Rota Bioceânica: imperiosa necessidade de pensar e agir sobre suas importâncias e os interesses que estão em disputa

05/03/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A Rota Bioceânica tem diferentes âmbitos para se considerar a sua importância. E em todos eles o pensar criticamente faz-se imperativo. Por isso, ouso enunciar alguns desses âmbitos.

Na integração dos povos, o que se tem é um ponto de vista romântico sobre a integração dos sul-americanos e com isso, há a construção do imaginário que, a partir dela, todas as pessoas irão viajar e conhecer os demais países como Paraguay, Bolívia, Argentina, Chile e até chegar aos países do oriente pela mesma via dos navios que irão transportar mercadorias. Essa integração desconsidera exatamente os povos originários que constituem a América do Sul, ou seja, é uma integração colonialista travestida de lazer e cultura. A integração que se pode desenhar e efetivar precisa considerar as diversidades culturais dos diferentes povos indígenas, assim como as comunidades remanescentes de quilombos, as mais de uma dezena de línguas, especialmente aqueles grupos que resistiram fisicamente pós-guerra da tríplice fronteira segue sendo um desafio.

No fomento ao turismo, as expedições realizadas por jeepeiros, pesquisadores e gestores públicos indicam, no entanto, que a maioria das viagens sem finalidade específica de negócios (exportações comerciais de grãos, minérios, carnes) está sendo realizada com fundos públicos. A política de desenvolvimento do turismo com bases não predatórias sequer iniciou as tratativas entre os países.  O turismo atual é realizado por parte da grande burguesia ou por trabalhadores assalariados de classe média que, em grande parte ainda não agregou exatamente a diversidade cultural como componente de suas férias. O discurso impetrado pelos defensores da Rota é que ‘todos’ poderão ir de um lugar ao outro lado do mundo. Segue, portanto, questionável a importância da RB para o turismo que não seja facilitar, com dinheiro público, o acesso colonialista a territórios de ancestralidades. É possível dizer que a classe trabalhadora com a remuneração média brasileira não irá aos paraísos turísticos latino-americanos.

Na interconexão cultural talvez possa ser considerada se houver, por parte dos planejadores e gestores da RB, o fundamento que o financiamento da ‘sua obra’ não pode ser somente de construção de estradas, pontes e portos. É preciso que a RB signifique também a abertura de possibilidades de integração de culturas e potencialização das mobilidades entre diferentes povos e grupos, sejam eles de povos originários e tradicionais. O Festival América do Sul, realizado em Corumbá-Ms, é um bom exemplo de como isso ocorre. A depender do gestor público que o opera é que se dá a maior ou menor participação dos grupos dos “de baixo” como diria Florestan Fernandes. A disputa ideológica do que pode ser cultura e integração dos povos está dada e esse debate precisa ser colocado no âmbito do que se chama de Rota Bioceânica de forma mais abrangente.

Nas políticas sociais poder-se-ia considerar que a RB potencializaria, por exemplo, os territórios latinos fronteiriços de saúde, de educação, de segurança pública, de assistência social, de esporte... Nesse ponto específico, o histórico de processos democráticos interrompidos, ou melhor dizendo, de ditaduras quase sequenciais, indicaram sempre pouca ou nenhuma iniciativa de integração em pé de igualdade e respeito aos outros países quando as iniciativas partem do Brasil, mas de rechaço a tudo o que vem dos países fronteiriços. O preconceito e discriminação com os demais são tão evidentes que há um discurso colonizador que quer incutir a ideia que tudo o que vem dos demais Estados-nação não é bom, como se o Brasil, de forma imperialista, pudesse dizer o que é bom para os demais. A RB poderia preocupar-se com esses territórios de encontros e de acordações bi e transnacionais em busca da garantia dos direitos humanos e, portanto, integração de territórios de direitos em saúde, educação, assistência social... Isso teria que estar no cômputo da RB desde o seu planejamento e não necessariamente no quesito ‘impactos negativos’. Assim poderíamos construir rotas de direitos e não somente rotas de violações de direitos.

No que se refere ao mundo do trabalho, as diferentes formas de contratação e as desigualdades de condições de vida e remuneração mantém significativas denúncias sobre a seguridade social. Há obras que são subcontratadas em mais de três vezes, ou seja, a responsabilidade com a qualidade de vida no trabalho é diluída e, em muitos casos, incapaz de ser identificada. A quarteirização impõe a precarização nas funções essenciais no processo de construção da infraestrutura da Rota e, com certeza, será assim na manutenção das estradas, portos e pontes. Terão os trabalhadores e trabalhadoras da Rota os direitos ao usufruto do seu trabalho? Ou serão eles e elas humanos que terão suas vidas gastas, acidentadas e adoecidas como seres necessários ao (des)envolvimento e, portanto, esquecidos e negados? Talvez se considerarmos os trabalhadores “de cima” esses terão postos de trabalho majorados em importância e remuneração... mas quantos são eles e elas?

No âmbito econômico é que se encontra a maior intencionalidade da sua execução. Não se trata verdadeiramente de integração transnacional, mas de integração econômica que potencializa a acumulação do capital das grandes empresas transnacionais. É disso que se trata sendo os demais quesitos considerados como tangenciais ou paralelos. Especificamente se quisermos observar os territórios depreciados em políticas públicas, não há no desenho da RB e tampouco na sua intencionalidade, o investimento na potencialidade das localidades do ponto de vista de micro, média e pequenas iniciativas econômicas. Dado que houve pouca ou nenhuma participação dos “de baixo” no processo decisório, o quesito econômico ficou decidido por gestores, empresários e financiadores. E, para sermos mais precisos, os “de cima” decidiram a economia por eles mesmos. Sequer a mão de obra das localidades foi prioritariamente envolvida ou foi preparada para o trabalho nas diferentes frentes e qualificações necessárias seguindo o discurso autoritário de povo trabalhador desqualificado.

