Retrocesso no âmbito dos direitos humanos: crimes dolosos praticados por militares contra civis voltam a serem julgados pela justiça militar - Por Leonardo Isaac Yarochewsky

14/10/2017

Na última terça-feira (10) por 38 a 9 votos o Plenário aprovou o PLC 44/2016 que determina que os crimes dolosos cometidos pelas Forças Armadas contra civis sejam julgados por tribunais militares. 

Relatado pelo senador Pedro Chaves (PSC-MS), o texto retira a cláusula de vigência, originalmente vinculada à organização dos Jogos Olímpicos, e transfere definitivamente o julgamento dos crimes dolosos contra vida do Tribunal do Júri para a Justiça Militar. Segundo o senador Chaves seu texto apenas reconhece uma jurisprudência já definida no Superior Tribunal Militar (STM), de que, no caso de eventuais delitos provenientes de missões de garantia da lei e da ordem, “o julgamento deve se dar no âmbito da Justiça Militar, haja vista a necessidade de se garantir aos militares uma justiça especializada e com conhecimento específico”.[1] 

O Projeto prevê que, além das missões de garantia da lei e da ordem, caberá à Justiça Militar o julgamento de delitos praticados por militares contra civis em outras situações específicas: 1) no cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo presidente da República ou pelo ministro da Defesa; 2) em ações que envolvam a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerantes; e 3) em atividades de natureza militar, de operação de paz ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com a Constituição, o Código Brasileiro de Aeronáutica ou o Código Eleitoral. 

Para o ex-juiz federal e professor da Escola FGV de Direito Luciano Godoy uma legislação com essa finalidade certamente terá a constitucionalidade questionada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Esse já foi um instrumento que serviu na época da ditadura contra os civis e acho que seria um retrocesso voltar a dar essa competência à Justiça Militar em operações de segurança pública”.

Antes mesmo da aprovação do PLC 44/2016 a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direito Humanos publicou a seguinte nota de repúdio: 

A Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos vem manifestar sua profunda preocupação relativamente ao PLC 044/2016, que objetiva alterar o Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969), dispondo sobre a transferência para a Justiça Militar da União da competência para julgar, em contextos específicos, os crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis, considerando-os crimes militares em tempos de paz. Ampliar o alcance da jurisdição militar com a submissão de integrantes das Forças Armadas a tribunais militares por crimes dolosos contra a vida de civis em tempos de paz implica direta afronta aos parâmetros protetivos constitucionais e internacionais, em flagrante violação ao Estado Democrático de Direito. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja jurisdição o Brasil se submete, é enfática ao sustentar que a jurisdição militar deve ter um alcance restritivo diretamente condicionado à proteção de interesses jurídicos característicos das forças militares. Para a Corte, apenas agentes militares da ativa podem ser julgados por Cortes militares, somente em crimes militares, sob pena de afronta ao direito ao devido processo legal e ao direito a um julgamento justo realizado por uma justiça imparcial e independente. A Corte ressalta que, por seu caráter especializado ou excepcional, a Justiça Militar deve ter uma competência restrita. Reconhece que a jurisdição militar representa um desafio quanto ao direito de toda pessoa a ser julgada por órgãos independentes, imparciais e competentes, bem como quanto à proteção das garantias da legalidade e da igualdade. Também esta é a orientação da ONU e da Corte Europeia de Direitos Humanos. Cabe ao Senado a responsabilidade de conferir a necessária observância à Constituição e às obrigações internacionalmente assumidas pelo Brasil em direitos humanos, no que se refere à submissão de militares a tribunais castrenses em crimes dolosos contra a vida de civis, preservando direitos e garantias fundamentais e endossando a razão de ser da Justiça Militar como foro especial de jurisdição especializada — como imperativo ético jurídico-político da afirmação do Estado Democrático de Direito. 

No que diz respeito à legislação atual, é interessante lembrar que a mesma teve origem com as discussões levantadas pelo Congresso Nacional a partir do ano de 1992, a partir dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o extermínio de crianças e adolescentes no Brasil. Referida CPI averiguou a participação de membros da Polícia Militar em execuções e observou, também, que o julgamento destes na Justiça Castrense não raramente era marcado pelo corporativismo institucional, que alimentava um sentimento de impunidade.[2] 

Procurando corrigir a referida situação, foi apresentado o PL 2.801/1992, propondo o restabelecimento da Súmula 297 do STF, que afirmava que os policiais militares não deveriam ser considerados militares para fins penais, sendo a justiça comum a competente para julgar crimes cometidos por eles. 

