Responsabilidade civil do Estado na superlotação carcerária

01/12/2016

Por Tauana Fernandes Fontenelle - 01/12/2016

1 INTRODUÇÃO

A liberdade é uma necessidade do ser humano. Tempos atrás, o grupo social estabelecia regras de convivência e determinava o castigo que seria aplicado contra aquele que praticou atos contrários aos interesses do grupo. A aplicação de tais castigos não somente era questão de controle de ditas condutas não permitidas, mas também impedia condutas novas ou repetidas que colocariam em perigo a manutenção e a existência daquela comunidade. A partir daí surgem as penas, como manifestação do castigo socialmente imposto.

A palavra “pena” provém do latim poena e do grego poiné e tem como significado “castigo”, “punição”, “modo de repressão”, que é estabelecida pelo Poder Público para a violação da ordem social e que se impõe ao transgressor de uma lei.

Para ser possível a convivência harmônica em sociedade, é imprescindível estabelecer regras básicas de comportamento, que devem ser legítimas e ditadas pelos poderes regularmente constituídos. Referindo-se concretamente às normas de natureza penal, cabe destacar o jus puniendi, podendo ser entendido em sentido objetivo – quando o Estado cria normas penais, proibindo ou impondo determinado comportamento por meio de sanção – e, em sentido subjetivo, quando este mesmo Estado, através do Poder Judiciário, executa as suas decisões sobre quem tenha violado uma norma, cometendo infração penal, ou seja, um fato típico, ilegal e culpável.

Ao castigar um cidadão transgressor, o Estado envia uma mensagem à sociedade do poder coercitivo do Direito frente às normas de conduta. Entretanto, as normas sancionadoras, destinadas a disciplinar o comportamento humano, via cumprimento de pena, não devem deixar de reconhecer que estarão violando outros direitos ao sancionar. Entre eles, o direito à integridade física do preso, à vida, mesmo estando sob a tutela do cárcere. A responsabilidade de manter em equilíbrio o cumprimento de pena com dignidade humana recai sobre o papel do Estado. Este deve estabelecer políticas públicas setoriais, adequando-se, deste modo, à realidade carcerária pátria.

Diante do caos em que se encontra o sistema carcerário, alguns tribunais têm proferido sentenças não reconhecendo a possibilidade destes cidadãos em determinar ao Estado (Poder Executivo) obrigações de indenizar.

Em uma sociedade complexa como a brasileira, com tantas desigualdades sociais e demandas de políticas públicas específicas, resulta imprescindível ao Estado e aos operadores do Direito ter claros os conflitos, a realidade prisional e a ferida social resultante da falha do Estado em poder exercer o jus puniendi, com a preservação da vida do preso. Sem se esquecer de que o jus puniendi, paradoxalmente, é uma garantia ao cidadão, que passa a confiar no Estado, entendendo que, se algum bem, seja individual ou coletivo, for atacado por outro membro da sociedade, haverá intervenção imediata, com o objetivo de manutenção e pacificação social.

2 CONTRIBUIÇÕES DE CESARE BECCARIA E MICHEL FOUCAULT

O ano de 1764 foi singular para a história do sistema penal, pois se publica um livro revolucionário que traduzia as ideias defendidas pelos iluministas mais entusiasmados de seu tempo: “Dos delitos e das penas”, do filósofo Marques de Beccaria (1764). Obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII.

A brutalidade da monarquia absolutista, os abusos cometidos por quem detinha o poder, as injustiças, levadas a cabo contra os menos favorecidos, definitivamente, a existência de uma sociedade desigual e tirana, fez com o autor decidisse escrever um manifesto, uma obra que mostrasse os erros e a necessidade de correção imediata de um sistema que não se preocupava com o ser humano. A força de suas palavras fez eco não somente na Itália, mas também, em toda a Europa Continental, sendo reconhecido e celebrado como um livro revolucionário que mostrava o mais terrível que sucedia na sociedade de sua época.

As suas ideias refletiam o sentimento de um povo, cansado de ser oprimido pelos governantes sem escrúpulos, cruéis e corruptos, sem legitimidade, sem capacidade para administrar. Beccaria, além de fazer uma radiografia de um sistema penal injusto e desumano, propôs soluções, que poderiam está sendo aplicadas hoje em dia. Acabou influenciando o nosso sistema penitenciário, advogando por um cumprimento de pena que não resultasse ofensivo à dignidade da pessoa humana, que levasse em conta o fato de o homem poder cometer erros.

Beccaria (1764) chega à conclusão que só a lei é que poderia fixar penas em relação aos delitos praticados, e que não basta simplesmente publicar uma lei anterior ao fato, a fim de que esteja preservado o princípio da legalidade.

Ainda, considerando o pensamento do autor, o mesmo afirmava o seguinte:

A moral política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem. Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência a qual será constrangida a ceder. Os princípios fundamentais do direito de punir estão presentes no coração humano, se a interpretação arbitraria das leis é um mal, também o é a sua obscuridade, pois precisam ser interpretadas. A interpretação das leis jamais poderia ser interpretada pelos magistrados (BECCARIA, 1764, s/p).

Para o autor, ao analisar esta situação, mesmo que se promulgassem algumas leis, a redação incerta, obscura e imprecisa levaria os cidadãos a estar nas mãos dos intérpretes, visto que quase ninguém conseguiria entender claramente o seu conteúdo. Assim, enfatiza que não basta uma lei, com texto aprovado pelo poder competente, ser publicada e entrar em vigor antes do fato. Deveria ser clara, para que os cidadãos pudessem compreendê-la. Esta máxima começa a ser identificada no período Pós-revolução Francesa, como nullum crimen nulla poena sine lege, o que atualmente se denomina “taxatividade da lei penal”.

Outra extensão natural do princípio da legalidade se refere à proporcionalidade das penas. Além de a necessidade de termos claros descritos no tipo penal que proíbe ou impõe determinado comportamento, a pena deve ser proporcional ao mal praticado pelo agente que violou a norma e, portanto, produziu uma lesão ou perigo de lesão a algum bem juridicamente protegido.

