Trata-se de resumo do caso relativo à denúncia apresentada à Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão do desaparecimento forçado e execução extrajudicial de Rudy Gustavo Muñoz e da detenção e tortura da criança Wendy Santizo Mendes, bem como pelo desaparecimento forçado de outras 26 vítimas.
O caso mencionado fora submetido pela Comissão Interamericana à Corte, em razão da informação insuficiente prestada pelo Estado da Guatemala em relação às medidas expostas na petição inicial formulada por Makrina Gudiel Álvares e outros.
A Comissão solicitou à Corte a responsabilização internacional da Guatemala e a reparação dos danos às vítimas, sob o argumento de que o Estado denegou justiça, não investigou de maneira efetiva os casos noticiados e tampouco prestou informações aos familiares das vítimas. Aduziu-se à Corte que a Guatemala violou diversos direitos ligados, em síntese, à vida; à integridade pessoal, de circulação e residência; à proteção da família; aos direitos da criança; às liberdades de expressão e de associação.
Em resposta, o Estado alegou que os fatos noticiados ocorreram antes da Guatemala aceitar a competência contenciosa da Corte. No entanto, na audiência pública o demandado acabou por reconhecer parcialmente a responsabilidade das violações.
Em sede de sentença, a Corte rechaçou o pedido de incompetência para o julgamento do caso e considerou que a Guatemala admitiu todos os fatos aduzidos no documento inicial[1].
Consta “nos fatos” da sentença um apanhado histórico relativo ao conflito interno e armado ocorrido na Guatemala nos anos de 1962 e 1996. Estima-se que nesse conflito diversas pessoas desapareceram e foram mortas pelo Estado guatemalteco.
Tem-se a notícia que durante o conflito interno, o Estado considerava como inimigos todas as pessoas insatisfeitas com o regime vigente, assim como as que se identificavam como comunistas ou pertenciam a organizações sindicais, religiosas, estudantis ou sociais.
A Corte ponderou que, no referido período, o Estado demandado possuía serviços de inteligência que coletavam e examinam informações dos “inimigos internos” e, após a coleta, os militares capturavam os insurgentes, torturando-os e executando-os.
Em 1990, o Estado iniciou um processo para negociação da paz, estabeleceu a CEH (Comissão para o Esclarecimento Histórico) e realizou a Lei de Reconciliação Nacional. No entanto, o trabalho de fato da CEH era obstado pela falta de pleno acesso a informações e documentos. Somente em 1999, após divulgação de uma ONG estadunidense, é que o Diário Militar contendo informações sobre o período de conflito interno fora divulgado.
No Diário Militar constavam listas sobre organizações de direitos humanos, imprensa e dados de 183 pessoas. Nos registros havia informações de detenções secretas, sequestros e assassinatos no período de 1983-1985.
Posteriormente, o Estado demandado formulou a Lei de Acesso à informação que vedava a confidencialidade de dados relativos a investigações de violações de direitos humanos fundamentais ou a delitos de lesa humanidade. No entanto, nem mesmo o Ministério Público e outros órgãos de investigação conseguiram pleno acesso aos documentos do período nevrálgico.
Assim, em razão da dificuldade de acesso, da morosidade estatal, do desamparo às vítimas e das inúmeras violações de Direitos Humanos é que a Corte reconheceu o pleito inicial e individualizou cada dano de acordo com suas particularidades.
Em linhas gerais, a Corte ponderou que: (i) o Estado se utilizou de cárceres clandestinos e ainda negou informações, denúncias e recursos em benefício da própria torpeza; (ii) houve violação aos direitos ligados à integridade pessoal e à vida em razão do desaparecimento forçado, de modo que tal crime de lesa humanidade só cessará quando os restos mortais das vítimas forem identificados; (iii) o estado ao eleger “inimigos internos” violou as liberdades de associação e de expressão.
A Corte pontuou que a morosidade processual violou direitos das vítimas, pois cabe aos Estados a disponibilização de recursos judiciais efetivos, bem como o devido processo legal com razoável duração.
Nesse mesmo sentido, é obrigação do Estado a investigação, ainda que de ofício, dos atos de tortura, de penas cruéis, desumanas ou degradantes.
Assim, a Corte decidiu, por unanimidade, que houve violação à liberdade, à liberdade de associação e integridade pessoal, à vida e ao reconhecimento da personalidade jurídica das vítimas de desaparecimento forçado; das garantias judiciais, vez que o Estado não investigou a detenção e tortura das vítimas; aos direitos de circulação e residência e de proteção à família, ponderando tais violações individualmente. Ao final, estabeleceu a forma de reparação a ser cumprida pelo Estado.
Como forma de reparação, a Corte determinou ao Estado, em resumo, a publicação da sentença; o prosseguimento das investigações necessárias com o fito de estabelecer a verdade em prazo razoável; a busca efetiva dos desaparecidos; a oferta de tratamento psicológico/psiquiátrico às vítimas; a realização de documentário audiovisual sobre o caso; a construção de monumento em homenagem à memória das vítimas; e o pagamento de indenização seguindo valores especificados na sentença.
QUAL A RELEVÂNCIA DO ENTENDIMENTO DA CORTE?
Além da notória relevância em relação ao aspecto punitivo e pedagógico, o caso em questão foi de extrema relevância para o Brasil que, no ano de 2016, promulgou a Convenção Internacional para Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (Lei n.º 8.767/2016).
O Brasil ao ratificar a referida Convenção assumiu o compromisso internacional de combate, investigação e cooperação para erradicação do desaparecimento forçado e confirmou que tal prática constitui crime contra a humanidade.
Infelizmente, o desaparecimento forçado fora utilizado por diversos países na tentativa de silenciamento dos eleitos “inimigos internos”, tal qual como ocorreu na Guatemala. Contudo, uma vez reconhecido o compromisso de combate a tais práticas nefastas, garante-se, ao menos, a proibição do retrocesso – também conhecido como “efeito cliquet” – na referida pauta.
O julgamento do caso Gudiel Álvares e outros reconhece que o uso do desaparecimento vai além da violação à dignidade da pessoa humana, porquanto também viola a liberdade e integridade pessoal; o direito à segurança e à livre associação; direito ao convívio familiar e outros direitos conquistados ao longo da secularização.
Desse modo, é possível afirmar que a CIDH vem consolidando o entendimento jurisprudencial de que o desaparecimento forçado resulta em multiviolação de direitos que incluem desde a vedação de condutas degradantes até o direito de saber a verdade dos fatos dentre de um prazo razoável.
Mais recentemente, pode-se dizer que o caso pode ser associado ao documento que ficou conhecido como “dossiê antifacista” no Brasil, o qual se destina, ao que tudo indica, a perseguir pessoas classificadas como “inimigas” por intermédio de aparato estatal.
Notas e Referências
[1] Para tanto, a corte pautou-se em outros casos, quais sejam, Caso Ticona Estrada e outros Vs. Bolívia; Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña Vs. Bolívia; Caso González Medina e familiares Vs. República Dominicana etc.
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