Mesmo com essas questões acima, a maior importância negativa está no âmbito dos significados da Rota Bioceânica e sua simbologia. A ideia que, a partir da RB, todas as pessoas e comunidades estarão integradas à globalização e seu desenvolvimento estará garantido como se observa nos países do Norte, que haverá a inserção aos povos do mundo são impactantes e empacantes. É comum encontrarmos pequenos filmes, slides, fotografias que colocam a região da RB como sendo redentora do subdesenvolvimento, ou seja, ela, por si só, trará o desenvolvimento globalizado e, com isso, vários movimentos, organizações e redes, seguem ‘esperando’ que algo venha acontecer a partir das obras e, com isso, permanecem aguardando os frutos positivos para suas comunidades. Como ouvimos certa vez quando avaliávamos o impacto das destilarias de álcool em Mato Grosso do Sul: os impactos são absorvidos e absolvidos.

Então, avaliar a importância da RB precisa considerar a partir de quais olhos se está mirando a América do Sul e sua posição da Divisão Intra e Internacional do Trabalho, a partir da concepção que o próprio Otávio Ianni nos oferece: uma globalização que nos amedronta e nos fascina, cuja consciência da realidade é construída no processo e a democracia sobre o real não está dada.

Uma distopia propiciada pela construção da Rota é que é possível observar pequenos spots de resistência, mas ainda são tão minúsculos que não se é possível detectar como algo relevante. O fato de terem fatiado a Bioceânica em partes como pequenos trechos de estrada, pontes, ferrovias, estacionamentos e demais infraestruturas necessárias como as aduanas, de um lado, escondeu os impactos e, por outro lado também desmobilizou os debates e as gentes para esse tema.

Então, se a importância da obra passa a ser vista só pelos ‘de cima’ que a ‘vendem’ como sendo sem impactos negativos, os de baixo, de forma coercitiva passam a vislumbrar uma possibilidade de des-envolvimento que eles próprios replicam como importantes. E quem pensa criticamente sabe que não terão as benesses do que tanto defendem. É comum escutarmos que a RB vai trazer crescimento aos pequenos negócios como restaurantes, lojas de materiais de construção, minimercados, conveniências... e, de fato, isso só ocorreria se a RB fosse também uma rota de investimento nas localidades, inclusive na infraestrutura das políticas públicas que, em nada estão sendo beneficiadas.

Além de não serem beneficiadas de forma integralizada e orgânica nos territórios, ou seja, políticas públicas permanentes consideradas e potencializadas em sintonia com as conquistas constitucionais brasileiras, como são o SUS, SUS, SUSP, Turismo, Cultura, Esporte e Educação, dentre outras há, em contraponto o impacto dos acidentes de trabalho, ISTs, violências, especialmente as sexuais contra mulheres, crianças e adolescentes, uso abusivo de álcool e outras drogas, déficit de moradia, transporte. A população flutuante e migrante, assim como a local são impactadas e impactam as políticas que não foram majoradas para atender os direitos de todas as pessoas envolvidas na RB.  

Sem dúvida a maior importância é a econômica e é para acumulação do capital transnacional e não tem a ver com a repartição da riqueza com quem a produz.  Nem tampouco tem a ver com o usufruto das riquezas naturais e da grande possibilidade de aprendermos uns com os outros o modo de ser e viver de tantas gentes latinas...

E quem são os grupos mais afetados pela Rota Bioceânica e que emprestarão seus corpos e suas forças para o trabalho e a grandeza da obra? Sem dúvida são os grupos que já vivem sob a égide das desigualdades e discriminações como são as comunidades tradicionais, os povos originários, quilombolas e, dentre esses, as mulheres e as crianças. Não por acaso é a base da pirâmide que mantém a sociedade coesa e lucrante ao capital se vale dos mais desiguais. Os “de baixo” que vai desde os pobres até os miseráveis grassam recorte de gênero, geração, etnorracial, origem territorial, condição migratória, além de viverem ou não com deficiências. É dentre esses que as violências sexual, laboral, ambiental e expropriação cultural ocorrem de forma mais perversa.

Portanto, falar da importância é um exercício multifacetado, complexo e comprometido a partir dos óculos que se põe. É preciso colocar estacas e entender a seiva capitalista que corre por dentro dos discursos – políticos, empresariais, acadêmicos e até de movimentos sociais – e isso pode significar muitos desconvites aos debates que atualmente estão em voga.

Tomar lado, viver criticamente e construir ajuntamento de gentes são as importâncias aos grupos que têm o coração aquecido pelo direito que se busca no barro, num é? E, afinal, onde estão as crianças na Rota Bioceânica? Por acaso à espreita do que virá em um futuro que não se sabe onde? E o presente, o que está ocorrendo com elas? E as mulheres? Acaso estão aguardando o que o futuro lhes destina... afinal, no presente estão negadas como sujeitas de direitos às benesses do capital...

A opção pelos direitos de crianças, adolescentes e mulheres à condição de sujeitas de direitos é uma resposta fundante de uma sociedade que clama por justiça. É uma resposta ao direito de usufruírem daquilo que se lhes foi tirado e, continuam retirando dos grupos mais aviltados pela política pública que responde ao mando colonizador.

Estar nos movimentos que visam garantir direitos aos fronteiriços civis, físicos e de desigualdades não é retórica, é justiça! E a Rota Bioceânica precisa fazer um empório de direitos ligando o Atlântico de possibilidades de navegar para outros mundos ao Pacífico de garantia de direitos em todas as diversidades... e, quiçá as crianças usufruam dessa utopia possível e necessária!

 

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