A partir da sentença penal condenatória, inicia-se uma nova etapa, ou seja, o cumprimento da pena que foi imposta legitimamente pelo Estado. O condenado, agora, pelo fato de não ter cumprido com uma das cláusulas do contrato social imaginário, perderá uma parte de seu direito à liberdade. A pena também deve ter um fim utilitário, isto é, deverá servir para impedir que o delinquente cometa novos delitos, seja na forma de prevenção especial negativa (com a segregação momentânea da convivência em sociedade) ou, inclusive, como uma prevenção especial positiva (reinserção), assim como uma espécie de prevenção geral (também positiva e negativa), visando a dissuadir os demais membros da sociedade de realizem infrações penais.

Beccaria (1764) enfatiza, em sua obra, que a pena não seja realizada com violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, eficaz, necessária, o mínimo possível em dadas circunstâncias, além de ser proporcional aos crimes e expressa em lei. Para o maestro iluminista, a certeza do castigo, mesmo que moderado, suscitará sempre uma comoção maior que o receio mais cruel, vinculado à esperança da impunidade.

Para a contemporaneidade do Estado e o seu papel como agente executor do jus puniendi, poderíamos considerar ainda a aplicação de uma política pública, com ações sociais que minimizem tanto as desigualdades sociais como a coexistência de diferentes padrões de riqueza, que poderia ser outro fator inibidor de determinadas infrações penais. Para fazer uso das contribuições de Beccaria (1764), em termos da realidade brasileira do sistema prisional, é necessária a mesma coragem e desejo de alterar esta dura realidade. Explica-se, com os seus sábios ensinamentos, que tal pensamento pretende despertar a sociedade para fazer a devida e cuidadosa análise e diferenciação das diversas espécies de delitos e a forma de punir cada um deles.

Nesse sentido, tratando da ideologia sobre a sustentação do sistema, nos deparamos sobre a obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault. Ele é um exemplo de como os melhores diagnósticos e críticas mais contundentes e acertadas ao universo jurídico, muitas vezes, não proveem de juristas nem de acadêmicos de direito. Não era jurista e, sim, filósofo, psicólogo, investigador social e político, cuja obra “Vigiar e Punir” tem o mérito de destacar e descrever as atrocidades que eram cometidas no sistema penal. Podendo ser considerada como um museu de horror, tal obra choca, agride, desagrada aos olhos, porém, lamentavelmente, retrata com fidelidade fatos da vida real.

Foucault (1987) procura mostrar como, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e parte da Modernidade, o castigo do corpo do transgressor era a forma evidente e pública da punição, assim como não se esquece de tratar também da alma condenada. A “alma” que se refere o autor é a interioridade da pessoa, é o centro nevrálgico que precisa ser atingido, para que o sistema punitivo e de vigilância tenha plena eficácia.

De uma forma bastante clara e objetiva, o autor fala que a justiça criminal deve pensar em punir e não, em se vingar, então se deve deixar de lado a vingança do poder absoluto do soberano sobre o corpo do condenado. A punição, desta forma, deveria ser alcançada através de várias intervenções (FOLCAULT, 1987, p. 64).

Ao longo dos anos, diversas propostas se sucederam para tentar dar a prisão um fim distinto de um mero e simples sofrimento para alguém que cometeu uma infração penal. Definitivamente, se pretendia que a prisão, além de retribuir simplesmente ao mal cometido coma infração penal, através da privação da liberdade do delinquente, tivesse um fim utilitário, de maneira que o recluso pudesse, depois de determinado tempo, retornar à convivência com os seus.

O sistema penitenciário está em crise e chegamos a um ponto em que deveria ser revisto o papel do Estado frente ao problema da superpopulação carcerária. Em especial, a responsabilidade civil do Estado ante um sistema que não funciona, no qual a prisão não cumpre com seu papel, não cumpre com seu papel na sociedade, ao contrário, gera mais violência, segrega setores e condições entre classes sociais, tampouco pode ser instrumento de controle de criminalidade que se traduza em segurança e paz social.

3 A FINALIDADE E A PREVISÃO LEGAL ACERCA DO ENCARCERAMENTO

A execução penal tem como pressuposto o princípio da legalidade, já tratado em capítulo anterior, como forma de impedir excessos ou desvios que venham a comprometer a dignidade humana na aplicação da pena. Infelizmente, ante a realidade na qual estamos inseridos, há falta de efetividade no cumprimento e na aplicação desta lei.

O Artigo 1º da LEP dispõe que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Tal artigo inaugura a LEP e define o próprio conteúdo finalístico da execução penal, como um todo e, desta forma, influencia o sistema de execução quanto à aplicação da pena no sistema prisional.

Dentre os postulados constitucionais de respeito aos direitos fundamentais que se relacionam com este estudo, destacamos os Artigos 1º e 5º da CF/88.

Enquanto o Artigo 1º, inciso III, fundamenta a dignidade da pessoa humana, como princípio fundante do Estado de Direito brasileiro, e o Artigo 5º Incisos XLVIII e XLIX, trata dos direitos e das garantias fundamentais, individuais e coletivos, ressalvando-se que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” e que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Destacamos, com veemência, o Inciso LXXV do artigo 5º: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

Encontramos também outros princípios processuais no mesmo Artigo constitucional – Incisos LIV, LV, LVI, LVII, LXII – os quais cumprem estabelecer outros princípios específicos da execução, como, por exemplo, o da legalidade, o da isonomia, o devido processo legal, a presunção de inocência, a proporcionalidade e a individualização da pena, todos aplicáveis à fase executiva. Os Artigos 3º da LEP e 38 do Código Penal asseguram estes direitos, mesmo não atingidos pela sentença condenatória, sempre nos limites impostos pela Constituição Federal.

