Revolvendo o conflito entre o novo §4º do art. 71 da CLT, a Súmula 437 do TST e a Constituição de 1988

11/06/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Em 5 de abril de 2019, foi publicado acórdão da lavra do ministro relator Alexandre Agra Belmonte, da 3ª Turma do TST, que apreciou o Recurso de Revista nº 1002491-25.2015.5.02.0464. O objeto primordial do apelo tencionou, entre outros, discutir a possibilidade de redução do intervalo intrajornada por intermédio de instrumento coletivo a contrato de trabalho firmado antes da Lei 13.467/2017. Na ocasião, foi dado provimento ao recurso para, apontando o confronto ao item II da Súmula 437 do TST[1], condenar a reclamada ao pagamento do intervalo intrajornada de modo integral, ainda que, na hipótese, a redução tenha sido parcial, com acréscimo de 50%, e seus reflexos nas demais verbas trabalhistas.

A despeito das nuances do caso relatado acima, em que se alegava a licitude da medida, tendo em vista que em determinados períodos de vigência do contrato de trabalho firmado havia, inclusive, permissão do então existente Ministério do Trabalho e Emprego para redução em 15 minutos do intervalo para descanso e remuneração, é preciso, uma vez mais, como já fez esse autor em outro momento[2], revolver o tema contido no §4º do art. 71 da CLT.

A Lei 13.467/2017 alterou o §4º do art. 71 da CLT para passar a prever que a não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implicará o pagamento apenas do período suprimido com acréscimo de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho, atribuindo-lhe uma natureza indenizatória.

A Súmula 437 do TST prevê, em seu item I, que a redução do intervalo intrajornada, ou mesmo sua supressão, implica em pagamento total do período correspondente (ou seja, do intervalo intrajornada), e não somente do espaço temporal suprimido, com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho. A natureza desse pagamento é salarial, conforme consigna o item III da Súmula em comento.

Portanto, a nova redação do §4º do art. 71 e o item I da Súmula 437 são diametralmente refratáveis.

O §4º do art. 71, até a “Reforma”, com redação dada pela Lei 8.923/94, tem uma escrita um tanto quanto imperfeita ao aludir à remuneração de um tal “período correspondente” com um acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho, quando o intervalo não for concedido pelo empregador. Pergunta-se: que período seria esse? O período do espaço de tempo correspondente à supressão, que pode ser total ou parcial, ou o período do espaço de tempo equivalente ao instituto jurídico do próprio intervalo intrajornada, enquanto direito trabalhista?

Há duas concepções que são extraíveis do questionamento que se faz sobre os sentidos da previsão do §4º do art. 71 da CLT: uma calcada no sentido temporal e outra no próprio instituto jurídico do intervalo intrajornada.

A consequência jurídica, seja advinda do tempo suprimido, seja da afetação do âmbito normativo do instituto do intervalo intrajornada, enquanto norma de saúde, medicina e segurança do trabalho, obrigam o empregador supressor do tempo para descanso e alimentação de seu empregado ao pagamento do período total do intervalo intrajornada com um acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho com natureza salarial.

Sendo medida de medicina, saúde e segurança do trabalho, conforme, aliás, o item II da Súmula 437 corretamente pontua, retirar do empregado esse direito ao descanso (ainda que parcialmente) significará que não se lhe conferirá o tempo de parada que a lei considera como o ideal para a manutenção da integridade de sua saúde, entendendo-se essa garantia como a concepção de que seu vigor físico e mental não fique saturado ao longo dos anos de cumprimento de contrato, bem como a própria vida do trabalhador, além de se espraiar para a segurança no ambiente laboral, pois o cansaço físico e mental é um fator de risco ao empregador, aos colegas de trabalho e a eventuais terceiros.

Em sentido inverso, o legislador “reformista” ao alterar a redação do §4º do art. 71 passa a seguinte mensagem ao hermeneuta: conferir de modo parcial o intervalo intrajornada, para aqueles que trabalham em duração contínua de mais de 6 horas, não pode fazer recair o ônus ao empregador de pagamento do período total como se nenhum intervalo houvesse sido dado. Deve-se pagar apenas o período suprimido.

Na prática, a Lei 13.467/2017 extermina com a determinação que o caput do art. 71 prevê ao empregador, temperando-se a força normativa de tal enunciado legal e permitindo também a redução do intervalo intrajornada com consequências juslaborais mais restritas.

