, como não existem as fadas e os unicórnios (mas sim o diabo!), e que somente são «ficções morais». Porque não é o mesmo «reconhecer» direitos que a quase sádica piedade de «aceitar» ou «aproximar» com a «prudência adequada» para não criar «a impressão de uma valoração positiva».

Por quê? Pois porque a caridade é a antítese dos direitos humanos. A dignidade humana é pisoteada pela caridade e sua forma cristã de «humanitarismo» donde as espórtulas de «aceitação» e «aproximação» se oferecem de forma seletiva ou são impostas desde o exterior de maneira caprichosa, contingente e temporal. A caridade, pelo geral, só beneficia ao doador, quase sempre em algum tipo de ato público interessado, e ofende a humanidade daqueles que se encontram no lado receptor: sua humanidade resulta maltratada pela dependência forçosa de outras pessoas (D. Raventós & J. Wark). A caridade, enfim, como uma questão de imagem e sutil forma de perversão da noção de respeito, "degrada a quien la recibe y enaltece a quien la dispensa"(George Sand).

No caso, a dignidade dos homossexuais resultou novamente maltratada por uma Igreja com «surdos ouvidos para toda palavra de humanidade» (S. Zweig) e que se resiste impetuosamente a reconhecer a esse coletivo humano concreto o direito de plena e livre realização pessoal, familiar e religiosa, isto é, de pôr, no que se refere aos seus legítimos interesses, os direitos humanos e fundamentais ao efetivo serviço da não discriminação, da tolerância, da igualdade e da liberdade como não interferência arbitrária. Substituamos mentalmente a palavra «gay» por «obeso», «mulher» ou «negro» no discurso eclesiástico e veremos o «mal puro». Assim de desumano é o sistema.

Apesar disso, estou convencido que nada do que se sustente em sentido contrário parece suficiente para mover nem um milímetro a opinião da cúpula da Igreja católica sobre este tema (para dizer o mínimo), por mais nobres e honradas que possam ser as boas intenções do bom Francisco. O único inconveniente é que o silêncio ante uma atitude dessa natureza e calibre pode levar-nos a abraçar a indiferença, a insensibilidade com relação ao sofrimento dos demais. Nada nos preocupa nem nos importa; desumanizamos ao “diferente”, ao “anormal”, ao homossexual. E uma consequência natural disso é que corremos o grave risco de que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade ética se atenua. Nossa consciência moral abandona a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais etéreo… Nossa bússola moral perde o norte.

Vou rematar com Baruch Spinoza, sobre a relevância de não impor a ninguém as restrições ou proibições opressivas que dimanam dos valores alheios ou de normas de outro mundo: “Aquello que se nos presenta como la palabra de Dios son la mayoría de las veces absurdas quimeras, y bajo el falso pretexto del celo religioso, no se pretende sino imponer a los demás los propios sentimientos. Sí, lo repito, el gran propósito de los teólogos ha sido desde siempre extraer de los libros sagrados la confirmación de sus ensoñaciones y sus sistemas, a fin de envolverlos en la autoridad de Dios. En su interpretación del pensamiento de la Escritura, es decir, del Espíritu Santo, nada hay que les incite el menor escrúpulo o que pueda detener su temeridad. Si algo temen, no es atribuir algún error al Espíritu Santo ni apartarse de la vía de la salvación, sino únicamente que sus rivales les convenzan de su error, viendo así debilitada y despreciada la autoridad de sus palabras…”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Black Sheep Meets White Sheep // Foto de: Leon Riskin // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ionics/6337522871 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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