Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenadores Jorge Bheron, Gina Ribeiro Gonçalves Muniz e Eduardo Januário Newton
Na semana em que o país festeja as primeiras doses da vacina contra a pandemia de Covid-19 e, quiçá, contra o negacionismo deliberado – avesso à ciência e descompromissado com a verdade e a vida humana – é, contudo, tempestivo e oportuno compreender a tragédia ocorrida em Manaus/AM, há poucos dias, quando pessoas que deveriam receber o devido tratamento de saúde morreram asfixiadas, porque não lhes fora fornecido o oxigênio medicinal necessário, embora estivessem hospitalizadas por agravamento de sua infecção pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Em pleno “pulmão do mundo”, mortes por não se conseguir respirar.
A Procuradoria-Geral da República requisitou ao Ministério da Saúde, por ofício datado do último dia 18/01/2021, abertura de inquérito epidemiológico e sanitário, com fundamento na Lei 6.259/75, que disciplina o Programa Nacional de Imunização, para investigar eventual omissão dos governos do Estado do Amazonas e do Município de Manaus[1]. Antes, porém, já solicitara ao Superior Tribunal de Justiça abertura de inquérito para apuração de suposta conduta omissiva dos governantes estadual e municipal, bem como solicitou informações ao Ministério da Saúde a respeito do cumprimento das medidas que competem à pasta, notadamente naquilo que concerne ao combate da pandemia e, sobremaneira no tocante ao fornecimento de oxigênio medicinal[2].
No entanto, para as Defensorias da União e do Estado do Amazonas, assim como para o Ministério Público amazonense e para os Procuradores Federais atuantes naquele Estado, a responsabilidade pela cessação no fornecimento de oxigênio aos hospitais de Manaus é da União. Ao menos é o que se depreende dos autos da Ação Civil Pública movida em litisconsórcio ativo pelo MPF, MP/AM, MPC/AM, DPU e DPE/AM, em trâmite perante a 1ª Vara Federal no Amazonas[3].
Instituições e autoridades, portanto, mobilizam-se em busca de responsáveis pelo colapso no sistema de saúde pública em Manaus. Ocorre que, ao contrário do que o leitor leigo ou inadvertido possa imaginar, em matéria de saúde pública, não há ente federado que se possa eximir de responsabilidade. Estará, todavia, o agente político isento de responsabilização quando exerceu plenamente suas competências e atribuições estabelecidas em lei.
Por imperativo constitucional, a saúde é um direito de todos e dever do Estado (art. 196) - leia-se Estado no seu sentido mais amplo (todos os entes federados), garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, como ainda ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Nesse contexto, é cediço que a Administração Pública, ainda que deva se alicerçar por referências financeiras e atuariais, não pode se afastar - tampouco obstar - o fim último da norma constitucional, devendo-se fazer valer plenamente o direito fundamental dos indivíduos, independente dos contornos das políticas públicas e gestão de recursos. Esse é o espírito da Carta de 1988.
Veja-se que o artigo 5º, XXV, da Carta Política deixa claro que as autoridades constituídas podem e devem promover a aplicação de recursos até mesmo particulares para a consecução da salvaguarda necessária ao afastamento de perigo à população, assegurada indenização ulterior, se houver dano.
O Supremo Tribunal Federal, em 22 de maio de 2019, fixou tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário 855.178, reafirmando-se a jurisprudência no sentido de que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado (em seu sentido mais amplo, como dito alhures), porquanto responsabilidade solidária dos entes federados, de modo que o polo passivo de eventual demanda judicializada pode ser composto por qualquer um deles, isolada ou conjuntamente.
Saliente-se, ademais, que o art. 23, II, da Constituição, confere competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para cuidar da saúde e da assistência pública[4].
E quando se invoca a Carta constitucional cidadã, não se pode olvidar de que a ela coube, após o regime autoritário que vigorou de 1964 até 1985, redefinir o Estado brasileiro para ser democrático, com toda consciência e proteção dos direitos fundamentais. Nos dizeres de Flávia Piovesan, “é ela o marco jurídico da transição democrática, bem como da institucionalização dos direitos humanos no País[5].”
Com efeito, valores humanos universais, tais como o respeito à dignidade humana e a garantia aos direitos da saúde e da vida, passaram a informar e a conferir suporte axiológico[6] a todo o ordenamento jurídico nacional. Portanto, direitos fundamentais, dada sua prevalência como direitos humanos, compõem o núcleo básico informador do ordenamento brasileiro, erigidos, ainda, à qualidade de cláusula pétrea.