A alteração hermenêutica que decorre da nova redação do §4º do art. 71 da CLT é prejudicial ao empregado e aos fins colimados pelo Direito do Trabalho, pois se desconsidera o aspecto defensivo da saúde do trabalhador e da segurança no trabalho buscado pelo intervalo intrajornada.

O intervalo intrajornada para repouso e alimentação é um direito trabalhista ao necessário descanso; caso não importe (como não deve) em majoração na jornada do trabalhador, não é computado como tempo efetivo de prestação laboral, nem é remunerado como tal, conforme se depreende do §2º do art. 71 da CLT. É uma norma de medicina e segurança do trabalho a garantir a higidez mental e física do trabalhador.

Não obstante, a prática demonstra ser comum a não concessão integral do intervalo de que trata o caput do art. 71 da CLT, principalmente para aqueles que têm direito ao intervalo de uma hora.

Ressalvada a novidade trazida aos motoristas profissionais e atividades afins, pela Lei 13.103/2015, que acrescentou o §5º ao art. 71 da CLT e que permite a redução ou o fracionamento do intervalo intrajornada mediante negociação coletiva, o TST é, inclusive, refratário à possibilidade negocial coletiva de redução do citado intervalo para os todos os demais trabalhadores, conforme o item II da Súmula 437.

Além disso, a novel redação do §4º do art. 71 da CLT se apropria da ideia de que seja possível ao legislador alterar a natureza jurídica de determinado direito trabalhista, que tem, nesse particular, e ao contrário do que pode pensar o Poder Legislativo, natureza de norma de ordem pública, imperativa, irrevogável pelas partes.

A CLT “reformada” passa a tratar como indenizatório o acréscimo do percentual de 50% sobre a remuneração da hora normal do trabalho. Nesse ponto, conflita com o entendimento inverso, e, pensa-se, correto, adotado no item III da Súmula 437 do TST, o qual afirma que a parcela contida no §4º do art. 71 da CLT tem natureza salarial repercutindo nas demais verbas salariais e encargos sociais incidentes.

Sendo assim, outro efeito pretendido pela alteração legal é que o acréscimo de 50%, que passa a tratar como indenização, não refletirá justamente sobre as demais verbas com natureza salarial, nem sobre os encargos sociais.

Ora, esclareça-se que o intervalo intrajornada, se conferido aos moldes do art. 71, caput, da CLT, não tem natureza remuneratória, nem conta como tempo à disposição do empregador. Caso o intervalo não importe (como não deve) em majoração na jornada do trabalhador, não é computado como tempo efetivo de prestação laboral, nem é remunerado como tal, como prevê o §2º do art. 71 (não alterado pela Lei 13.467/2017).

Questiona-se, dessa forma, como justificar que uma vez suprimido o intervalo intrajornada e, portanto, total ou parcialmente trabalhado, possa o “não-intervalo” (entendendo-se como tal aquele totalmente ou parcialmente não conferido) ser somente remunerado a título indenizatório? Para esse autor, fica difícil encontrar bases teóricas seguras a legitimar a transmutação da natureza levada a cabo pela nova redação do §4º do art. 71 da CLT.

Mesmo que se queira justificar tão-só o pagamento da verba a título indenizatório, por um período que o empregado não terá faticamente prestado trabalho, não é essa a finalidade do intervalo intrajornada a ensejar o pagamento do período total com um acréscimo de 50% por sua inobservância. É o instituto jurídico que deve ser preservado, mediante incidência de determinada remuneração por seu descumprimento, não meramente o espaço temporal que seja ocasionalmente suprimido. Crê-se que é assim que deve ser interpretada a norma que deu ensejo, inclusive à Súmula 437 do TST com a ampliação dada pela Resolução nº 185, em 2012.

Sendo o caput do art. 71 da CLT muito claro no sentido de afirmar que em qualquer trabalho contínuo que exceda 6 horas é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação (leia-se “e/ou”) de 1 (uma) hora, o §4º reformatado conflita com o aspecto assecuratório buscado pelo enunciado normativo, uma vez que passa a prever que não cumprindo o empregador com o intervalo intrajornada deve ser a supressão remunerada com acréscimo, a título indenizatório, de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.

Até a Lei 13.467/2017, o §4º do art. 71 entende como contraprestacional o intervalo inatendido, ainda que seja parcial. Essa contraprestação remuneratória é presumida pelo período total de intervalo não atendido com a incidência de acréscimo de, no mínimo, 50% sobre a remuneração da hora normal de trabalho.