Somados aos princípios específicos da execução penal – humanidade das penas, vedação ao excesso de execução e personalidade ou intranscendência – transmite a LEP a base principiológica constitucional que deveria nortear o sistema prisional[1].

Na LEP, igualmente, estão contidas as normas fundamentais que regem os direitos e os deveres do sentenciado no curso da execução da pena. Desta forma, pode ser compreendida como instrumento de preparação para o retorno ao convívio social do detento. Busca a manutenção da integridade física e dignidade do recluso.

Além disso, determina esta lei, no Artigo 84, que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e a sua finalidade”. Flagrante inobservância quanto ao cumprimento deste dispositivo e que demonstra as discrepâncias entre teoria e prática do sistema.

Outra menção legal importante para o trabalho ora apresentado é o Capítulo II da LEP. Ao tratar sobre penitenciária, descreve não somente a finalidade desta, destinando-se ao cumprimento de pena de reclusão, em regime fechado, pelo condenado, mas também quem poderá construí-las: União Federal, Estados e Distrito Federal. Pode ser compreendida como estabelecimento de uma obrigação de fazer por parte dos entes públicos nesta prestação como política pública.

Segue descrição, no Artigo 88, como deve ser alojado o condenado e os requisitos básicos da unidade celular. Cabe frisar a dicotomia entre realidade e expressão legislativa diante da população carcerária atual e os mínimos estabelecidos na LEP. O Capítulo ainda estabelece requisitos para penitenciária de mulheres no artigo 89 e o local onde deve ser construída a penitenciária de homens no artigo subsequente, o qual deve ser “afastado do centro urbano, à distância que não restrinja a visitação”.

Diante da realidade prisional brasileira, podemos considerar que a LEP permanece satisfatória no plano teórico e formal, porém, se a finalidade é a ressocialização do condenado, o tratamento penal individualizado que este recebe do Estado transforma em plenamente insatisfeita e ineficaz o seu cumprimento por parte das autoridades públicas. Mais além, esta realidade perversa da superlotação dos presídios destrói o sistema teórico, inverte papéis, transformando o verdugo em vítima e não transmite à sociedade a paz necessária.

Ao analisar o Artigo 3º da LEP, ao dispor que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”, seguramente se conclui a previsão legal, colgada à garantia constitucional, no entanto, na prática, é mais uma afronta ante as mazelas sofridas pelo preso durante a execução da pena privativa de sua liberdade. Verdadeiro descompasso entre lei e aplicação desta fundamenta o nexo causal necessário para a fixação de responsabilidade civil do Estado.

3.1 A VIOLAÇÃO DO ARTIGO 88 DA LEI Nº. 7.210/84

Passadas quase três décadas de vigência da Lei de Execução Penal e mais vinte anos da promulgação da Constituição Federal Brasileira, tida como “Constituição Cidadã”, ainda estamos às voltas com velhos problemas relacionados à prática da execução das penas criminais e que podem nos remeter à dura realidade descrita por Beccaria há mais de duzentos anos.

Continuadamente, a prática execucional brasileira demonstra afronta tanto aos dispositivos da LEP quanto à reincidência e impunidade em matéria ao desrespeito às garantias constitucionais acima descritas.

A simples leitura do Artigo 88 da LEP leva o leitor a questionar como se distanciou a vontade do legislador ante a realidade assistida. Com uma população carcerária crescente, tendendo sempre à superlotação – que gera rebelião – a falência do sistema penitenciário e do modelo de ressocialização está fadada a manter os níveis de insegurança e incerteza continuada.

O que nos leva a refletir que, diante da violação aos direitos do preso, ante a falha estrutural do Estado em estabelecer política pública setorial eficaz, poderá ser esta falta utilizada como fundamento jurídico para pleito em relação à responsabilização civil estatal. Em que casos e requisitos específicos isto ocorre abordaremos no capítulo terceiro deste trabalho.

Dentre os deveres e os direitos do preso, dispostos nos Artigos 39 e 41 da LEP, respectivamente, assinalamos o que vêm a seguir. Como rol taxativo, são deveres do condenado: o comportamento disciplinado e o cumprimento fiel da sentença; a obediência ao servidor e o respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; a urbanidade e o respeito no trato com os demais condenados; a conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; a execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; a submissão à sanção disciplinar imposta; a indenização à vítima ou aos seus sucessores; a indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho; a higiene pessoal e o asseio da cela ou alojamento; e a conservação dos objetos de uso pessoal.

Por outro lado, constituem direitos do preso, a alimentação suficiente e o vestuário; a atribuição de trabalho e a sua remuneração; a Previdência Social; a constituição de pecúlio; a proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; o exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; a entrevista pessoal e reservada com o advogado; a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; o chamamento nominal; a igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena; a audiência especial com o diretor do estabelecimento; a representação e a petição a qualquer autoridade em defesa de direito; o contato com o mundo exterior, por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes; o atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente (Incluído pela Lei nº 10.713, de 13.8.2003). Cabendo ressalva do parágrafo único, em que alguns dos direitos previstos poderão ser suspensos ou restringidos, mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.

Se pensarmos que o crime é e provavelmente sempre estará na convivência da sociedade, somos levados a perceber como o crescente aumento da violência na população carcerária e a deficiência prestacional do Estado andam em sentidos opostos. O descontrole do sistema prisional, a contínua falha em políticas eficientes que procurem o equilíbrio do sistema são comprovações da ineficiência estatal. Tal constatação produz a possibilidade de responsabilização civil e moral estatal em via judicial. Como fundamento jurídico doutrinário, pode ser aplicado o garantismo penal.

Luigi Ferrajoli[2], em sua obra “Direito e Razão”, fornece as bases para esta doutrina. Propõe uma base teórica para a promoção dos direitos individuais sobre o poder do Estado. Esta visão do Direito Penal está consagrada pela CF/88 e aplicada aos princípios que destituíam a pena de seu caráter meramente retributivo, fase às garantias que traduzem limites e vínculos normativos, como, por exemplo, as proibições e as obrigações formais e substanciais, os impostos na tutela dos direitos; e as garantias secundárias, consideradas como diversas formas de reparação – desde a anulabilidade de atos inválidos à responsabilidade por atos ilícitos e subsequentes violações das garantias primárias.