Posteriormente, no mesmo ano, o então deputado Federal (PT-SP) Hélio Bicudo apresentou o PL 3.321/1992, de conteúdo similar, apensado ao projeto de lei apresentado pela CPI. Na tramitação que se seguiu, esse último projeto foi alterado por um substitutivo que transferia para a justiça comum o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis. O substitutivo foi aprovado pelo Congresso Nacional em 1996, sendo sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso no mesmo ano, transformando-se na Lei nº. 9.299/1996, que modificou o art. 9.º do CPM e o art. 82 do CPPM.[3] 

Certo é que a Lei nº. 9.299/1996 entrou em vigor objetivando combater o corporativismo atribuído a Justiça Militar no que se refere, especialmente, aos crimes dolosos contra a vida perpetrados por militares contra civis. Neste contexto é que a referida lei – cedendo as pressões internacionais decorrentes dos casos submetidos à Comissão Interamericana - transferiu para a Justiça comum a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares.

Para o processualista penal Geraldo Prado, bem como para Breno Melaragno Costa, presidente da Comissão de Segurança Pública da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, a competência desses delitos passou para a Justiça Comum para evitar proteções corporativas.[4]

 

Estranhamente a aprovação do PLC 44/2016 acontece no momento em que representantes das Forças Armadas defendem a absurda, abominável e inconstitucional hipótese de “intervenção militar”, verdadeiro atentado à democracia e ao Estado Constitucional.

 

A “licença para matar” ocorre, também, no momento em que o Exército ocupa com o aval do governo (Estadual e Federal) favelas no Rio de Janeiro.

 

Não se pretende aqui, buscar sanções sistemáticas e esmagadoras como obra de vingança do direito penal simbólico e do punitivismo puro e simples, mas não se pode desprezar o número elevadíssimo de pessoas mortas pela Polícia Militar[5], principalmente os mais vulneráveis. Aqui se pretende, simplesmente, resgatar e impor o mínimo de limites ao Estado Penal e a força representada pelo seu braço armado, tudo em nome da proteção dos direitos humanos e do Estado democrático de direito.

[5] A Anistia Internacional lançou no dia 3 de agosto de 2015, o relatório “Você matou meu filho! – Homicídios cometidos pela polícia militar no Rio de Janeiro”.  Ao pesquisar o contexto dos homicídios decorrentes de intervenção policial ocorridos na favela de Acari em 2014, a Anistia Internacional reuniu fortes evidências de execuções extrajudiciais praticadas por policiais militares do Rio de Janeiro. A pesquisa conclui que a Polícia Militar tem usado a força de forma desnecessária excessiva e arbitrária, desrespeitando normas e protocolos internacionais sobre o uso da força e armas de fogo. Isso resulta em diversas violações dos direitos humanos e em um número elevado de vítimas fatais, que são em sua maioria homens jovens e negros. A pesquisa também revela que a sistemática não investigação e consequente impunidade dos casos assim registrados fazem com que policiais militares usem este registro administrativo como forma de encobrir a prática de execuções extrajudiciais. Além das execuções extrajudiciais, outros abusos por parte de policiais militares também foram documentados. A Anistia Internacional ouviu relatos frequentes de ameaças a moradores, testemunhas e defensores de direitos humanos, invasões de domicílios, furtos e agressões físicas. O padrão dos registros de ocorrência alegando confronto e legítima defesa, a alteração da cena do crime pelos policiais envolvidos, a não realização de perícias adequadas, a tentativa de criminalizar as vítimas, a falta de segurança para as testemunhas, e a omissão de atores como o Ministério Público contribuem para a não investigação desses homicídios e, consequentemente, para sua impunidade. (Disponível em:< https://anistia.org.br/noticias/registros-de-homicidios-decorrentes-de-intervencao-policial-encobrem-fortes-indicios-de-execucoes-extrajudiciais/

 

Imagem Ilustrativa do Post: #PECdoFimDoMundo • Nenhum Direito a Menos • 11/10/2016 • Porto Alegre(RS) // Foto de: Mídia NINJA // Sem alterações

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