Salò: 120 dias antigarantistas

25/07/2015

Por Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth e Laura Mallmann Marcht - 25/07/2015

Os curiosos em busca de filmes horripilantes certamente já ouviram falar de Salò: 120 dias de sodoma. Isso porque o filme não mede limites em apresentar cenas de violência raramente vistas no cinema – particularmente pelo fato de se manter fiel à obra de Marquês de Sade, “Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem”, um dos autores mais controversos da história da literatura.

Em vida, o Marquês foi preso diversas vezes em razão do caráter obsceno e promíscuo de suas obras, as quais eram por ele utilizadas para desmascarar a sociedade francesa da época, denunciando algumas práticas reiteradas (sodomia, torturas sexuais, etc) que a aristocracia preferia manter na obscuridade. Filmado na mesma época em que Foucault dava seus primeiros cursos sobre biopoder e biopolítica (Em defesa da sociedade, curso no Collège de France, 1976), o último filme produzido pelo diretor italiano Pier Paolo Pasolini antes de ser assassinado, apresentado ao público pela primeira vez no Festival de Paris, em 1975, representa uma crítica contundente ao fascismo ainda operante no mundo do pós-guerra, particularmente na Itália.

Entre 1944 e 1945, por 120 dias, o norte da Itália – o “antiinferno” do filme – é ocupado por nazi-fascistas para cometer as mais diversas atrocidades. Quatro deles formam a “companhia”, composta pelo Duque Blangis, Presidente Curval, Bispo (irmão do Duque) e o Magistrado Durcet (que por seu relato, trabalhava no tribunal do júri). São homens da alta sociedade que criam um código repleto de normas cruéis para que jovens os satisfaçam. Os três poderes e o clero veem-se representados nas figuras da “companhia”.

A “companhia” institui regras aos jovens, como o horário que devem comparecer ao salão de orgias, o uso de vestimentas adequadas e comportamentos animalescos, de submissão. Instituem também punições, como, por exemplo: os homens que forem pegos em flagrante delito, fornicando com mulheres, serão punidos com a perda de um membro; aqueles que forem pegos praticando atos religiosos, serão punidos com a morte. Qualquer lascívia será permitida”, ditam os homens.

De início, são selecionados 18 jovens sadios e perfeitos. Dentre estes, um é morto ao tentar fugir e outra é assassinada por cometer ato religioso. “Fracas criaturas acorrentadas, designadas ao nosso prazer, espero que não tenham a ilusão de encontrar aqui a ridícula liberdade concedida pelo mundo exterior”, dita o Duque, e continua dizendo: “Vocês estão fora dos limites de qualquer legalidade. Ninguém no planeta sabe que estão aqui. Para o mundo, vocês já estão mortos.”.

Delimitadas as regras, os homens iniciam suas atividades. Quatro senhoras, prostitutas experientes, narram diversas experiências suas para alimentar a lascívia dos senhores. No chamado “círculo das manias”, a Senhora Vaccari conta as diversas manias que encontrou em seus clientes e o Magistrado cita que “não há mais nada contagioso que o mal”, esperando que as vítimas se contagiassem com as histórias narradas.

Torturados pela fome, as vítimas são presas a coleiras e imploram por comida como animais. Enquanto isso, vários são chicoteados ou torturados de outra forma, como uma das jovens que foi alimentada com pregos. Os fascistas, excitados por suas ações, dizem que são os únicos anarquistas, uma vez que tomaram o poder do Estado e “na verdade, a única anarquia é aquela do poder” cita o Duque.

No denominado “círculo da merda”, a Senhora Maggi narra histórias contendo coprofagia e o Presidente cita que seu maior sonho é participar de um banquete com os excrementos das vítimas. A libertinagem consiste em ser carrasco e vítima. Nesse momento, os jovens imploram em silêncio pela morte e até mesmo é dada a esperança de que um dos jovens morresse, mas ele é impedido e o Bispo ironiza dizendo: “Você deve ser estúpido para pensar que a morte viria tão rapidamente. Não sabe que nossa intenção é matá-lo milhares de vezes? Até o fim da eternidade, se a eternidade tiver fim.”.

Por fim, no “círculo de sangue”, a Senhora Castelli conta histórias de mortes e mutilações. Não resta mais nada aos indivíduos, já despidos de qualquer sensação de dignidade, a não ser a morte, e nem esta é tranquila. Os jovens insubordinados foram castigados com escalpelamentos, línguas e olhos arrancados, enforcamentos e afins.

Salò retrata de forma crua, até onde o homem é capaz de chegar. A objetificação do homem, a intolerância religiosa e as penas desmesuradas fazem parte desse contexto em que o estado de exceção criado reproduz “a criação de um espaço no qual a vida humana e a norma entram em um limiar de indistinção: o ordenamento “normal” é suspenso de modo a permitir todo e qualquer tipo de atrocidades.” (WERMUTH, 2014)[1].

Na obra, portanto, está presente a principal característica do estado de exceção. O filme retrata uma situação de campo – espaço por excelência do estado de exceção – no qual os habitantes são despojados de seus direitos e reduzidos a meros objetos de uma ação política, reduzidos a zoé, ou seja, mera vida natural. A morte não acontece nos primeiros estágios porque, ao matar, o poder se auto-suprime. No entanto, na medida em que as vítimas são submetidas a uma situação de fome e degradação, o poder ganha tempo. E, com isso, o poder funda um terceiro reino entre a vida e a morte, atestando o seu triunfo sobre a humanidade do homem (AGAMBEN, 2008)[2]. Privados de todos os direitos e expectativas que habitualmente são atribuídos à existência humana, mas ainda vivos biologicamente, os jovens capturados na mansão vivem em uma zona-limite entre a vida e a morte, entre o interno e o externo. Nessa situação, são apenas vida nua.

É por isso que os jovens habitantes da mansão são submetidos a sucessivos processos de cesuras, até o ponto que chegam ao estado de meros homines sacri. Esse período de tempo que medeia a condenação à morte e a execução delimita um limiar extratemporal e extraterritorial, no qual o corpo humano é desligado de seu estatuto político normal. Na exceção, esse corpo é abandonado ao poder: o experimento, como um rito de expiação, pode restituí-lo à vida ou entregá-lo definitivamente à morte (à qual já pertence desde o momento da captura no limbo da exceção).

Dessa forma fica clara a necessidade da fiscalização rigorosa dos direitos humanos e fundamentais, uma vez que a falta de regulação desses pode causar danos jamais vistos pela sociedade – e diversos desses nem chegam ao nosso conhecimento. Um Estado desregulado pode fazer tanto mal quanto a “companhia”, instaurando um retrocesso à humanidade que nem sempre é capaz de ser superado.


Notas e Referências:

[1] WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Produção da Vida Nua no Patamar de (In)distinção entre Direito e Violência: a gramática dos imigrantes como “sujeitos de risco” e a necessidade de arrostar a mixofobia por meio da profanação em busca da comunidade que vem. 2014. 250f.  Tese (Doutorado em Direito Público) - Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. 2014.

[2] AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.


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Maiquel Ângelo Dezordi WermuthMaiquel Ângelo Dezordi Wermuth é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2014). Mestre em Direito pela UNISINOS (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ (2008). Graduado em Direito pela UNIJUÍ (2006). Professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e da UNISINOS.        


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Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.    

 


Imagem Ilustrativa do Post: Human Imagination // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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