No caso brasileiro, pode-se concluir que as garantias existem e que poderiam transformar-se em efetividade e aplicabilidade das normas acima elencadas, entretanto a sua funcionalidade ainda é precária, devido ao sistema carcerário brasileiro e às mazelas que este reflete na rotina dos presídios. Assim, temos uma legislação digna de ordenamento de primeiro mundo, todavia, inserida em contexto social e econômico de país em desenvolvimento, o que dificulta ou inviabiliza a sua efetiva aplicabilidade. É chegada a hora de interpretar o sistema prisional e a LEP, a partir de análise do ser ao dever ser, entre as delimitações materiais impostas pela realidade dos fatos (ser) e o aspecto formal da lei, o que está escrito como previsão normativa (dever ser).

Hans Kelsen (2006), em sua consagrada obra “Teoria Pura do Direito”, ao tratar do Direito e natureza, esboça a distinção entre ser e dever-ser, ou seja, entre as coisas como são e as coisas como devem ser, cada uma com papéis distintos, embora cruciais na concepção do Direito. Aplicar a este estudo a reflexão do Direito como ele é e o Direito como deve ser permite a conexão entre o vigor do Direito Penal e da execução penal brasileira à realidade do sistema prisional. O resultado é a não reinserção social e reeducação do condenado, não alcançando, desta forma, os seus propósitos, mantendo a dicotomia entre o ser e o dever ser do Direito.

Em suma, considerando a LEP como norma jurídica de dever ser que tem por finalidade as disposições da sentença e proporcionar condições para a reintegração social do condenado, há limitadas no contexto social carcerário, no que tange ao descompasso entre lei e realidade, com o Estado ausente.

4 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NA SUPERPOPULAÇÃO CARCERARIA

Iniciaremos esta abordagem, tratando do conceito jurídico de responsabilidade. Oriunda do latim respondere, significa responsabilizar-se, assegurar, assumir algo ou do ato que praticou. Por seu caráter de extrema importância ao ordenamento jurídico, a responsabilidade abrange âmbitos tanto na área penal, como na área civil. Ao centrar a responsabilidade em visão jurídica da esfera civil, esta estará associada a uma obrigação, mais especificadamente, à obrigação de reparar um dano sofrido por alguém.

Durante muitos séculos prevaleceu a idéia de que o Estado não tinha qualquer responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes. Dentre as várias concepções, isentando o Estado de responsabilidade, tinha-se a de que: o monarca ou o Estado não erram. O Estado atua para atender ao interesse de todos e não pode ser responsabilizado por isso, a soberania do Estado, poder incontrastável. As ações eram interpostas somente contra o próprio funcionário causador do dano, jamais contra o Estado, que se mantinha distante do problema. Ante a insolvência do funcionário, a ação de indenização quase sempre resultava infrutífera.

A Constituição do Império (1824), bem como a Constituição Republicana (1891), já previa a responsabilidade dos empregos públicos pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções.

Conforme pondera José Antonio Nogueira, o problema da responsabilidade é o próprio problema do direito, visto que “todo direito assenta na idéia da ação, seguida da reação de restabelecimento de uma harmonia quebrada”. Conforme Diniz (2002, p.5) o interesse em restabelecer o equilíbrio violado pelo dano é a fonte geradora da responsabilidade civil, conclui-se, daí, que na responsabilidade civil a perda ou diminuição do patrimônio do indivíduo ou o dano moral é que geram a reação legal.

A responsabilidade civil constitui uma obrigação que tem por objeto o pagamento de uma indenização, que pode originar-se de: inexecução de contrato; da lesão de um direito subjetivo.

A responsabilidade civil tem uma função essencialmente indenizatória, ressarcitória ou reparadora. Portanto, dupla é a função da responsabilidade: a) garantir o direito do lesado à segurança; b) servir como sanção civil, de natureza compensatória, mediante a reparação do dano causado a vítima. (DINIZ, 2002, p.8).

4.1 CONCEITO E FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL: CULPA E RISCO

O conceito de responsabilidade civil pode ser identificado a partir do art. 927 do Código Civil brasileiro, quando o ordenamento jurídico pátrio atribui a uma pessoa a obrigação de reparar os danos causados a outra, mediante a prática de um ato ilícito. Extrai-se desse dispositivo legal, sinteticamente, que responsabilidade civil é a obrigação de indenizar.

Entre tantos doutrinadores, aportamos o conceito deste instituto de Direito Civil, conforme definição da ilustre Diniz (2003):

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial, causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa que a ela pertencente ou de simples imposição legal. (s/p).

Outro importante expoente civilista, Venosa (2002) ensina que:

A responsabilidade, em sentido amplo, encerra a noção em virtude da qual se atribui a um sujeito o dever de assumir as consequências de um evento ou de uma ação. Assim, diz-se, por exemplo, que alguém é responsável por outrem, como o capitão do navio, pela tripulação e pelo barco, o pai pelos filhos menores, etc. (s/p);

Assim, a ordem jurídica tem por objetivo proteger o lícito e reprimir o ilícito, estabelecendo deveres e obrigações aos cidadãos. Desta forma, podemos afirmar que, se todo dano ocorrido na vida social causa um desequilíbrio e este clama por uma reparação, o sistema legal deve estabelecer tal posicionamento, pois o dano atinge não apenas a vítima, mas também, toda a sociedade.

Em termos da responsabilidade do Estado, em decorrência do descumprimento ou inadimplemento de uma obrigação contratual, estaremos nos valendo da construção jurídica e doutrinaria do Direito Administrativo. Utiliza-se, então, a definição de Di Prieto (2008), que define a responsabilidade do Estado como extracontratual, a saber: “A obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis ao agente público”.

