Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil e Weigert, em entrevista, falam sobre a obra “Sofrimento e clausura no Brasil contemporâneo”

16/01/2017

Por Redação – 16/01/2017

Os autores do livro “Sofrimento e clausura no Brasil contemporâneo”, Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil e Weigert, concederam entrevista ao Empório do Direito para falar sobre a obra. Confira:

Qual a ideia central do livro "Sofrimento e clausura no Brasil contemporâneo"?

O encarceramento massivo de pessoas e de grupos vulneráveis é uma trágica realidade que se consolidou nos países ocidentais nas últimas décadas. Quando se pensou, fundamentalmente na década de 80, que em razão da deslegitimação da prisão, caminharíamos em direção de práticas abolicionistas, com a efetivação de processos de descarcerização, os anos 90 alteraram o sentido, e a prisão foi relegitimada como instrumento de isolamento e de contenção. No Brasil, temos hoje mais de 750 mil pessoas encarceradas, cumprindo pena em situação de extrema degradação, não apenas material, mas, sobretudo, moral. Em relação aos manicômios, a trajetória foi um pouco diferente, fundamentalmente em razão da experiência italiana da Reforma Psiquiátrica (Lei Basaglia), também implementada no Brasil em 2001 (L10216/01). Apesar disso, embora tenhamos alguma efetividade nas políticas de desmanicomização de maneira geral, quando o tema da “loucura” é atravessado pelo “delito”, há uma espécie de interdito nas alternativas à segregação, e as políticas dos manicômios judiciários acabam sendo orientadas pela lógica carcerária.

A ideia central do livro, portanto, é olhar de forma crítica esses dois fenômenos (cárceres e manicômios), problematizar as suas formas normativas (penas e medidas de segurança), a partir da premissa de que, apesar das suas diferentes naturezas jurídicas, constituem, na realidade do sistema punitivo nacional, uma experiência de clausura que produz e reproduz sofrimento.

Qual a motivação para escrever sobre este tema?

Prisão e cárcere, penas e medidas de segurança (e socioeducativas) são temas que nós trabalhamos há muito tempo. Coincidentemente foram nossos objetos de investigação nas teses de doutorado. Assim, em primeiro lugar, temos um interesse acadêmico que deriva do nosso inconformismo com a permanência deste tipo de instituição de clausura em pleno século XXI.

Nosso debate é acadêmico, mas visceralmente orientado por uma militância política que entende ser urgente a abolição destas formas segregacionistas como resposta jurídica à violação da lei.

Assim, os textos reunidos no livro possuem, como objeto central de análise, a crítica da racionalidade punitivista que conduz a atuação igualmente política dos atores do sistema punitivo e que faz com que estas instituições se mantenham inabaladas. Abordamos, orientados pela Criminologia Crítica, essa adesão dos sujeitos que colocam em marcha as agências de enclausuramento (carcerária e manicomial) ao punitivismo, tentando compreender, p. ex., como são criados e como operam os dispositivos de relegitimação e de reforço da pena e das medidas de segurança e como são obstaculizadas as alternativas penais, as quais são transformadas, naturalmente, em aditivos sancionatórios. O tema das alternativas aos modelos carcerocêntrico e periculosista é uma constante no livro.

Como foi o processo de pesquisa em conjunto?

Trabalhamos juntos há muito tempo, desde 2001. E sempre vinculados à Criminologia Crítica. Ao longo desses anos, publicamos, individual e conjuntamente, vários trabalhos sobre penas e medidas de segurança, prisões e manicômios. Assim, pensamos que tínhamos um bom material para ser reunido. Mas o nosso desejo não era o da simples reunião de um conglomerado aleatório de artigos esparsos. Nosso objetivo era o de reunir trabalhos que tivessem uma identidade temática e que, além disso, apresentassem um fio condutor consistente. Depois de discutir muito (muito),  pensamos ter encontrado na crítica aos fundamentos e às alternativas às penas e medidas de segurança no Brasil contemporâneo esse fio. Como referido, em todos os estudos, duas problematizações são constantes: primeira, a da insustentabilidade dos discursos de justificação das penas e medidas de segurança e das suas instituições (prisões e manicômios); segunda, da a falácia das alternativas penais em um ambiente cultural e institucional punitivista.

Além disso, algumas representações sobre os temas, algumas imagens foram aparecendo durante o processo de seleção e de revisão dos textos e de apresentação do livro: sofrimento e clausura; sofrimento e(m) clausura.

Nossa luta prático-teórica, político-acadêmica, é para reduzir o sofrimento das pessoas que cumprem penas e medidas em prisões e manicômios; é lutar pela abolição desses espaços de clausura.

Quais as principais conclusões que vocês chegaram com a redação do livro?

Temos plena consciência de que, por mais assustador que seja admitir, os enclausurados no Brasil são considerados como “restos humanos”. Essa é a tônica do discurso punitivista alimentado pelos meios de comunicação e pela indústria cultural em geral.

A questão é que essas pessoas que são enclausuradas acabam sendo aqueles que sobreviveram ao massacre que sofre cotidianamente a juventude brasileira, especialmente a juventude negra das periferias. A prisão é, em realidade, a experiência final de uma política criminal sacrificialista regida pelo racismo sistêmico, estrutural. Lembrem-se de “Haiti”: os “presos são quase todos pretos; ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres” (Caetano e Gil). E nesse ponto a única diferença entre as prisões e os manicômios judiciários seria a de que os considerados loucos infratores, em geral, se tornam velhos em tais instituições. Tendo em vista que não há prazo máximo legal para o cumprimento de medidas de segurança, em geral essas pessoas entram jovens e saem idosas dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Ou mortos, o que é igualmente comum.

Deste modo, entendemos que, de forma alguma, a clausura imposta a esses sujeitos significa uma “alternativa bem sucedida” ao extermínio. Vilma Reis nos ensina, com propriedade, que “quem não é preso, já foi morto.”  Mas isso não significa que os sobreviventes estejam “salvos” em clausura. Pelo contrário, são submetidos diariamente às mais radicais formas de violência. A realidade prisional e manicomial brasileira, retratada no livro, é, por si só, a demonstração “in natura” desta tese. O sistema punitivo é, em si mesmo, uma ferida aberta em nossa frágil democracia. Uma chaga que há séculos não cicatriza e que deve ser nominada para que as pessoas sintam a sua dor e, no mínimo, se sensibilizem.

Nosso foco nas penas e nas medidas de segurança, nas prisões e nos manicômios, é em razão do fato de que no discurso da Ilustração, que estabelece os mitos fundantes do Direito Penal moderno, esses institutos e instituições são os que teriam como objetivo expurgar os restos de barbárie das práticas punitivas. O sonho iluminista é o da pena racionalizada, humanizada. Contudo, lembra Benjamin que “não há documento de cultura que não seja também um documento de barbárie.” O livro procura denunciar que, no cumprimento das penas e das medidas de segurança, na relegitimação cotidiana das nossas prisões e manicômios judiciais, reafirmamos, dia a dia, com uma competência assustadora, nossa opção pela barbárie, pelo sofrimento mascarado em forma de sanção jurídica.

Por fim, gostaríamos de agradecer publicamente aos editores da Empório do Direito, que abraçaram sem qualquer obstáculo esse projeto, e que deram todas as condições para que o livro chegasse ao público no formato que imaginamos desde o início.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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