Frise-se que quando o Brasil se tornou signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, obrigou-se a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla, consoante preâmbulo do diploma, reconhecendo-se ainda que todo indivíduo tenha direito à vida (art. 3º), à saúde e ao bem-estar (art. 25º). Lamentavelmente, o óbvio será aqui consignado: não se tutela a vida, a saúde e o bem estar das pessoas, nem se lhes assegura melhores condições quando falta oxigênio medicinal em hospitais, sobretudo durante uma pandemia cuja complicação mais severa é pulmonar.
Achille Mbembe[7], filósofo, historiador, cientista político e professor sul-africano, no auge do primeiro surto da pandemia, publicou artigo que ficou famoso mundialmente pelo tom de esperança, com relação à recuperação dos recursos naturais e a ligação existente entre a humanidade e a biosfera, em que alenta a possibilidade de que a Terra poderá oferecer “uma vida respirável.” Não imaginava o eminente professor que seres humanos pudessem morrer aqui, agonizando sem respirar, dado o descaso com a saúde pública, pouco menos de um ano depois.
Como é evidente, a existência humana é o pressuposto de todo e qualquer direito e liberdade tutelado no ordenamento. Como bem assenta Paulo Gustavo Gonet Branco, “o direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte[8]”. Foram, destarte, às vítimas de Manaus, retirados todos os demais direitos que a respiração lhes poderia conferir.
Causa certo espanto, pela gravidade do fato, que, numa sociedade em que se tem a terceira maior população carcerária do mundo, onde delitos tipicamente de população hipossuficiente são altamente estigmatizantes, cuja maioria de encarcerados é de negros e pobres, cuja política criminal é cada vez mais de agravamento de penas e tipificação de condutas, a trágica morte de compatriotas inocentes, vítimas da má gestão da saúde pública não provoque a mesma indignação e clamor social por justiça. Ao menos as autoridades constituídas parecem agir para identificar os responsáveis.
Vidas se perderam e de forma inaceitável. Faltou-lhes o básico, oxigênio medicinal em ambiente hospitalar. Tinham aquelas pessoas o fundamental e universal direito a respirar, asseguradas que estavam pelo Direito Constitucional Internacional, direito à salvaguarda da saúde e da vida. O aumento da demanda de oxigênio era previsível, foi previsto e anunciado. É preciso haver responsabilização dos eventuais culpados, mas essencialmente importa que haja sensível compromisso na assunção das competências constitucionais e atribuições legais por cada gestor público, sobremaneira na execução dos planos de gestão. E que tenham planos de gestão eficazes, comprometidos com a dignidade e a vida humana, pautados no valor supremo de sociedade fraterna que inspira e orienta o dever de solidariedade entre os entes federados em matéria de saúde pública.
Notas e Referências
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 17.ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MBEMBE, Achille. The universal right to breath. Mail & Guardian - Africa’s Best Read. Disponível em: < https://mg.co.za/opinion/2020-06-24-achille-mbembe-the-universal-right-to-breathe/>.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional - 4. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2009.
MPF. Procuradoria da República no Amazonas. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/acao-oxigenio-covid-19>.
MPF. Procuradoria-Geral da República. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr>.
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. – 7ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.
[1] Nota informativa divulgada no portal do MPF. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/covid-19-pgr-determina-que-ministerio-da-saude-instaure-inquerito-epidemiologico-e-sanitario-para-apurar-colapso-no-amazonas-e-faca-auditoria>. Acesso em 19/01/2021.
[2] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-determina-apuracao-sobre-atuacao-de-autoridades-do-amazonas-no-combate-a-covid-e-pede-informacoes-ao-ministerio-da-saude>. Acesso em 19/01/2021.
[3] Vide Petição inicial disponível em: <http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/acao-oxigenio-covid-19>. Acesso em 19/01/2021.
[4] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 17.ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 501.
[5] PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. – 7ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 60.
[6] PIOVESAN, Flávia. Op. cit, p. 61.
[7] MBEMBE, Achille. The universal right to breath. Mail & Guardian - Africa’s Best Read. Disponível em: < https://mg.co.za/opinion/2020-06-24-achille-mbembe-the-universal-right-to-breathe/>. Acesso em 19/01/2021.
[8] Cf. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional - 4. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2009, p. 393.
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