A doutrina estudada permite extrair que o grande fundamento da responsabilidade civil é o princípio do neminem laedere, que consubstancia a vedação de uma pessoa, com seus atos, de ofender ou causar danos aos outros na vida em sociedade. Porém, há outros princípios que, agregados ao neminem laedere, também fundam o sistema da responsabilidade civil, com destaque para os da culpa e do risco. No princípio da culpa, está subjacente o valor liberdade, enquanto, no princípio do risco, há a presença do valor igualdade.

Pelo princípio da culpa, ninguém pode ser obrigado a reparar um dano se não foi o seu causador, agindo intencionalmente (dolo) ou pelo menos descuidadamente (culpa). Está expresso no Artigo 186 do CC/2002 e trata-se da responsabilidade subjetiva, ou aquiliana. Para caracterizar a responsabilização de uma pessoa pelos danos causados a outra, exige-se a presença de um elemento subjetivo na sua conduta, que é o dolo – a intenção de causar o dano – ou a culpa “stricto sensu” (o descuido da conduta: negligência, imprudência ou imperícia).

O nobre desembargador e professor gaúcho Paulo de Tarso Vieira Sanseverino ensina que, embora com conceitos semelhantes aos do Direito Penal, o rigor na apuração da culpa é menor, pois os valores em jogo são distintos. No Direito Penal, discute-se a liberdade do agente responsável, enquanto, na responsabilidade civil, o debate é de cunho patrimonial.

Como modalidades de culpa, o sistema de responsabilidade desdobra-se em duas possibilidades: o dolo e a culpa “stricto sensu”. O dolo é a intenção do agente de causar o dano. A culpa “stricto sensu” engloba os atos descuidados praticados por uma pessoa, violando regras de comportamento na sociedade. É reconhecida pela conduta do agente, quando esta se caracteriza em infração de um dever jurídico de diligência, que o imputado poderia conhecer e deveria observar. A imprudência é o descuido ou a violação positiva de uma regra de comportamento, que provoca a ocorrência de danos. A negligência é o descuido negativo em que o agente omite-se no seu dever de precaução (ato omissivo). A imperícia é a culpa profissional, consistindo na violação de regras técnicas de uma determinada profissão.

Na teoria do risco, há uma socialização dos riscos, calcada no valor igualdade. Em função da desigualdade material em determinadas relações, restabelece-se a igualdade, transferindo-se o risco, que normalmente seria da própria vítima, para o prestador do serviço. É o que trata a cláusula geral de risco no parágrafo único do Artigo 927 do CC/2002: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Traduz a máxima de que, na ideia de risco, independente de culpa, o agente assume o risco de sua atividade e, cumprindo os pressupostos da responsabilidade civil objetiva pelo risco, terá que indenizar a vítima.

4.2 PRESSUPOSTOS: FATO, NEXO DE IMPUTAÇÃO, DANO, NEXO CAUSAL E ILICITUDE

Os pressupostos da responsabilidade civil são os elementos do ato ilícito. Abrange o conjunto de elementos que devem estar presentes no ato ilícito, para que ocorra o nascimento da obrigação de indenizar.

A identificação dos pressupostos da responsabilidade civil deve partir do conceito básico de ato ilícito, estabelecido pelo art. 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Procedendo-se à leitura desse enunciado normativo de trás para frente, podemos identificar os cinco pressupostos. Comete ato ilícito aquele que, por ação ou omissão (fato) voluntária, negligência ou imprudência (nexo de imputação: culpa), violar direito (ilicitude) e causar (nexo causal) dano a outrem ainda que exclusivamente moral (dano).

Assim, decompondo-se o art. 186, consegue-se reconhecer os cinco pressupostos básicos da responsabilidade civil: o fato, o nexo de imputação, a ilicitude, o nexo causal e o dano.

O fato abrange todos os acontecimentos da vida que tenham aptidão para causar danos. Podem ser praticados pelo próprio agente (fatos próprios), praticados por terceiros (fato de terceiro ou de outrem); praticados por animais; ou praticados por coisas perigosas vinculadas a uma determinada pessoa.

Importante relembrar o já citado Artigo 186 CC/2002, o qual expressa que o fato próprio pode ser comissivo ou omissivo. Ação é um ato comissivo, um ato positivo do agente causador do dano; ou seja, mediante uma conduta positiva, causa prejuízos a outra pessoa. Tanto faz se é o ato é doloso ou culposo, pois aqui não se está discutindo o elemento subjetivo. Este elemento é objeto do nexo de imputação.

Por outro lado, os atos omissivos também podem ser causa de um evento danoso. Ocorrerá quando uma pessoa (natural ou jurídica) tem o dever de evitar um dano e não age, permitindo, portanto, que ele ocorra, por exemplo, a integridade física do condenado por parte do Estado. A omissão dificilmente provoca diretamente o dano, mas concorre, no processo causal, como uma das causas por ser uma conduta que deveria ter sido tomada pelo agente e não o foi, colaborando para a implementação do evento danoso. Para ser considerada ato ilícito e ensejar a obrigação de indenizar, a omissão é relevante para o direito, quando houver o dever jurídico de agir.

O segundo pressuposto da responsabilidade civil é o nexo de imputação. O fato, como acontecimento da vida, com aptidão para causação de danos, deve estar vinculado a uma pessoa natural ou jurídica. O nexo de imputação é exatamente este vínculo subjetivo, estabelecido entre o fato e uma determinada pessoa natural ou pessoa jurídica. Dois aspectos apresentam especial relevância no nexo de imputação: os modos de imputação (que se confundem com os fundamentos da responsabilidade civil) e a imputabilidade do agente (consiste na capacidade de entender e querer a prática de um determinado ato ilícito).