Bem verdade que o §4º do art. 71 da CLT nunca nominou o acréscimo como “hora extra” ou como “hora suplementar”. É a realidade fática que demonstrará, aí sim, a incidência, ou não, das efetivas horas extras. Caso o intervalo intrajornada seja total ou parcialmente trabalhado, e, mais, havendo a superação do módulo diário de 8 horas, incidirá as horas extras sobre o lapso de tempo que ultrapassar ao final do período constitucional máximo de trabalho, cumulado com o pagamento da hora correspondente ao intervalo intrajornada desobedecido (uma hora para os que trabalham mais de 6 horas/dia) majorado, portanto, com o acréscimo de 50%, por se tratar, tão somente, de norma de saúde, higiene e segurança do trabalho (pelo qual deveria o empregado intervalar a prestação laboral), e não, pensa-se, por se tratar de hora efetivamente extra (principalmente nos casos em que o módulo diário de 8 horas não for ultrapassado).

Acresça-se que a Lei 13.467/2017 consegue conflitar três dispositivos legais inovados na CLT: o §4º do art. 71, o inc. III do art. 611-A e o inc. XVII do art. 611-B e seu parágrafo único.

O art. 611-A, inc. III da CLT prevê a possibilidade de instrumentos coletivos prevalecerem sobre a lei dispondo sobre intervalo intrajornada, desde que respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas.

Por sua vez, o art. 611-B, inc. XVII estabelece ser ilícita a cláusula de instrumento coletivo que trate de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, como é o intervalo intrajornada, que está previsto no art. 71 sendo inderrogável por ato do empregador, uma vez ser norma de saúde, higiene e segurança do trabalho.

Nesse nó de enunciados conflitantes, a única interpretação constitucional possível é que o direito ao intervalo intrajornada de 1 hora para os que têm jornada superior a 6 horas é infenso à flexibilização por norma coletiva, porque não se pode suprimir ou reduzir direitos decorrentes de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstos na legislação. E, em assim sendo, o art. 611-B, inc. XVII e seu parágrafo único, que prevê que as regras sobre duração do trabalho e intervalos “não são considerados como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho”, é inconstitucional.

O art. 7º, XXII da CRFB/88, quando trata como direito de todo e qualquer trabalhador à redução dos riscos inerentes ao trabalho, portanto, por meio de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, não está somente a se referir aos enunciados contidos entre os arts. 154 a 201 da CLT, bem como à Portaria nº 3.214/1978 do Ministério do Trabalho e às Normas Regulamentadoras. Quem interpreta o enunciado normativo constitucional dessa maneira, parece ainda considerar possível determinar o sentido das normas constitucionais de baixo para cima, da CLT para a Carta Constitucional, e não o contrário. A Constituição está no núcleo do sistema jurídico. Não se pode desconsiderar que o art. 7º, XXII, como todo enunciado normativo inserido formalmente na Constituição, encontra-se abrangido por um princípio da efetividade, seja ele propriamente normativo, seja ele hermenêutico. Na lição de Luís Roberto Barroso[3], “o intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição”.

O intervalo intrajornada, conforme já exposto, e para aqueles que pensam o contrário, pode não ter sido enumerado expressamente entre os incisos do art. 7º da CRFB/88, mas isso não o torna um direito “menor” e descontextualizado das finalidades protetivas buscadas tanto pelo Direito do Trabalho, quanto pelo Direito Constitucional.

Mas a despeito de todo o afirmado, parece que o TST, diante da decisão citada no início desse breve artigo, deixa a entender que irá futuramente validar o §4º do art. 71 da CLT, uma vez que, naquele Recurso de Revista, enfrentou demanda em que o contrato de trabalho foi firmado antes da Lei 13.467/2017. Contudo, exorta-se que a Súmula 437 do TST seja mantida integralmente, pois está a dialogar estritamente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

 

Notas e Referências

[1] O item II da Súmula 437 do TST estabelece ser inválida a cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho que permita a supressão ou redução do intervalo intrajornada por ser medida de higiene, saúde e segurança do trabalho que é impossível de ser flexibilizado por norma coletiva.

[2] Alterações na CLT pela Lei 13.467/2017. Juris Plenum. Ano XIII, n. 78 (nov./dez. 2017). Caxias do Sul, RS: Editora Plenum, 2017. Em especial, p. 20-23.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 1.ed. 3.tir. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 305.

 

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