Por José César Coimbra - 31/08/2015
Neil Postman, neste clássico estudo publicado originalmente em 1982, não apenas descreve a história da constituição da ideia de infância, no rastro de P. Ariès, mas também assinala a experiência de seu desaparecimento.
O autor, crítico cultural e educador, natural dos EUA e falecido em 2003, desenha seu livro em duas partes. A primeira está centrada no tema da construção social da infância; a segunda, apresenta a tese de seu desaparecimento.
Postman mostra-nos que já entre gregos e romanos, certa ideia de infância estava associada à educação, à preparação para a maioridade, o que revelava uma linha demarcatória entre uma fase da vida e a seguinte. Nesse percurso, é o sentimento de vergonha que se constitui, sendo um dos indicadores do início da vida adulta.
Se é em 374 D.C. que Postman identifica a primeira legislação proibindo o infanticídio, a Idade Média (período entre os séculos V e XV), em contrapartida, é retratada como distinguindo-se dos períodos anteriores. Essa distinção teria por base a indiferenciação da vida infantil frente à vida adulta.
Assim, se até ali, a competência para a leitura constituía-se no motor da progressão da infância à maioridade, tal força teria sido perdida depois dos romanos. Por conseguinte, a alfabetização, a educação formalizada e o próprio sentimento de vergonha, na análise de Postman, também teriam desaparecido para uma parcela expressiva da população nesse período. Ainda que o alfabeto permanecesse, a capacidade de sua interpretação teria sido drasticamente afetada, erodindo a distância entre infância e maioridade. Para Postman, não haveria concepção de desenvolvimento infantil na Idade Média: a criança seria, de fato, um adulto em miniatura.
Após esse eclipsamento, paulatinamente a ideia de infância voltaria a significar as necessidades de proteção, alimentação, escolarização e a de distanciamento dos segredos da vida adulta. Teria sido com a emergência da classe média que o controle da informação e a necessidade de promover uma aprendizagem sequencial desenhariam os moldes da noção de infância.
A impressão por tipos móveis, promovida por Gutemberg no final do século XV, teria sido então peça-chave para a invenção da infância, na medida em que instaura novamente a necessidade de aquisição e aprimoramento da competência de leitura, promovendo outra vez um limite entre infância e maioridade. Trata-se, nas palavras de Postman, de um novo mundo simbólico que é instalado com a imprensa, mundo que requer a disciplina da aprendizagem e uma instituição para sua realização, a escola.
Deduz-se da argumentação acima que a noção de infância não estava associada necessariamente a uma faixa etária. Antes, trata-se de se ter ou não competência para a leitura e de se ter ou não laços de parentesco. Daí, Postman destacar que a palavra inglesa child era aplicada aos adultos que não sabiam ler.
O desaparecimento da infância em Postman está associado igualmente ao desaparecimento de certa forma de maioridade. A partir do século XIX, com a invenção do telégrafo e a disseminação em massa de informações, passaríamos a estar às voltas com um novo marco da relação entre infância e maioridade. Essa incontrolabilidade da informação, que atingirá seu ápice, segundo Postman, na disseminação promovida pela TV, exigiria do emissor um tratamento do conteúdo que o tornasse assimilável facilmente por qualquer um ou, ao menos, pelo maior número de pessoas.
Esse ‘qualquer um’ e esse ‘maior número de pessoas’, implicariam a simplificação da informação, de forma que ela pudesse ser assimilada mesmo por aqueles que ainda não tivessem sido inseridos em uma rede formal de educação para aquisição de conhecimento. Postman deduz desse cenário que crianças passam a saber tanto quanto adultos, tornando-se ‘crianças-adulto’, da mesma forma como os adultos tornam-se, antes de mais nada, ‘adultos-criança’. A distinção estaria mais uma vez desfeita.
Postman entende que a possibilidade de retomada da ideia de infância, naquilo que lhe seria mais próprio, a necessidade de um processo de aprendizagem para a passagem à vida adulta, radicaria agora no mundo das tecnologias da informação e comunicação. Isto é, seria na lida com a aquisição das competências necessárias a esse novo mundo simbólico do ‘computador’ que se demarcaria a passagem de uma fase da vida à seguinte.
Não obstante isso, Postman frisa que a sociedade atual não sublinharia a divisão entre infância e maioridade, resultando daí a tão decantada perda de autoridade. Esse cenário de desolação, Postman identificaria em alguns fenômenos sociais como a massificação de crimes cometidos por crianças e adolescentes, bem como na idade precoce com que se iniciariam em algumas carreiras, como as de modelo.
Nas discussões em curso no Brasil sobre alterações na idade relativa à maioridade penal, é interessante lembrar, com Postman, que em 1780, no Reino Unido, crianças podiam ser condenadas à morte por mais de 200 tipos diferentes de crimes. Desse modo, no século XVIII, a ideia do Estado como protetor da infância era novo, e até mesmo radical.
Os dados relativos à entrada de adolescentes no sistema socioeducativo não aparentam confirmar a perspectiva de Postman quanto à massificação de crimes cometidos por eles, seja no Brasil ou mesmo em outros países. Da mesma forma, com crianças e adolescentes cada vez mais aptos à vida no mundo da tecnologia da informação, talvez tenhamos que nos indagar se os limites entre infância e maioridade estariam por ser firmados na aquisição das competências necessárias a esse universo.
Se, de fato, vivemos a era dos direitos da infância, temos que nos indagar o que cria obstáculos para que sua efetividade seja assegurada, ao contrário do que a morte maciça de adolescentes (negros e pobres, sobretudo) aparenta revelar. A infância do ‘menor’ ainda se revela distinta da infância da ‘criança e do adolescente’.
Qual a distância entre a criança e o adulto? Travessia, sempre incompleta, de certo modo. Todavia, se o adulto não for aquele que permita essa passagem, do que se era e do que se pode vir a ser, o risco é de que nos tornemos todos, crianças, naquilo que de pior poderia haver: ‘a criança generalizada’. Sinal da “entrada de um mundo inteiro no caminho da segregação”.
Notas e Referências:
POSTMAN, Neil. The disappearance of childhood. New York: Delacorte Press, 1982.
Publicado originalmente em Goodreads.

José César Coimbra é Doutor em Memória Social – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / UniRio e Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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