O terceiro pressuposto é a ilicitude ou antijuridicidade, que é a contrariedade do fato ao direito. O fato praticado pelo agente é contrário ao ordenamento jurídico como um todo. Não existe uma ilicitude penal, uma ilicitude civil ou administrativa, o que existe é ilicitude – contrariedade do fato ao direito como um todo –, o que configura a antijuridicidade. É um dado bem objetivo. O ordenamento jurídico prevê causas de exclusão da ilicitude e estão arroladas no Art. 188 do CC, são elas: a legítima defesa, o estado de necessidade e o exercício regular de um direito, que serão abordadas, neste estudo, como causas excludentes da responsabilidade civil do Estado.

O quarto pressuposto da responsabilidade civil é o nexo de causalidade, que é a relação de causa e efeito entre o fato e o dano. Deve-se estabelecer se os prejuízos sofridos pela vítima do ato ilícito foram provocados por aquele fato imputável ao agente. É a relação de causalidade entre o fato imputado ao autor e os danos sofridos pela vítima.

É considerado um dos pressupostos mais importantes da responsabilidade civil pela ampliação das hipóteses de responsabilidade objetiva. Antes, a grande discussão girava em torno da culpa na responsabilidade subjetiva. Essa discussão ainda é relevante, mas o nexo causal é importantíssimo, tanto na responsabilidade subjetiva, como e principalmente na responsabilidade objetiva. De conceito relativamente fácil – relação de causa e efeito entre o fato e o dano, relação de causa e efeito entre a ação e o resultado – tem aplicação prática mais rebuscada em termos de responsabilização civil do Estado em termos da superpopulação carcerária. Frequentemente, encontramos um processo causal complexo, que inclui vários fatos imputáveis a diferentes pessoas, todos com aptidão para a causação de danos. Nesse processo causal, podemos encontrar fatos omissivos e comissivos em torno da realidade prisional. Igualmente, cabe ressalva de que uma análise de responsabilização desta envergadura normalmente parte do dano (desrespeito e violação das garantias individuais do preso) para estabelecer quais as causas que devem ser valorizadas para a comprovação dos requisitos da responsabilização civil do Estado.

Exatamente em função dessas dificuldades ensejadas pelo nexo causal é que foram desenvolvidas várias teorias, buscando resolver esses problemas de ordem prática: teoria da equivalência dos antecedentes; teoria da causalidade adequada; E teoria do dano direto e imediato.

Finalmente, o dano é apresentado como o quinto pressuposto da responsabilidade civil. Pode ser classificado em dano patrimonial ou material, e extrapatrimonial ou pessoal ou moral. Dano é compreendido como a lesão ao bem protegido pelo ordenamento jurídico e se divide em patrimonial e extrapatrimonial.

O dispositivo legal, inserido no CC 2002, dispõe, no artigo 402, que o dano patrimonial é lesão a um interesse econômico, interesse pecuniário e está dividido em dano emergente e lucro cessante. Enquanto o primeiro são os prejuízos efetivamente sofridos pela vítima e o correspondente decréscimo patrimonial; o segundo é o que a vítima deixou de auferir razoavelmente.

Por outro lado, o dano extrapatrimonial é uma lesão ao direito da personalidade da pessoa humana. Atinge a liberdade, a igualdade, a solidariedade ou a psicofísica. Só existe dano moral, por conseguinte, quando a dignidade é atingida, art. 5º, V e X, CF. Em suma, a reparação pode ser compreendida como espécies à indenização e à compensação, satisfazendo, desta forma, tanto a vítima como sua família.

4.3 REPARAÇÃO DO DANO: DANO MATERIAL, DANO PESSOAL E DANO MORAL

Ao configurar o dano, deve-se verificar qual é a sua natureza jurídica, podendo ser, como já fora citado, em material, imaterial ou concomitantemente os dois. Falase de material, quando a sua verificação, avaliação e cálculo, no geral, não geram maiores dificuldades em relacionar o dano com o valor compensatório pretendido, pois a sua natureza facilita a aferição visual e econômica de tal situação, sem que o ofendido termine por desequilibrar o pedido, e o julgador decida de forma desproporcional ao pedido ou ao dano (VENOSA, 2000).

Desta forma, o dano material deve ter valor econômico e ser fungível, eis que só assim poderá ser possível responsabilizar o agente ativo da ação ilícita, com base na teoria da responsabilidade civil, com o dever de reparação ao estado anterior ou compensatório, e sem o qual seria manifestamente impossível de fazê-lo. Já o dano imaterial, devido à sua natureza abstrata e de difícil aferição, tem demandado sérias contendas em juízo sobre a possibilidade de resolução, já que perpassa sobre o assunto questões, como valores morais, que variam em sua maioria de indivíduo para indivíduo, restando ao julgador pautar-se pela moral média, adotada pela sociedade a qual faz parte. (VENOSA, 2000).

Vale salientar que, embora verificado o dano, resta a próxima fase a ser observada, que é o quanto a ser pago ao ofendido por seu agressor, tanto pessoa física como jurídica, a título indenizatório ou compensatório, haja vista que a dosimetria do calculo perpassa por fórmulas complexas, alcançando até a previsão futura do estado de expectativa de vida do ofendido ou o quanto perdurar o sentimento de agressão sofrido, bem como os seus efeitos.

Venosa assim o conceitua o dano moral:

É o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade. Nesse campo, o prejuízo transita pelo imponderável, daí porque aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa pelo dano. Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável.[...] Nesse campo, não há formulas seguras para auxiliar o juiz. Cabe ao magistrado sentir em cada caso o pulsar da sociedade que o cerca. O sofrimento como contraposição reflexa da alegria é uma constante do comportamento humano universal. (2000, p.35).

Apesar da aparente dificuldade de mensurá-lo, visto que permeia pelo bem subjetivo, imaterial por essência, o que denota certa dificuldade na composição do quanto a ser indenizado, não pode o Estado, que é o objeto deste trabalho monográfico, se esconder nos véus da incapacidade funcional de viabilizar o direito protegido.

EMENTA. Abuso de Autoridade. Prova Incriminatória. Apenação Adequada. Improvimento. Quando o álbum probatório retrata o extrapolar do agente, abusando dos limites de sua autoridade, não pode invocar a descriminante do cumprimento de dever legal, pois este coarcta-se aos estritos parâmetros da ilicitude (Apelação Crime nº. 695002816, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aido Faustino Bertocchi, julgado em 22/11/1995).

É inegável que a honra não pode ser traduzida em moeda, mas o que se busca, na verdade, é a reparação pelo vexame sofrido, não se podendo esquecer a natureza punitiva dessa reparação que deve ser sentida pelo ofensor. A Constituição Federal de 1988 é expressa em admiti-lo nos incisos V e X do Art. 5º. “A indenização por danos morais, não há dúvida, deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível.” Desembargador Federal: Benedito Gonçalves, Relator 200351010091359 - DÉCIMA QUARTA VARA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.

4.4 CAUSAS EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

De plano, considera-se que, toda lesão de direito deve ser reparada, seja decorrente de ato ou omissão de uma pessoa física ou jurídica – e que, sendo o Estado o autor desta lesão, recai, consequentemente, para ele a responsabilidade de indenizar. O Estado tem prerrogativas e privilégios inerentes à sua função, contudo deve ser orientado pelos princípios constitucionais que fundamentam esta tese. Deve ser ele, o Estado, a responder pelo não cumprimento das premissas constitucionais fundamentais do Estado de Direito. Não pode se valer de suas prerrogativas para isentar-se de sua responsabilização por danos causados ao cidadão que tem a sua liberdade tutelada pelo próprio Estado em execução do jus puniendi legítimo.

Outra observação relevante é o fato de responsabilidade civil do Estado receber guarida acadêmica não no Direito Civil, origem da responsabilidade, e sim, no Direito Administrativo. O reflexo acadêmico deste fato pode ser percebido no rol de causas excludentes elencadas, estando o Estado em um dos polos da relação de responsabilização ou não.

Na doutrina civilista, segundo Pablo Stolze (2012), há causas excludentes da responsabilidade civil, de maneira geral são as: de estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal, caso fortuito e força maior, culpa exclusiva da vítima e fato de terceiro.

Por outro lado, a maior parte da doutrina de Direito Administrativo entende que as causas excludentes e atenuantes em relação à responsabilidade civil do Estado (Di Pietro 2008; Medauar 2003; Justino de Oliveira 2010) são: força maior (art. 393 parágrafo único, CC/2002); culpa exclusiva da vítima (art. 945 CC/2002) e culpa de terceiro. Por razão de temática desta pesquisa, seguiremos esta corrente, passando a aportar comentários breves a respeito de cada uma destas causas.

O artigo 393 do CC/2002 dispõe que:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Resumidamente, entendemos que força maior ocorre quando a vontade humana está presente, e o caso fortuito quando são os eventos da natureza que coordenam a ação fática. No tema da população carcerária, uma rebelião em estabelecimento prisional será bom exemplo de força maior.

A culpa exclusiva da vítima também tem o condão de romper com o nexo causal em matéria de responsabilidade civil e a sua consequente reparação de dano. Abrange o comportamento doloso ou culposo da vítima, que surge como causa exclusiva do evento danoso. Outra forma de participação da vítima, na análise do nexo causal, é a culpa concorrente da vítima, e está prevista no artigo 945 do CC/2002. “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada, tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”.

Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (2007), Desembargador e Professor gaúcho, aportando a sua experiência de magistrado, ensina que, embora não se rompa o nexo causal, a participação concorrente atenua a responsabilidade civil, na medida em que a conduta da vítima concorre para a ocorrência do fato ou para o agravamento dos danos. Na prática forense, as condutas da vitima são analisadas sempre em conjunto e confrontadas pelo juiz para arbitrar, sempre fundamentando a sua decisão, a mitigação entre elas.

Este estudo trata da violação da integridade física e moral do condenado dentro do sistema prisional, e dificilmente deve ocorrer uma conduta concorrente da vítima, para ver decisão de magistrado mitigando uma responsabilização estatal ante o resultado fático. À mercê do sistema, sob a tutela do Estado, pouco ou quase nada se pode interferir nas situações de convívio, violência e desrespeitos a que está sujeito.

O comportamento de um terceiro, que não seja nem a vítima nem o agente do dano, de igual maneira, rompe o nexo causal, excluindo a responsabilidade civil.

 A doutrina considera fato exclusivo de terceiro e tem as seguintes peculiaridades. Primeiro, o terceiro deve ser uma pessoa estranha, sem nenhuma relação com o autor do dano; ou seja, o terceiro gerador do dano deve ser uma pessoa sem vinculação jurídica com o autor do dano. Segundo, a conduta do terceiro deve ser causa exclusiva do evento danoso. Se for causa concorrente do evento danoso, todos os agentes respondem solidariamente, na forma do art. 942 do CC/2002. Óbvia ilustração macabra dentro do sistema prisional é a violência entre os condenados e as fações criminosas. Uma vez mais evidente a desproteção enfrentada por detentos de diferentes graus de periculosidade – todos os reclusos no mesmo conjunto prisional. Passa, então, a valer a lei do mais forte, do mais violento.

5 A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ANTE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Inicialmente, registra-se que a competência recai sobre esta Corte, visto tratarse de dispositivos constitucionais, Artigos 5º e 37, parágrafo 6º. Fundamenta, assim, a concepção teórica da responsabilidade objetiva do Estado, pois a ideia de culpa – elemento subjetivo – foi substituída pela noção de nexo de causalidade, em que o ofendido deve comprovar a conexão entre a ação ou a omissão estatal e o dano por ele suportado – elemento objetivo.

Também é fundamental considerar que a questão de fundo – analisar a responsabilidade civil do Estado a indenizar o condenado, devido à superpopulação carcerária – alcança a Corte Suprema pátria, a partir de Recurso Extraordinário 580252[3]. Trata-se de agravo de instrumento, convertido em RE, interposto pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, contra decisão do Tribunal de Justiça sul-matogrossense.

Inconformado com a decisão, o defensor público pede revisão da Corte tendo em vista as péssimas condições carcerárias. Argui também a não autorização, pelo Direito, ao Estado de impor ao condenado tais condições. Respaldado nos princípios constitucionais, solicita, assim, o seguimento do pedido.

Por não se tratar de caso único e diante da crise do sistema carcerário, a reação do STF foi o de converter este RE de declaração de repercussão geral da questão constitucional formadora do pleito. Significa que dado o interesse geral, tal decisão irá produzir efeitos a toda coletividade, sobre a qual estes efeitos poderão ser estendidos.

A análise passa, portanto, a ser: se um preso sofre prejuízo em razão da superlotação carcerária, gera direito à indenização por parte do Estado?

Odete Medauar (2003) destaca dois fundamentos para a responsabilidade objetiva do Estado: o sentido de justiça e equidade, porque o Estado desempenha inúmeras atividades, e, por isto, deve assumir os riscos a ela inerentes e solidariedade social, que implica um tratamento isonômico de todos os cidadãos.

Professora Fernanda Marinela, em aclaradora vídeo aula[4] sobre o tema central desta monografia, ensina que o entendimento que vem prevalecendo no STF ao reanalisar decisões de estancias anteriores, é de que o preso não tem direito à indenização, porém cabe ressalva de que ainda não foi julgado o mérito da questão. Sem dúvida, a decisão abrirá precedente e é polemica desde a sua origem.

Finalmente, apresentamos a tese de Justino de Oliveira (2010), ao tratar da responsabilidade civil do Estado e as suas repercussões sociais para as reparações de danos materiais e morais:

O que realmente deveria haver seria uma tomada de consciência das autoridades públicas, no sentido de reconhecer o papel de efetivadora dos direitos fundamentais, o qual é a competência primaria da Administração Pública.

Determina que o Estado deva reconhecer as suas falhas, direta e eficientemente, através da reparação dos danos que fossem oriundos de suas atividades, com base em critérios de razoabilidade e de justiça. Para o condenado, o status de cidadão não pode ser mitigado sob pena de esta omissão estatal ser transformada em legitimação e banalização da barbárie prisional. 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos considerar que o sistema prisional brasileiro não cumpre com as diretrizes estabelecidas na Lei de Execução Penal em vigor. É um modelo exaurido materialmente, não recebe atenção pública devida – através de políticas públicas eficazes – nem presta ao labor de ressocialização do condenado à sociedade.

Os dispositivos constitucionais, previstos como fundamentais dos artigos 1º, III; 5º, XLVIII, XLIX e LXXV; e do artigo 36, parágrafo 6º da CF/88, fundamentam a base teórica para a possibilidade da responsabilização civil do Estado e consequente o pleito de reparação de dano, sofrido por condenado no sistema carcerário atual.

Por outro lado, respaldados na doutrina administrativa, são percebidos os pressupostos da responsabilidade estatal e respectivo nexo causal neste âmbito, bem como a permissão processual cabível da ação ora mencionada.

Prova é a determinação do STF em declarar o Recurso Extraordinário, analisado na repercussão geral. Embora ainda não julgado o mérito desta matéria, deve levar a doutrina e o judiciário a trabalharem no sentido de construir e desenvolver o arcabouço jurídico necessário que permita o devido resgate de valores humanitários desta questão. Mesmo que o entendimento prevalente atual seja o negativo – sobre o dever de indenização (por responsabilidade civil do Estado ao condenado preso que sofreu prejuízo em razão da superlotação carcerária) – segue o caos do sistema prisional. Tal fato social não merece ser esquecido por nenhum operador jurídico.

Ao mesmo tempo em que o Estado deve exercer o jus puniendi, necessita respeitar o cidadão, seja ele condenado ou não. A sociedade precisa ter coragem para enfrentar tal questão e desenhar, assim, novo modelo de políticas públicas que permitam conjugar o respeito à integridade física e moral, as condições mínimas para a dignidade humana e a punição prevista em lei.

Precisa-se evoluir para uma maturidade além das ilustradas pelos filósofos Beccaria e Foucault durante os tempos. Resgatar valores básicos, como o respeito à vida e conduzir a sociedade para uma paz social, regrada pelos princípios do Direito, mais humana e em equilíbrio.

Efetivar a responsabilidade civil do Estado via indenização de danos sofridos a cidadãos tutelados pelo Estado e convivendo com a superpopulação carcerária, passa a ser uma forma de limitar o poder do Estado, plasmando, por conseguinte, pela prestação pecuniária que será gerada, o clamor social ante contínua omissão estatal. 


Notas e Referências:

[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. 3.ed, São Paulo: Saraiva, 2004, p.153-252.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão Teoria do Garantismo Penal. Livro eletrônico disponível em http://baixargratisbr.net/direito-e-razao-teoria-do-garantismo-penal-luigi-ferrajoli/. Acesso em: 15 abril.2012.

[3] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 580252. Proced: Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Carlos Britto. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp? docTP=TP&docID=922547&ad=s. Acesso em: 16 abril.2012.

[4] Vídeo aula disponível em http://marinela.ma/videos/responsabilidade-civil-do-estado-esuperlotacao-carceraria. Acessado em 10 de janeiro de 2012.

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tauana-fernandes-fontenelle. Tauana Fernandes Fontenelle é Especialista em Ciências Criminais pela JUSpodivm (2014), pós graduada em Direito Público e Privado pela Faculdade da Cidade do Salvador e Docência do Ensino Superior pelo CESAP. Advogada e Assistente jurídico da Procuradoria Geral do Município do Salvador - PGMS, com atuação na área de Direito Tributário e Direito Administrativo e orientadora particular de trabalhos científicos..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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